ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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RODRIGO DE HARO

 

 

 

 

O COZINHEIRO INFERNAL

 

Não podes desejar quem não devoras.

Não podes desejar se não devoras.

Não podes devorar quem não desejas.

 

Observo membros sonhados

Numa arena íntima que recuperas

De memória, com precisão de ourives

Escutas o latejar das têmporas

E teus maxilares crispam-se

Enquanto refletes na carne ex-

Posta do amado, para ser consumida

Pulsando ainda entre blocos de gelo.

 

Não podes desejar quem não devoras.

Não podes desejar se não devoras.

Não podes devorar quem não desejas.

 

Primeiro coração, carmim absoluto.

Logo o fígado, o ácido pâncreas

Onde os pensamentos sufocados petri-

Ficam-se em jardim de cartilagens.

Mas convém voltar depressa

À epiderme, onde abaixo das claví-

Culas, inclino-me para morder

Duas rosáceas antes de descer

- rubro e ofegante -  até as graças

Da tensa e amável cintura. Depois,

Depois de longo tempo, saciado, sob

As frescas copas de qualquer oásis

Irei deitar-me, tendo as garras,

O queixo e o peito negros de sangue seco.

 

Não podes desejar quem não devoras.

Não podes desejar se não devoras.

Não podes devorar quem não desejas.

 

(De Ofícios Secretos, inédito)

 

 

FIGURA CONTEMPLA UMA NOZ

 

O peso da noz cabe na mão

Decidida do rude visionário. Tu que

Me vês, és tu real? Tu que me lês,

Acaso a idade tens da pedra?

Cego que tropeças, de tua primeira

Casa ainda recordas? Quantas portas

Já rompestes sem obter guarida?

 

O peso da noz na palma determina

A extensão da tua vigília. Insistes

Em parti-la, em separar as frias

Hemifaces, em escrever na lousa

A fórmula do ponto luminoso.

 

Fitas a noz. Como emblema

Conciso e secreto do ominoso, fazes

Gira-las entre os dedos repetidos.

Rondas a cela curva, meditas

Astucioso. Quantas mensagens

Guarda este cofre fechado?

 

Como vulgívaga romã, plácido

Ovo, consideras a noz de

Substância parecida. Mais

Que alimento ela é

Símbolo e atributo. Fitas

A noz. Nada mais te per-

Tence neste mundo.

 

(De Ofícios Secretos, inédito)

 

 

OMBRA MAI FÚ...

 

É tempo de entoar a ária, de procurar

O deserto abraçado ao cometa sem

Esperar pelo sinal cruciforme dos

Empoados nos camarins, sempre

Conspirando contra o Príncipe.

 

Tua memória

São construções empíricas do mundo,

Licença libertina, feroz ades-

Tramento. Somos todos parecidos,

Sussurro e sombra fustigando

O Tenor imprudente, dilacerado.

 

Pela vaidade, esquecido

Da santa hierarquia, desabrido

Locutor da fria igualdade.

Atenta bem para a estrutura

Das moradas. Obedece:

- Esta é a ária. Teu fado é

Recomeçar sempre

A imodesta aventura da fala.

 

(De Ornitorrinco, Inédito)

 

 

LAS MORADAS

 

Apanha um tamborim e dança no meio

Da cozinha, esquecida das terrinas e

Dos pratos empilhados nas mesas. Segue

Até o pátio dando vozes para

Combater ameaças

Do êxtase. Pois nem Sempre

Se permite tê-los, com tanta louça

Para secar e todas estas doidas

Ansiosas pro visões.

Dança,

Um carro de bois avista-se ao longe.

O ruído monótono e doce de suas rodas

Morde obstinado a fímbria da paisagem

Seca, em pacientes ondulações

Sonoras de acalanto meridiano.

 

A mulher alta continua dançando e

Pequena sombra move-se agilmente

Debaixo dos seus pés no ritmo

Sacudido da folia onde se oculta

Discreto fio de mistério Sefarad.

 

A luz e o calor emitem som estrídulo

De chocalhos e guizos de cascavéis.

Tereza prossegue o baile envolta

Em luz, fugindo de outro arrebatamento

Inoportuno. O ruído, o clamor

Insistente das rodas

Esta cada vez

Mais próximo.

 

(De Tesouro dos Melodramas, inédito)

 

 

SUTRA DO GALO

 

Mil vezes repetiu o mesmo Sutra,

O galo vermelho o interrompeu.

Repetiu mil vezes, repetiu. Crista

Em riste o galo o interrompeu.

 

Mil vezes repetiu o mesmo Sutra.

Impertinente, batendo asas, o galo

Voou para o telhado e

Novamente o interrompeu.

 

Entoou o Sutra com afinco

Redobrado. Lutou contra

Inútil anseio do abandono.

Novamente repetiu o mesmo Sutra.

Mas o galo impudico, inflado

o peito, voou mais alto,

Decidido. Imerso em ouros

Dobrando o canto novamente

O interrompeu. Mil vezes

Cada hora salmodiava, sor-

Vendo minutos e segundos,

O claro Sutra recorrente. Mas

O Galo obstinado o interrompia.

 

Toda vez que a devota melopéia

Recomeça, o galo seguidor de horas

Canônicas, atento, o interrompe,

Maravilhado pelas formas

Luminosas da aparência.

 

Mil vezes repetiu o mesmo Sutra,

O galo vermelho o interrompeu.

Repetiu mil vezes, repetiu. Crista

Em riste o galo o interrompeu.

 

(De Melodramas, inédito)

 

 

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Rodrigo de Haro nasceu em Paris, França, em 1939. Pintor, desenhista, gravador, escritor, poeta e contista. Divide suas atividades profissionais entre Florianópolis e São Paulo. Na década de 1960 com Roberto Piva, Cláudio Willer e Péricles Prade formam um grupo que foi profundamente marcado pelo surrealismo, o barroco, a magia, a cabala e o misticismo. Tem publicado os livros Trinta Poemas (1962), A Taça Estendida (1968), Amigo da Labareda (1991), Naufrágios (1993), Caliban (1997), Pedra Elegíaca (1978), Mistério de Santa Catarina (1992), Livro da Borboleta Verde (1996) e Andanças de Antonio (2005) entre outros.

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