ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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RUBENS DA CUNHA

 

 

 

 

Fuce. Mais. Encontre o estrume. O estilo.
Fuce poeta. Atrás - por trás - da palavra.
Ela vai dizer que não quer. Que é moça.
Fuce. Force. Não fale a verdade:
fale: salvação  escória  ventre.
Talvez ela olhe e mostre a língua
ou o lábio encarnado enganando a boca
ou contorça-se em mesóclise. Talvez.
Não fuja. Enfrente. Gadunhe com febre.
A palavra falseia mas gosta dos cantos
das entraduras sem que ela peça.
Vá. Cresça dentro da palavra. Esqueça
vergonha menoridade castigo.
Fuce. Faça seu dever de porco. De macho.

 

(Inédito)

 

 

Abuso os céus da noite caída. Um anjo pintado na parede. A verdade traça móveis e livros. Destroça-os. O que não li argumenta-se espera. Espúria conexão com o sonho. Nos rins, um álcool recém filtrado esmorece a oração. Raspo a pintura até chegar no osso. Era um anjo suicida e sem coragem, pediu que eu o matasse. Então, eu fiz a sua morte.

 

(Inédito)

 

 

 

Falaram-me da impermanência. Não acreditei, disse-lhes que ficaria. Choraria meus mortos com agulhas fincadas nos lábios e dentes quebrados. Agüentaria a dor porque sou homem. Isto basta para ficar.

 

Falaram-me então do desejo acossado dentro do espírito. Não sucumbi. Disse-lhes: o desejo é vento. O invisível não se acossa. Eu o manteria livre e por essa condição longe de mim.

 

Argumentaram sobre a inquietude danosa do amor. Fingi desatenção. Mas sob os pés fervilharam estiletes, sombras, víboras e versos. Desde aquele instante, ando grunhindo meus dias. Não tenho mais sossego, cadeira, poço. Fui alçado a rio, albatroz, nuvem, papel.

 

 

(Inédito)

 

 

 

a fé

alojou-se no pulmão esquerdo

 

esqueceu o sangue

a vergonha

as verdades do rosto

 

não quis filhos

trilhas sonoras

teatro

 

tem medo

um resto de cigarro

um tanto de culpa

 

a fé não tem sede

 

 

(Inédito)

 

 

Criança: almoça borboletas.

Às margens de onde vive, elas vermelhoenchem seu jardim.

Leva em leveza seus corpos à boca e mastiga e engole e acaba com a fome.

Dizem que o ácido de suas asas corrompe o estômago.

Desacredita.

Ontem havia um grilo verdesujando seu almoço.

Retirou o intruso do prato e o lançou aos cães.

Destino de grilo é boca imunda.

Em boca humana, somente quem é silêncio pode entrar.

 

 

(Inédito)

 

 

*

Rubens da Cunha nasceu em 1971 em Joinville (SC), onde vive. Coordena o Grupo de Poetas Zaragata e colabora com o site literário Blocos On-Line. Ministra oficinas literárias e assina coluna de crônicas no caderno Anexo do jornal A Notícia. Tem publicado os livros de poemas Campo Avesso (Letradágua: Joinville, 2001), Casa de Paragens (EdUFSC: Florianópolis, 2006) e Vertebrais (Joinville, 2009). Em 2007 publicou o livro de crônicas Aço e Nada.

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