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SIMONE HOMEM DE MELLO



À VISTA


outra isca para o olhar era a via sem ilhas só de vagas linhas até a margem e mais nada. atrás da mesma risca a outra vaga o mar que havia e nada precisa ali naufraga. e a nau a traz mais arisca do que a prévia (o ia-e-vinha que até ali entorpecia vira atrito de correntes sem caminho). assim ia a nau atrás da trilha sem cismar que a travessia seria mais um risco do que nada. e quem fica aquém-mar por afinar a vista ou adiar a fala só silencia às linhas tantas que a nau traga. maré alta ora vazia. e assim a margem assimila muda toda a via a maré a linha as vagas uma a uma.


RUÍDO

Conchas dispersas
pelo mar de muros
ecoam outro outono

O raso das antenas
capta em parábola
a mensagem elíptica

Empoçada no côncavo
a mesma luz rasteira varre-ruas
infiltra-frestas agora transmite

Fora do ar
a tela alterna faixas
crespas ondas tecem
o marulho teledifuso

Coados fatos, feitos e ditos
a concha colada ao ouvido
escoa um silêncio rarefeito

Incide ou-
tonal emite
um sol sem zênite


ALTE/NEUE WEINSTEIGE

I

Cravar na marra
o que o declive escoa:
em falso, o passo só
prenuncia o próximo
deslize.

(Eram esses aqueles tamancos de gelo?)

Por tão dissimilar paisagem
passada, a rasteira
busca de (cifrar mais adiante,
após outro tombo, sondar)
um rastro, seu próprio.

Neve. Encoberta a rota,
restava apenas o desafio
de como apegar-se ao quê
de terra, sob incerta crosta lunar,
mais uma encosta, corredia.
Outras luzes eram longe.
E o branco noturno
tinha algo de azul.

Naquele escalar insano,
o corpo, não apenas um contra-
senso bélico de punhos e unhas,
não combate apenas, a duras penas,
baque após baque: assim ofegante,
ameaçava descoagular.

(Não eram de vidro, como os romanos?
Eram mesmo de gelo os que calçara,
no átrio de uma vila?)

Mais acima a matriz:
no abismo, avistada
a cidade-cristal, ela,
(tão perto, Kubla Khan,
despertada: foi sonho, ou?)
e aqui, quase ao alcance,
a torre-escarpa, inegável.

Por tão dissimilar paisagem
passada, em branco,
o quando desta amnésia
era há muito.

(Como se deixara conduzir, à via íngreme,
por tais tamancos?)

II

À margem
da escarpa,
o olho lançava o corpo
já narcotizado
num tatear discorde:
foi aqui?, indagar-se
e a gana de vagar, rápido,
repentino, outro aceno
boquiaberto.

Imune a qualquer senso,
cada passo buscava, lento,
em preciso ajuste de lente,
retroagir ao ponto de onde,
como se houvesse.

Enquanto isso, a cidade,
filigrana háptica,
fincava luzes contra o fundo,
noite abaixo.
Por trás,
o respaldo dos vinhedos;
ladeada, a via serpente.

Resgatado o foco,
aquele pontilhado
viria a se tornar
urbe revisitada;
ou apenas o desatino
de seguir às cegas,
de seguir as marcas,
ao encalço de onde viera.

(Primeiro a paragem
por onde teria passado,
sem se hospedar:
os degraus até o vestíbulo
deserto, de alguém
nem sombra sequer,
apenas os sapatos, lado a lado.)

Permeado de correspondências,
um olho mais que ávido:
a retina retraía ao que era,
malha fina de riscos,
interceptados por outros
e outros riscos.
Era o andar estratégico
de um enxadrista,
sem agora,
com a vista partida
entre o que via e
o que viria.

(Depois a cerca
onde se debruçara
sobre o vale, a cidade
imersa, revestida de branco:
fachadas distintas,
logo aqui, ainda aquém
de uma distância fingida.)

Para logo cair
na próxima cilada:
outra similitude,
imperfeita, contudo,
com todo ímpeto
de lançar seu pulso
à margem da dúvida.
Até o próximo lance,
fundo falso,
outra armadilha,
para pôr em xeque
as coordenadas
e denunciar
que seus olhos
eram muitos.

III

Até emergir o mirante.

Dissimulava-se onisciente
periscópio, reverso
de certo ponto cego,
ora panóptico,
de onde nada
jamais escaparia,
vigília sem cessar-
fogo, foco multiface,
sob comando único;
ora observatório
de faro anamorfótico,
vértice preciso,
a transfigurar
matizes em matriz.

O mirante seduzia
pelo contra-senso.
Apesar de fingir
retroagir a diáspora
(convergir os rastros
ao momento anterior
à primeira distância),
era, sim, ponto de fuga:
nomeava um
outro quando,
de matéria incerta
mais forjável
(bem mais)
que este instante.

Agora,
sob o mirante sem portas:
vedado o acesso
ao totem, circundou-o,
vezes inúmeras,
à guisa dos prisioneiros,
girando em falso,
no pátio do presídio,
sem nunca coincidir
com a própria sombra.

A noite toda.
Ao amanhecer,
já compassados
passos exaustos,
reconheceu-se
na insólita silhueta
dos corvos,
já estreitando o raio
em torno da presa.

As asas arfavam.
Só então soube-se
girando o tambor
de uma roleta russa,
viciada no tiro certeiro.
Só com seu pulso,
único cúmplice:
parou.

E depois do disparo,
o vazio era estanque.

IV

Miríades
de estilhaç(os
entreatos irrompem:
a cada batente, único,
um gesto, a nu)ncia a
farpa, perdida, atrav(es-
sa chave já escava, calma,
o oco da fecha)dura só um
átimo e se con(some sob
a gola do capote, imerso
no vapor de seu hálito,
mais denso até que a
né)voa em desnorteio,
perdido o p(rumo à rua,
ao longo da guia, ecoam
por entre lábios, trechos
de um breviá)rio de faíscas,
ras(antes mesmo do grito,
o corvo se antecipa, o busto
curvo turva o branco, busca
outro canto, des)afia lanças,
fina chuva de fagulhas, uma
desorbita, espora de flanco
e atr(avessa garra ancora
no solo a silhueta, menos
sombra que estatu)ária de
augúrios, ritos e restos de
gritos, vagos ecos de terre-
moto contínuo, de sinos e
hinos, vozes inter)caladas
ainda, as ruas acordam sob
as rodas, janelas acesas
abrem primeiros bocejos,
degraus estalam sob jornais,
o carteiro busca destinatários
de tantas correspondências.

Nem uma ponta
de presságios.
No cruzamento,
concreto, sem par,
o corvo: coisa,
corpo irredutível,
em meio ao tráfego.

V

Entre cílios, cego
de neve, o cristal escoa
todo branco inverno.

*


Simone Homem de Mello (São Paulo, 1969), poeta, tradutora e libretista. Ópera: Orpheus Kristall (composição de Manfred Stahnke, Munique 2002). Tradução: A Perda das Imagens, Peter Handke (São Paulo: Estação Liberdade 2005). Seu livro de poemas Périplos será publicado pelo Ateliê Editorial em 2005. Vive em Berlim.

*

 

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