Todo homem é uma ilha
Existe um espaço entre eu e você,
talvez, um mínimo espaço
onde nossa matéria tente ser a mesma, mas não consiga, onde meu corpo insista em ocupar o mesmo lugar do seu, mas ainda seja apenas eu.
Existe esse espaço,
feito do mesmo oxigênio presente em um terço da água.
Um vão que pode ser água entre nós dois:
o homem é uma ilha isolada, Sr. John Donne.
O golpe
A diferença entre a pancada e tombo está no cambalear das pernas.
As mesmas que vibram durante o ato - teu dia amanhecendo em mim – são as que cedem diante do fato de que tua ausência seja sempre
passagem.
O teu perfeito golpe me pega na rigidez das coxas para o amparo dos braços antes da queda. Mas o tombo chega inelutável, fazendo do susto o sonho
sempre depois do nascer do dia
o nocaute, a lona.
Acaloramento de dentro
Tenho a lava que se eleva, um fervor
na medula.
Nenhuma recomendação de gelo alivia,
quando estou no centro do fogo.
E se chama, ouço queimar.
Não há saída que não seja para o alto,
no céu onde ele está,
acalorando espaços entre braços e dentes.
Quando caí,
ficou um sol inteiro orbitando em mim.
Depois da Guerra
Depois da guerra, regresso.
Um combatente em retirada, que entra pelo portão de uma casa que não é mais sua, embora ainda lhe pertença. As pessoas dali ainda têm o seu sangue, mas acostumaram-se à sua ausência. Os lençóis já não o reconhecem, os colarinhos e coisas não mais têm o seu cheiro.
Ele mesmo, soldado vencido, já não se encontra mais em si. Não se acha, mesmo quando vasculha, apressado, as gavetas do peito e da própria cabeça. Não reconhece suas novas cicatrizes, não lhe parece familiar a textura da pele nem os calos nas mãos. É alguém que, no cansaço da luta, se fragmentou em mortos e feridos, e mudou na velocidade do disparo de cada bala.
Sou eu esse guerreiro.
Sou eu que reapareço, trazendo comigo pedaços de corpos e almas que não me pertencem, mas agora fazem parte da unidade necessária para que eu me recomponha e, no devido tempo, retorne ao meu campo de batalha.
Glossário da pequena morte
A voz de dó no baixo
arranhando o grave de todas as trilhas.
Panturrilhas que dançam no vai-vem
dos músculos,
e pedipalpos que enquadram o sorriso raro
na escassez do não: canibalismo.
Cigarro pendendo no triz
entre um lábio e outro desejo:
eu querendo ser o trago.
O in [possível] do out let. Não deixo, mas nego.
Por puro capricho do sempre contar gotas
que não pingam de densas,
doce de colher.
Todo lento e pesado, me toma de pouco.
Mas toma por inteiro de tudo.
Alice contra o espelho
Falsas verdades não me parecem mentiras.
Eram apenas demasia
de um capricho transbordando
de mim para o outro.
Alice e o gato,
por horas a fio
atraindo-se pelo recôndito.
O que se mostra não me fascina.
Eu cobiço o incompreensível
e o inexplicável
que me resuma.
Procuro a passagem secreta no tronco da árvore,
e um mundo farto
de dogmas imperfeitos.
O Arfar do Mistério
Você deve juntar todas as forças
e malas vazias
para poder partir em direção ao mistério. Parecerá desmesura de encanto, mas aprende-se que é mais doloroso. Todo mergulho traz consigo o bater seco na água. O afundar, o sufoco.
Um segredo na pressão nos ouvidos, o peito contraído e um quase morrer. Um quase morrer... de coração que se esmaga entre dedos.
Quanto mais fundo, mais apertado.
Quanto mais mistério, mais despedaço.
Esse triz de privar o sopro terminando com o soco do fundo. Sem peito e sem ar, o chão.
Um agachar que arremessa a volta. Todos os nervos já estreitados e o buscar louco pelo novo fôlego.
É na volta que te pega o sortilégio: pouca força nas pernas, já não há tona.
Pandora
Mulher de muitos cabides, acostumei a manter as fantasias esticadas e livres.
Quando as dobrei para guardá-las na mala de fuga, comecei a sentir as dores. A cada dobra uma contração de parto retido. A primeira fisgada na altura do ventre, depois nos seios e nos braços.
Empilhei fantasia sobre fantasia dentro da minha bolsa de segredos intocáveis. Contorcidas, gemiam umas sob as outras.
Mas foi no momento de trancá-las que começaram os gritos. Já me acostumei às contínuas dores e ardumes das dobras, mas os gritos... os gritos...
Eu, Pandora desvairada, já não posso mais pendurá-las. Hoje me amedronta desatar tanta amargura entre elas abafada. |