CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
1
Sem ênfase
As coisas permanecem
Sendo coisas.
O avião não levanta vôo
E o gesto não sai do corpo
Se não houver ênfase.
É a ênfase que arruma
A louça na cristaleira
E o lenço bordado na gaveta.
Sem ênfase
Ninguém salva as Flores
Do Mal. Nem as Cinzas
Das Horas.
2
Sem ênfase
As palavras morrem
Antes de nascer.
Nietzsche não vê Sils Maria
E Maiacovsky não se mata
Se não houver ênfase.
É a ênfase que dasarruma
o sofá na sala
e os livros na biblioteca.
Sem ênfase
ninguém arrisca o salto
alto. Nem a queda
no difícil.
REFAZERES
re-
fazer
o po-
ema
sem
re-
tirar
a letra
da
so-
lidão
sem
re-
tocar
a
pa-
lavra
fora
do
di-
cio-
ná-
rio
sem
rema-
nejar
a
frase
na
super-
fície
da
gramá-
tica
re-
fazer
o po-
ema
sem
re-
mover
as ima-
gens
que
nunca
apareceram
nas fotos
sem
reduzir
os encontros
ao azedume
dos fatos
re-
fazer
o po
ema
sem
re-
fazer
a cerca
na
front-
eira
da
afronta
sem
re-
negar
o sim
na
di-
visa
do
não
sem
re-
tirar
do feito
os sinais
de coisa
imper-
feita
re-
fazer
o po-
ema
sem
re-
fundar
o poço
com a
água
lá
dentro
sem
ra-
surar
o verso
com
digitais
sem
nexo
re-
fazer
o po-
ema
sem
re-
unir
os filhos
na
porta
da
escolha
sem
re-
mover
os lemes
nas
viagens
dos
dilemas
re-
fazer
o po-
ema
sem
re-
encenar
a vida aérea
dos ninhos
sem
re-
edificar
a choupana
enraizada
sem
abandonar
os castelos
na areia
re-
fazer
o po-
ema
sem re
lutar
contra
forças
reais
sem
dramatizar
a
infância
perdida
re-
fazer
o po-
ema
sem
descansar
das palavras
guardadas
na gaveta
SETE LIÇÕES
1
o que
há de
vida
na
palavra
VIDA!
2
amor
não é
só
palavra
:
é empenho
3
quem
ama
sabe
o que
salva
:
e aguarda
4
ninguém
ama
o que
lhe
convém
:
amor não é verbo
é sinal vermelho
ultrapassado
5
amor é
abrigo
com
telhado
de vidro
6
amor é
albergue
de
andorinha
:
coisa
arisca.
quem se arrisca?
7
amor
não é caso
pensado:
é vida
com-
centrada.
OSCILAÇÃO
Ando por aí
paro em qualquer lugar.
Bebo guaraná
e vejo que Deus está
numa casa nova
e você sorrindo
por dentro. Por isso
tomemos um rum
neste lugar onde tudo
o que era já não é.
Diga aonde e quando
o amor é explicável.
Mas não repita
as ladainhas de sempre.
Meu coração é sinistro
e não está no seguro.
Tudo é justificável, claro.
Mas às vezes eu preciso ir.
Não sei para onde
mas eu preciso ir.
Sou hostil ao meu tempo:
não uso relógio
e não suporto o mundo.
Por isso escrevo
quieto no meu canto.
Falo pouco, ouço nada
e vejo menos ainda.
Mas minha pele sente o sol
e arde com o sal desses
mares já antes navegados.
Camões é referência, amor.
Pessoa é paixão
--sem fim e sem começo.
Por isso diga.
Diga sem frescuras
quanto custou essa mistura
essa domesticação
dos desejos.
É claro que toda porta
se abre
e se fecha
e não adianta o sábio
explicar o combate
das substâncias.
O amor oscila entre
dois opostos: o cárcere
e o refúgio.
CANÇÃO DO AMOR MAIOR
Não há amor maior
do que este chão:
teus rastros
devolvidos à terra.
Não há amor maior
do que este céu:
teus restos
aferidos na luz
Maior amor é segredo
furtado, pedra no
caminho, sapato furado. |