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RUY BELO

 


 

ACONTECIMENTO

Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono
Caiam agora pálpebras
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora
Caiam agora que o amor chegou

 


ATROPELAMENTO MORTAL

Nalgum oásis do princípio ele fora
um fugitivo brilho no olhar de deus
a vida havia de lho lembrar muitas vezes

Atravessou as nossas ruas entre gatos
a chuva molhou-lhe as pobres botas cambadas
Teve um banco de jardim teve amigos um deles o sol
Sempre sem o saber procurou deus
Um dia foi campos fora atrás dele perdeu o emprego
na câmara municipal. Teve mãe mas depois
nunca mais foi solução para ninguém

Naquele dia a morte instalou-o
confortavelmente no céu. Lá se foi
com seus modos humanos seus caprichos
e um notório acanhamento em público
(há-de a princípio faltar-lhe à vontade entre os anjos)

Tinha o nome no registo agora habita
nas planícies ilimitadas de deus
Nas suas costas ainda se derrama
a tarde interrompida
Manhãs e manhãs desfilarão sobre ele
caracóis cobrirão a memória daquele
que foi da sua infância como qualquer de nós

Teve um nome de aqui andou de boca em boca
agora é deus que para sempre o tem na voz

 

LITERATURA EXPLICATIVA

O pôr-do-sol em Espinho não é o pôr-do-sol
nem mesmo o pôr-do-sol é bem o pôr-do-sol
É não morrermos mais é irmos de mãos dadas
com alguém ou com nós mesmos anos antes
é lermos Leibniz conviver com os Medicis
onze quilômetros ao sul de Florença
sobre restos de inquietação visível em bilhetes de eléctrico
Há quanto tempo se põe o sol em Espinho?
Terão visto este sol os liberais no mar
ou Antero de junto da ermida?
O sol que aqui se põe onde nasce? A quem
passamos este sol? Quem se levanta onde nos deitamos?
O pôr-do-sol em Espinho é termos sido felizes
é sentir como nosso o braço esquerdo
Ou melhor: é não haver mais nada mais ninguém
mulheres recortadas nas vidraças
oliveiras à chuva homens a trabalhar
coisas todas as coisas deixadas a si mesmas
Não mais restos de vozes solidão dos vidros
não mais os homens coisas que pensam coisas sozinhas
não mais o pôr-do-sol apenas pôr-do-sol

 


UMA FORMA DE ME DESPEDIR

Há o mar há a mulher
quer um quer o outro me chegam em accessíveis baías
abertas talvez no adro amplo das tardes dos domingos
Oiço chamar mas não de uma forma qualquer
chamar mas de uma certa maneira
talvez um apelo ou uma presença ou um sofrimento
Ora eu que no fundo
apesar das muitas palavras vindas nas muitas páginas dos dicionários
bem vistas as coisas dispondo somente de duas palavras
desde a primeira manhã do mundo
para nomear só duas coisas
apenas preciso de as atribuir
Não sei se gosto mais do mar
se gosto mais da mulher
Sei que gosto do mar sei que gosto da mulher
e quando digo o mar a mulher
não digo mar ou mulher só por dizer
Ao dizer o mar a mulher
há penso eu um certo tom na minha voz sinto um certo travo na boca
que mostram que mais que palavras usadas para falar
dizer como eu digo a mulher e o mar
mar mulher assim ditos
são uma maneira talvez de gostar
e a consciência de que se gosta

 


A EXEGESE DE UM SENTIMENTO

Estão os pássaros laboriosamente construindo
em meio deste dia as paredes de uma tarde antiga
Começa-lhes no bico aquela alegria
onde eu corria de canto para canto
e andava dentro dela de janela em janela

Que me trouxe de novo até à minha casa?

Podem calar-se os pássaros inúteis

 

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Ruy Belo (1933-1978) vem sendo considerado por alguns o "segundo poeta do século XX", atrás somente de Pessoa. Depois de Aquele Grande Rio Eufrates, de 1961, publicou, entre outros títulos, Boca Bilíngüe, Transporte do Tempo e Toda a Terra. Foi também crítico - seus ensaios estão compilados no volume Na senda da poesia.

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