ROSANGELA DARWICH
O que poderia escrever além de traços românticos
mundo que se vê passado entre pequenas flechas e olhos, eu não sei.
Nunca terei grandiosidades, todas as respostas me escaparão
e eu guardo as distâncias como a carne e alheios a mim também toda a simplicidade,
a clareza, a justiça, o rigor.
Eu tenho visto grandes cidades
tenho vivido em aldeias e saído ao mar em barco a vela
tenho entrado em trens e já fiz todas as viagens
voei sobre as Américas e dormi envolta em solidão.
Já acordei no meio de florestas e comi das folhas e raízes
acenei desertos e contive em mim dunas de prata –
tenho contido em mim profundidades e cumes
levantado as mãos e recebido graças.
Sempre os novos mistérios
uma primeira chuva abençoadora dádiva silenciosa chuva.
Eu aqui, separando memórias.
O meu destino encobre um círculo absurdo de memórias
que como me procurassem.
As marcas dos meus passos encantaram pedras e eu estou aqui
entre as flores e as pedras.
Nada se comove. Nada levanta comigo, afeiçoadamente.
***
Às vezes estou aflita,
outras estou tendo dois ou três sentimentos ao mesmo tempo.
Não caibo em meus pensamentos e eles desconsideram isso.
Estar viva não significa que aceito.
Às vezes me sinto como se aceitasse,
outras estou tendo dois ou três outros sentimentos.
Ainda que ninguém perceba,
existe um lago com patos cinzas e esverdeados dentro de mim.
Às vezes um dos patos morre,
às vezes acontecem nascimentos óbvios, seres pequenos de dentro de ovos.
Eles nadam, eu aconteço.
***
Posso te dar uma sala cheia de livros para que sejas um
dentre os meus livros nessa sala tua.
Posso te dar a alma que eleva um poema
e, além dela, um corpo de palavra.
Queres ir de um estado sólido, frígido,
à incandescência da página?
Queres ser o rastro dessas letras fechando a minha mão?
Serás eternamente o que quer que sejas desde o início,
livre de tempo e destino. Me verás passando
como se ainda sonhasses. Como se ainda sonhasses,
não te surpreenderás comigo.
*
Rosângela Darwich (Belém 1962). É autora de Quando Fernando VII Usava Paletó (1982); Levasse as Coisas na Flauta (1988); Histórias Mortas (1993). |