CONFIRMAÇÕES
Um corvo de remota idade e fatigado brilho
vem morrer à beira-mar.
Aguarda atento
que a luz propícia desça no horizonte
para entregar-lhe a força derradeira
numa surtida de acerada angústia.
Descaem-lhe do dorso opaco e magro
as digitais membranas:
acumulam detritos de excremento branco.
Sobe-lhe à tona o olhar antes profundo
a vomitar o fluido da ansiedade.
Projecta-se disperso à contra-luz.
Reduz-lhe o contorno ardendo ao sol poente.
Entra no sonho às cegas ganha altura
e tomba leve e negro no areal fictício.
Breves segundos mais
para que o vento alcance a história curta.
Depois renasce em escamas de carvão.
(De Exercícios de crueldade – 1978)
APRENDIZAGEM DO
DIZER FESTIVO (trechos)
1.
Atento, desde sempre, às falas do lugar,
nada sei dos sinais se os não confirmo no encontro
da memória com a matriz, quando a carência impõe
esforços de equilíbrio não entre o corpo
e as formas que o sustêm mas entre as margens de uma
paragem breve. Registo acasos que desmentem datas e só
as não confundem porque é mesmo assim; regularmente
e a confirmar a história Que se constrói, a
vida, um texto? Em busca das coordenadas recorro diligente
à pauta de um compasso para saber no texto em que me
inscrevo o que se sabe do que havia já, as leis que
alguma angústia desvendasse, o legado da argúcia,
a vocação da pausa.
Um texto é como um esforço de existir. A intenção
de um lado, uma proposta vaga, uma moral herdada. Do outro
lado o curso das palavras, a esteira do seu eco, os sons e
os gestos seguidos uns dos outros, um som que pede um som
e essa resposta é já um bolbo de emoção
autónoma de força para florir madura, à
revelia da intenção primeira.
Assim na vida, quero dizer, no texto. Uma questão de
sons, de gestos repartidos, mas já numa cadência
que depois está lá. A coerência a haver
a comandar o ritmo e a garantir a forma. De que adianta iluminar-lhe
o chão?
(de Hábito da terra – 1988)
ORDEM DE ESQUECIMENTO
(trechos)
3
Aqui estamos na margem, na zona da maré,
as águas vêm na oscilação que é
delas, estão tão depressa a cativar-nos vivas
como se afastam, e nós vidrados na impressão
dos passos, só talvez de vez em quando e raramente
atentos às mudanças, mas já nos surpreendem
novamente, porque olha, sobem, sobem de novo as águas,
não te demores muito, achá-las-ás de
novo a desfazer as marcas, enquanto avanças, mas não
o rastro, que é cedo ainda para deixá-lo impresso.
O mar acorda se a atenção lhe acena. Tal qual
lembranças te mantinham viva sem que o comércio
as mantivesse acesas.
8
Cruel é o camarão tanto se dar
ao esforço da comida com
tanta perna a pedalar no limo, a filtrar o céu das
águas
Reter em cada sorvo
não mais do que além do que a milésima
porção do seu tão leve corpo,
ainda assim pesado, difícil de suster, e trabalhoso.
Melhor é o leão só carecer do vento que
anuncia a caça,
erguer o olhar, aferir o curso da manada, lenta ao seu
encontro e à margem do alcance, explodir a massa
muscular
rasgar a chana a floração avulsa de uma ferida
quente.
Para além disso, breve audácia, o leão
namora e dorme.
Habita o cio.
DIÁRIO
I
... o lagarto parado no verde recente da espinheira em frente:
as expressões comuns a tudo o que está vivo:
procriação, fome, orientação...
... faz de morto o escaravelho, se agredido, posto de costas
espera dobrado, depois esbraceja até virar-se, quando
encontra o jeito. Assume então, de novo, o rumo da
viagem que trazia.
(de Ordem de esquecimento – 1997).