CAMÕES / LAMPIÃO
camões ao habitar-se
no olho cego
sentia-se íntimo,
mais interno,
do que ao habitar-se
no olho aberto.
lampião ao habitar-se
nos dois olhos
a eles dividia:
o olho aberto matava
e o outro se arrependia.
camões ao habitar-se
no olho cego
polia as palavras
e usava-as absorto
como se apalpasse
e possuísse o próprio corpo.
lampião ao habitar-se
o olho cego
chorava os mortos
do seu interno,
mas o olho aberto
era casto
e via no matar
um gesto beato.
camões ao habitar-se
no olho aberto
via-se todo ao inverso
(pelo lado de fora)
mas rápido se devolvia
e fechava o olho aberto
pra ser total a miopia.
lampião ao habitar-se
no olho murcho
via o olho aberto
estrábico e rústico
e compreendia
o olho aberto
mais murcho
que o olho cego.
camões ao habitar-se
no olho murcho
via o mundo claro
dentro do escuro
e o olho aberto
era inútil
ao habitar-se
no olho murcho.
lampião
atrás dos óculos
sentia-se acrescido, somado
e era mais lampião
naqueles óculos de aro.
os óculos
lhe eram binóculos
íntimos sobre a miopia
e quando os óculos tirava
lampião se decrescia:
o olho cego somava
e o aberto diminuía.
camões molhava a pena
como se no tinteiro
molhasse o olho cego
e tateando, cuidadoso,
saía do seu interno.
(no tinteiro as palavras
em forma líquida
juntam-se uma a uma
à retina, à pupila).
camões
escrevia com o olho cego
por senti-lo mais seu
do que o olho aberto
e por poder o olho cego
infiltrar-se, ir mais dentro
e externar o seu inverso.
GERAÇÃO 60
a Carlos Aranha e Walter Galvão
a carta branca do montilla
não era de alforria.
o papagaio era calado.
o cuba-libre nos prendia.
e em barris de carvalho
o tempo envilecia.
GARRINCHA (II)
se não driblas, o alambrado
é a tela de um viveiro
onde te fazes prisioneiro.
se driblas, és um mágico
a liberar os muitos pássaros
do teu nome
enquanto os cartolas dão tratos à bola
e te fintam fora do gramado.
hoje, onde o pássaro que foste?
no ar entre aéreo e sonado
com que desfilas as tuas penas
na alegoria de um carro?
DOMICILIAR
chegar em casa
é desatar nós
da gravata
aos
cadarços.
é deixar-me livre
dentro das chinelas
e fora do bridge.
é girar com os dedos
o bico dos teus seios
como um segredo
de caixa-forte.
é abrir-te
para os nós cegos
do meu amor.
ATOS FALHOS
sequer os ensaio.
mas os meus atos
falhos
encenam-se assim:
eles já no palco
e eu ainda
no camarim.
AVENIDA DOS TABAJARAS
os tabajaras
depuseram
as suas setas
no arco
das esquinas
privaram-nas
de velocidade
no arco
das esquinas
puseram-nas
em repouso
no arco
das esquinas
no arco
das esquinas
as setas
fluem o tráfego
mas congestionam
e desorientam
o antigo menino
da avenida
dos tabajaras
menino antigo
de uma tribo
cuja aldeia
ainda não era
tão global
AS CIGARRAS
são guitarras trágicas.
plugam-se/se/se/se
nas árvores
em dós sustenidos.
kipling recitam a plenos pulmões.
gargarejam
vidros
moídos.
o cristal dos verões.
A CORUJA
são todo ouvidos
os teus olhos
de vigília.
olhos acesos,
luzeiros
de sabedoria.
olhos atentos
à geografia
do dentro,
és uma concha.
um encorujado
caramujo.
monja em voto de silêncio.
O TAMANDUÁ
tudo é uma questão
de peso e medida:
o tamanduá é feliz
com a boca cheia de formiga.
A GIRAFA (III)
entre nefelibata
e autista
- com o pescoço
a se perder
de vista -,
vive nas nuvens
e rumina a brisa.
UM GATO PRETO
eriçado, plugas
em mil
tomadas
os pelos desencapados.
em repouso,
aninhas
os fios negros
e ronronas enrodilhado.
SEM FÓRMULA
não piso a embreagem,
piso a paisagem
e a ponho em primeira,
segunda, terceira e quarta
de segunda a sexta.
(às vezes dou-lhe ré,
mas ela sempre me escapa)
aos sábados e domingos
deixo-me ficar em ponto-morto
diante dessas fotos já sem cor:
paisagens vistas de um retrovisor?
DUAS ODES À BORRACHA
a flávio tavares e marcos dos anjos
I
a borracha
e sua arquitetura calma
de nuvem, de queijo
ou mesmo de sapo
que flexível ingere
as palavras-inseto
ou riscos incertos
de sobre o papel.
assim como um olho
totalmente fechado
que come os objetos
para dentro guardá-los,
a borracha alimenta-se
do medo e do inexato.
o seu interno
de construções erradas
precisaria
de outras borrachas.
borrachas que solidárias
o interno desta borracha
tornasse limpo e exato
e para isto apagassem
o que nela há de errado.
borrachas que solidárias,
caridosas e beatas
levassem o sol para dentro
desta outra borracha
e dela devorassem
sua construção errada.
II
esta borracha
guarda no seu bojo
os riscos da infância
em desequilíbrio.
esta borracha guarda
minha infância rabiscada:
calungas, casas, coqueiros,
toda infância apagada.
dentro desta borracha
a paisagem certa
de um verão
que o adulto repudiou.
esta borracha
foi nuvem que devorou
a água dos mares, os sóis
e os barcos da infância.
dentro desta borracha
há um outro verão
de sóis quadrados
e mares a(mar)elos.
desejos de externar
os destroços que ela guarda
mas quanto maior o desejo
mais a borracha me apaga
e o que escrevo agora
já é dela, se apagado,
e a borracha devora
um pouco do meu passado.
a borracha
é uma máquina fotográfica
de calungas, números, medos,
palavras e traços inexatos
e eles nela imergem
mas não serão revelados.
tenho ímpetos
de parti-la ao meio
e ver o seu intestino:
mares, barcos, sóis,
o verão e o menino.
RECADO A POUND
pound, eu não sou
nenhuma antena.
eu sou a pane
e a interferência
dos meus fantasmas
no tubo de imagens dos poemas.
ESCREVER / NÃO ESCREVER
escrever é um suicídio branco.
um consumir-se
no fogo brando das palavras.
não escrever, um suicídio em branco.
um consumar-se sem metáforas.
O LÁPIS
o lápis
é um caniço
pensante
na maré
vazante
da linguagem
*
CINE BRASIL: MATINÊ DAS MOÇAS
aos companheiros de geração
abriam-se cortinas,
zíperes e braguilhas.
tinha início a projeção
de mãos
por entre pernas:
tão brasil!
A TRISTEZA ENTRE O AVÔ E O COPO D’ÁGUA
o avô conduz a dentadura
(sorriso portátil)
no bolso do paletó
e ao sorrir a boca murcha
não há um sorriso só
pois o outro se oculta
no bolso do paletó.
o avô conduz a dentadura
(sorriso portátil)
e a introduz no copo d’água:
há uma alegria na boca
e uma alegria afogada
mas uma certa tristeza
entre o avô e o copo d’água.
BODAS DE PRATA
das cinzas quentes
do teu borralho
renasço pênix
de cabo a rabo
PORTO INATIVO
entre mastros,
docas
e calados,
o silêncio
dos guindastes:
espantalhos
de gaivotas
espreguiçando as tardes.
O PAVÃO
são tantos olhos abertos
sobre a cauda polvilhados
que em leque entreaberto
há sempre quem o enxergue
qual um indiscreto voyeur
em um narciso disfarçado
CIRCO MAMBEMBE
o drama projeta-se além do palco:
hoje, encenam a paixão de cristo;
amanhã conduzem a cruz do mastro.
OS POBRES
as costelas dos pobres
são móbiles
de calder
ou armas brancas
disfarçadas
na bainha da carne?
as costelas dos pobres
são adagas
do mais puro aço.
aço temperado na caldeira dos trópicos.
desembainhadas, as costelas
dos pobres
são um osso duro de roer. |