ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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SAULO MENDONÇA

 

 

 

 

Haikais

(2005/2008) 

1
Noite de primavera.
Um fruto caiu no lago
e amassou a lua.

2
Ah! Carro de Boi!
As rodas gemem
pelos dois.
 
3
À noite, reacendemos
nossos encantos.
Somos chispas quando amamos.
 
4
Um trinar distante
assustou o menino.
Na gaiola, deserto.
 
5
De grão em grão
o galo de flandre
faz o seu silêncio.
 
6
Monges orando!
Silêncio cristalino
de cardume na água.
 
7
Museu da estação...
O trem parado
como que pensando.
 
8
A noite austera
pôs ordens
nos pardais do meu quintal.
 
9
Ex-combatente morre
ao desfilar no dia 7.
Parada cardíaca.
 
10
Como se fosse gente
um anjo mija
incessantemente
 
11
À tardinha, no Sanhauá
o velhinho fitava o rio
com o seu olhar poente.
 

12
Nossas línguas
lua cheia
a boiar no céu da boca.
 
13
Na colheita de laranjas
mulheres lentamente
colhem a tarde bem madura.
 
14
A moça nubente
resolvida, despe-se:
Mais um sim.
 
15
Cheiro de terra molhada
pelas frestas da janela...
Bem vindo, inverno!
 
16
Fogão de lenha
carne seca, pão assado
e a brancura de Júlia.
 
17
Estalactites...
Lágrimas da terra
quando chora por dentro.
 
18
Pedalando sem freios
depois dos dribles
o gol de bicicleta.
 
19
Fiz um haikai dietético
só para diabéticos
com palavras sem doçura.

20
Plantei sementes
colhi auroras.
Criei raízes no meu coração.
 
21 

Copa do Mundo:

O coração perde a forma

quando em bola se transforma.

 

23 

                                                           Fogão de lenha

carne seca, pão assado

e a brancura de Júlia.

 

24 

Estalactites...

Lágrimas da terra

choram por dentro.

 

25

A moça nubente

resolvida, despe-se:

Mais um sim.

 

26

Chegou o inverno!

Cheiro de terra molhada

pelas frestas da janela.

 

38

No céu, quantos trovões!!

Gozos espalhafatosos

das nuvens quando cruzam.

 

29

Pedalando sem freios

depois dos dribles

o gol de bicicleta.

 

30

 Nua, deitada, lasciva...

Quase adormecida

estreia os seus gemidos.

 

 

Bois sem pasto

(Ou tema da circunstancialidade de uma metamorfose

que mudou um fazendeiro e o fez comerciante)

(1992)

 

Tangeu os bois

da pastagem

e o leite virou água

nas torneiras RIO

de sua casa comercial.

 

E o rio na fazenda

seguiu cortando caminhos

TRAMONTINA, CELITE

FAMA, PIAL

marcas sem céu.

 

O esterco no vento

jogado ao exílio

recai sem pátria sobre vasos

de sanitários DECA.

 

Nunca mais

as reses que agora são

TIGRES

dos tubos de conexão!

 

Apertam-se os dígitos

da máquina no balcão

moureja a mão

sem laços com o campo.

 

                                                                Aliança

(vaca do pastio)

desmamou a manhã

e aliou-se ao novo mundo.

 

É selo de agora:

ALIANÇA: marca.

São fechaduras

trancando o grito de aboio

estrangulado em farpas.

 

O rio da fazenda

sangra

fluindo mágoas

pelas raízes partidas

entristecidas tardes

de silêncio encurralado.

 

Mostruários são agora

nostálgicos bois

explícitos animais

de mugidos míticos

de metais.

 

Aloja-se na fachada

o mundo escurecendo.

“Paralines” expõem

o nome que dá nome aos bois.

 

Enquanto urge o dia

no pasto

muge o boi entardecendo.

Quase seis cabeças

no relógio da encosta.

Pássaros se recolhem

se aninhando livres

sem fechar a porta.

Lá vem a noite devagarinho

e os bois sentados 

mastigam a tarde morta.

 

Na loja, fecham-se

as portas do comércio.

São seis horas

mas não se guarda a sela

não muge o boi da tarde

para a noite se deitar.

 

Afinal

nenhum vaga-lume!

 

Fechaduras de duas voltas

fecham insaciável estigma

mas não devolvem o tempo.

Vê-se, então, devagar

o destino galopando

para ali, para lá

cercado pelas voltas que o mundo dá.

 

 

Lápide da Mangueira

(2008)

 

Aqui jaz a sombra

de uma mangueira.

Mangueira desarvorada

quem diria!

 

Ainda se ouve

o farfalhar de seu tempo

 ainda se degusta

a doce carne de seu fruto.

 

É como se agora fosse

uma árvore com célula-tronco

replantada na raiz que ficou

amealhando memórias

 de mais de mil histórias

que o seu silêncio guardou.

 

 

Voo AF 447

(2009)

 

Em que altura da noite

esse pássaro se perdeu?

 

Em que rota

num bater de asas

pôde ter sido

tragado no oceano?

 

Em que altura do súbito

teria ficado o terror

o grito agônico de sal

e medo?

 

Esse vazio

e meias palavras mudas

guardam umas lágrimas

que não derramei

submergido nesses cantos

que nem eu mesmo sei

pilotando a esmo.

 

Sigo esse voo entrecortado

alçando percursos

dolentes, condolentes

solidários como nunca!

 

Ah! eu sei!

Há tantas lembranças!

 Ficaram boiando na saudade

de tantas almas submergidas

mas que na verdade

voaram e se foram para lá.

 

 

Cosmoamando

(2000)

                                                

Não cortes os contornos

dessas nuvens

que os adornos quando luzem

nos permanecem cometas.

 

Nosso corpo

nave uníssona

nossa vênus.

 

Nela o que resta

é mais que voo

no céu que não vemos

mas que nele somos

e amanhecemos.

 

 

 

Beija-flor

(1980)

 

Eu beijo a flor

como beija a manhã

o beija-flor.

Carrego o pólen

na simbiose

de ver-me pássaro

até aonde for

levando a manhã no bico

feito estrela

pra devolver-me à língua

o efêmero falar

do beijo que voou.

 

 

 

Balada do beijo múltiplo

(1976)

 

Beijei teu beijo

quando saíste.

 

Crispei os lábios

induzindo o céu

na minha boca.

 

Diluí teu corpo

feito beijo

de ptialina presa

que restou.

 

Ficaste inteirinha

na minha boca

e engoli a saliva

como que engolindo

o teu próprio beijo.

 

 

Poema diante de

Augusto dos Anjos

(1978)

 

Abro infinitamente o compacto bronze.

 

Meus olhos nus e serenados

se dão aos mistérios

tristes e amargos

no vertical denso que o guarda.

 

Na fisionomia inflexível

sua onipresença se estende.

O mecanismo da fala muda

canta no imóvel magicamente.

No cérebro rijo de férreas substâncias

sua individualidade retorna.

 

 

O hermetismo de estanho e bronze

se plasma na eterna poesia que balbucia.

Absorvo o peito tremido de Augusto

fitando sua dor exclamativa.

 

Rasgam-se voos doridos

de sua fala quieta e explosiva.

A imagem sórdida da morte se sucumbe

e eu o vejo falar, ainda vivo

em suas íntimas palavras de bronze.

 

 

Forte Silêncio

(poema-livro acerca da Fortaleza de Santa Catarina)

(1986)

 

(fragmentos)

 

Mansas tocaias, mitos

cheiram a pólvora

no eterno dos proscritos.

 

Tiros noturnos

sem urros nem alvos

miram o tempo.

A posição de sentido

é posição descansar.

 

O canhão deitado espia

o mar de suas sombras

quedando, mítico, onde tomba

o acionar de suas fúrias.

 

Um batalhão de estrelas

aponta para o cais

desatracando âncoras

do que ficou para trás.

 

Dois camelos estáticos

de tanto guardar o mar

ganharam a antemanhã

e se perderam mundo a dentro.

 

Ficou a ternura

do olhar de bronze

lambendo mansa

os cantos dourados

da lua cheia estendida.

 

Quatro falcões de bronze

de susto abriram as garras

levantaram voo

e fugiram como uma bala.

De espanto

foram ver a aurora nascer

para aquele só voltavam

com um meia-volta-volver.

 

Alardo posto ao sargaço lento

olhos se amarram

em algum mastro que não têm.

Esperam embebidos

envolvidos de ausências

os desembarques que não vêm.

 

Uma voz de comando

vai o eco encarcerando

pelos corredores da porta falsa

definitivamente recolhido

num lugar onde à noitinha

tudo prende.

 

Repousam suas pontarias

atiradas algures

em piratas de festim.

 

Prosternados

os invasores

não investem mais

contra a guarda do Forte.

Os pescadores

de territórios alheios

absortos

respeitam o Morto.

 

Já se pode subir sem ordens

e pôr os pés na boca do canhão

mirar o céu, invadir

e dormir de porta aberta

sem que o toque de alerta

desperte o sono e a paz.

 

Sentar já se pode

em cavalos de capim

pela retina galopar

olhar o globo

numa reta e se levar.

 

Estampidos não há.

Pela ordem

a ordem é não atirar

não acionar projéteis

que o projeto é resguardar.

 

Entre muitos tiros

há um silêncio forte

quase de retiro

no silêncio do Forte.

 

O passado dorme

nos ombros de um canhão

pedindo pra ficar como está

de bandeira branca na mão.

 

Remanso

o reaver do vento

é descanso que navega

pela costa do silêncio!

 

O olhar de ferro

do canhão deitado

derrama-se pacífico

nas escamas do mar.

 

Enferruja a noite

com o seu olhar de mira.

Implode todas as iras

e o tempo sem antemão

                                                         brinca de solidão

e detona uma marcha fúnebre.

 

Visitas permanentes

de algum vento luso

batem-lhe devagar

nas sapatas de seu corpo.

Beijos assobiados

tocam-lhe as frinchas

de suas bocas de calcário.

 

O sussurro noturno

                                                           do mar antigo

transfunde-se em luz.

O vaga-lume

já é fulgor

em noites sem aproches

atalaias e luar.

 

Pássaros livres

comem restos de tempo

trazidos nos arremessos

que o vento espoca.

À noite aninham-se

e dormem nas frestas

de suas cicatrizes.

 

Dorme o forte

seu sono eterno

na memória barulhenta

e na paz silenciosa

dos seus noturnos

morcegos dependurados.

 

 

Doce amor

(1987)

 

Com véu de mel

a abelha-rainha

vela o seu zangão.

 

No favo

fervilhante de alvéolos

escorrem à noite

doces amores de então.

 

Envelope aéreo

(1986)

 

Quando sujo o dedo

na cola do Correio

tento introduzir

na abertura do envelope

todos os meus desejos

que vivem a galope.

 

Selo as notícias de mim

lacro tudo que sou

me mando – me arremesso

para quem me destino.

 

Na caixa de coleta

sou metade de mim

verrumando o tempo

e a distância.

 

Sou metade que fica

metade que vai

no meu coração envelope

a caminhar meio sereno

de tanto voar

meio aéreo.

 

                                           

Telefone de ficha

(2000)

 

Que pássaro em ti existe

que só canta a solidão

a guardar palavras

que antes eram fichas

em teu peito derramadas?

 

Como viver aqui

humilde albatroz

sem arco-íris? E nós

a caminhar nesta noite infinda

apenas cúmplices do mundo!

 

Não basta apenas esse alô

não basta apenas esta noite.

Mais que isso

te quero aqui neste poema

para que sempre nos recorde

humilde albatroz

o que transcende da fala, da voz

palavras que ficaram sem morrer.

 

 

*

 

Saulo Mendonça nasceu em Alagoa Grande. Lançou mais de dez obras, sendo elas de poesia, crônica, ficção e haikai, do qual se tornou um dos maiores cultores na Paraíba. Trabalhos seus já foram publicados em jornais e revistas regionais e nacionais. Foi citado em inúmeras obras, a exemplo de Quarenta Anos do Teatro Paraibano, onde sua atuação como ator e diretor de teatro, foi notabilizada, merecendo bons comentários da crítica especializada. Faz parte do Dicionário Literário da Paraíba, publicação do Senado Federal. Ganhou vários prêmios estaduais e nacionais. O seu livro Pirilampo – haikais, foi selecionado pela Secretaria Estadual de Educação, em 2007, para ser adotado em salas de aula da rede de ensino fundamental do Estado da Paraíba. O mesmo livro foi adotado também em salas de aula do curso de Letras - graduação e pós-graduação - da Universidade Federal da Paraíba. Recebeu a medalha "Augusto dos Anjos", da Assembléia Legislativa da Paraíba e as comendas "Cidade Verde" e "Ariano Suassuna", da Câmara Municipal de João Pessoa. Sua poesia foi traduzida para o japonês, dinamarquês, francês, romeno, alemão e espanhol.

*

 

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