ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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SÉRGIO DE CASTRO PINTO

 

 

 

 

CAMÕES / LAMPIÃO

 

camões ao habitar-se

no olho cego

sentia-se íntimo,

mais interno,

do que ao habitar-se

no olho aberto.

 

lampião ao habitar-se

nos dois olhos

a eles dividia:

o olho aberto matava

e o outro se arrependia.

 

camões ao habitar-se

no olho cego

polia as palavras

e usava-as absorto

como se apalpasse

e possuísse o próprio corpo.

 

lampião ao habitar-se

o olho cego

chorava os mortos

do seu interno,

mas o olho aberto

era casto

e via no matar

um gesto beato.

 

camões ao habitar-se

no olho aberto

via-se todo ao inverso

(pelo lado de fora)

mas rápido se devolvia

e fechava o olho aberto

pra ser total a miopia.

 

lampião ao habitar-se

no olho murcho

via o olho aberto

estrábico e rústico

e compreendia

o olho aberto

mais murcho

que o olho cego.

 

camões ao habitar-se

no olho murcho

via o mundo claro

dentro do escuro

e o olho aberto

era inútil

ao habitar-se

no olho murcho.

 

lampião

atrás dos óculos

sentia-se acrescido, somado

e era mais lampião

naqueles óculos de aro.

 

os óculos

lhe eram binóculos

íntimos sobre a miopia

e quando os óculos tirava

lampião se decrescia:

o olho cego somava

e o aberto diminuía.

 

camões molhava a pena

como se no tinteiro

molhasse o olho cego

e tateando, cuidadoso,

saía do seu interno.

 

(no tinteiro as palavras

em forma líquida

juntam-se uma a uma

à retina, à pupila).

 

camões

escrevia com o olho cego

por senti-lo mais seu

do que o olho aberto

e por poder o olho cego

infiltrar-se, ir mais dentro

e externar o seu inverso.

      

 

GERAÇÃO 60

 

               a Carlos Aranha e Walter Galvão

 

 

a carta branca do montilla

não era de alforria.

 

o papagaio era calado.

 

o cuba-libre nos prendia.

 

e em barris de carvalho

o tempo envilecia.

 

 

GARRINCHA (II)

 

se não driblas, o alambrado

é a tela de um viveiro

onde te fazes prisioneiro.

 

se driblas, és um mágico

a liberar os muitos pássaros

do teu nome

 

enquanto os cartolas dão tratos à bola

e te fintam fora do gramado.

 

hoje, onde o pássaro que foste?

 

no ar entre aéreo e sonado

com que desfilas as tuas penas

na alegoria de um carro?

 

 

DOMICILIAR

 

chegar em casa

é desatar nós

  da gravata    

       aos

  cadarços.

 

é deixar-me livre

dentro das chinelas

e fora do bridge.

 

é girar com os dedos

o bico dos teus seios

como um segredo

de caixa-forte.

 

é abrir-te

para os nós cegos

do meu amor.

 

 

ATOS FALHOS

 

sequer os ensaio.

 

mas os meus atos

falhos

encenam-se assim:

 

eles já no palco

e eu ainda

      no camarim.

    

 

AVENIDA DOS TABAJARAS

 

os tabajaras

depuseram

as suas setas

no arco

das esquinas

 

privaram-nas

de velocidade

no arco

das esquinas

 

puseram-nas

em repouso

no arco

das esquinas

 

no arco

das esquinas

as setas

fluem o tráfego

mas congestionam

e desorientam

o antigo menino

da avenida

dos tabajaras

 

menino antigo

de uma tribo

cuja aldeia

ainda não era

tão global

 

    

AS CIGARRAS

 

são guitarras trágicas.

 

plugam-se/se/se/se

nas árvores

em dós sustenidos.

 

kipling recitam a plenos pulmões.

 

gargarejam

vidros

moídos.

 

o cristal dos verões.

 

 

A CORUJA

 

são todo ouvidos

os teus olhos

de vigília.

 

olhos acesos,

luzeiros

de sabedoria.

 

olhos atentos

à geografia

do dentro,

 

és uma concha.

 

um encorujado

caramujo.

 

monja em voto de silêncio.

 

             

O TAMANDUÁ

 

tudo é uma questão

de peso e medida:

o tamanduá é feliz

 

com a boca cheia de formiga.

 

 

A GIRAFA (III)

 

entre nefelibata

e autista

 

- com o pescoço

a se perder

de vista -,

 

vive nas nuvens

e rumina a brisa.

 

 

UM GATO PRETO

 

eriçado, plugas

em mil

tomadas

 

os pelos desencapados.

 

em repouso,

aninhas

os fios negros

 

e ronronas enrodilhado.

 

 

SEM FÓRMULA

 

não piso a embreagem,

piso a paisagem

e a ponho em primeira,

segunda, terceira e quarta

de segunda a sexta.

 

(às vezes dou-lhe ré,

mas ela sempre me escapa)

 

aos sábados e domingos

deixo-me ficar em ponto-morto

diante dessas fotos já sem cor:

 

paisagens vistas de um retrovisor?

 

 

DUAS ODES À BORRACHA

 

            a flávio tavares e marcos dos anjos

 

                      I

 

a borracha

e sua arquitetura calma

de nuvem, de queijo

ou mesmo de sapo

que flexível ingere

as palavras-inseto

ou riscos incertos

de sobre o papel.

 

assim como um olho

totalmente fechado

que come os objetos

para dentro guardá-los,

a borracha alimenta-se

do medo e do inexato.

 

o seu interno

de construções erradas

precisaria

de outras borrachas.

 

borrachas que solidárias

o interno desta borracha

tornasse limpo e exato

e para isto apagassem

o que nela há de errado.

 

borrachas que solidárias,

caridosas e beatas

levassem o sol para dentro

desta outra borracha

e dela devorassem

sua construção errada.

 

              II

 

esta borracha

guarda no seu bojo

os riscos da infância

em desequilíbrio.

 

esta borracha guarda

minha infância rabiscada:

calungas, casas, coqueiros,

toda infância apagada.

 

dentro desta borracha

a paisagem certa

de um verão

que o adulto repudiou.

 

esta borracha

foi nuvem que devorou

a água dos mares, os sóis

e os barcos da infância.

 

dentro desta borracha

há um outro verão

de sóis quadrados

e mares a(mar)elos.

 

desejos de externar

os destroços que ela guarda

mas quanto maior o desejo

mais a borracha me apaga

e o que escrevo agora

já é dela, se apagado,

e a borracha devora

um pouco do meu passado.

 

a borracha

é  uma máquina fotográfica

de calungas, números, medos,

palavras e traços inexatos

e eles nela imergem

mas não serão revelados.

 

tenho ímpetos

de parti-la ao meio

e ver o seu intestino:

mares, barcos, sóis,

o verão e o menino.

 

 

RECADO A POUND

 

 

pound, eu não sou

nenhuma antena.

 

eu sou a pane

e a interferência 

dos meus fantasmas

 

no tubo de imagens dos poemas.

 

 

ESCREVER / NÃO ESCREVER

 

escrever é um suicídio branco.

um consumir-se

no fogo brando das palavras.

 

não escrever, um suicídio em branco.

um consumar-se sem metáforas.

 

 

O LÁPIS

 

o lápis

é um caniço

pensante

 

na maré

vazante

da linguagem

 

                              *

 

CINE BRASIL: MATINÊ DAS MOÇAS

 

             aos companheiros de geração

 

abriam-se cortinas,

zíperes e braguilhas.

 

tinha início a projeção

de mãos

por entre pernas:

 

tão brasil!

 

 

A TRISTEZA ENTRE O AVÔ E O COPO D’ÁGUA

 

o avô conduz a dentadura

(sorriso portátil)

no bolso do paletó

e ao sorrir a boca murcha

não há um sorriso só

pois o outro se oculta

no bolso do paletó.

 

o avô conduz a dentadura

(sorriso portátil)

e a introduz no copo d’água:

há uma alegria na boca

e uma alegria afogada

mas uma certa tristeza

entre o avô e o copo d’água.

 

BODAS DE PRATA

 

das cinzas quentes

do teu borralho

renasço pênix

de  cabo a rabo

 

 

PORTO INATIVO

 

entre mastros,

docas

e calados,

 

o silêncio

dos guindastes:

 

espantalhos

de gaivotas

 

espreguiçando as tardes.

 

          

O PAVÃO

 

são tantos olhos abertos

sobre a cauda polvilhados

 

que em leque entreaberto

há sempre quem o enxergue

 

qual um indiscreto voyeur

em um narciso disfarçado

 

 

CIRCO MAMBEMBE

 

o drama projeta-se além do palco:

hoje, encenam a paixão de cristo;

amanhã conduzem a cruz do mastro.

 

 

OS POBRES

 

as costelas dos pobres

são móbiles

de calder

 

ou armas brancas

disfarçadas

na bainha da carne?

 

as costelas dos pobres

são adagas

do mais puro aço.

 

aço temperado na caldeira dos trópicos.

 

 

desembainhadas, as costelas

dos pobres

são um osso duro de roer.

 

 

*

 

Sérgio de Castro Pinto nasceu em João Pessoa, EM 1947. Publicou Gestos lúcidos, A Ilha na ostra, Domicílio em trânsito e outros poemas, A Quatro mãos, Zoo imaginário e O Cristal dos verões, todos de poesia, além de Os Paralelos insólitos, Longe daqui, aqui mesmo – a poética de Mario Quintana e A Casa e seus arredores, livros de ensaio. É jornalista profissional e professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal da Paraíba.

*

 

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