SUSANNA BUSATO
PAPEL DE RISCOS
I
A aguda serpente finca e dobra o corpo dormente nas tramas da pele fina e branca, linho de algodão, leve no vento e no roçar da fria camada serpentina da agulha que se finca a cada hiato da pele, dócil trama que plasma o leve e a aspereza do toque e se entrega à aguda e violenta investida do seu roteiro de estradas e trilhos a céu aberto.
II
A mouca agonia das frestas abertas no corpo cala o traço no desejo do grafite negro sobre a pele alva. O silêncio costura a linearidade do instante no corpo. O tempo cala. O tempo resvala na calada do corpo. O corpo agoniza. O grafite pontua esse instante. As frestas grafitadas e os vértices falicamente atravessados pelo desejo da pele alva. A letra perfura a ortogonalidade e costura o tempo. Não resta mais nada além da agonia desse ponto letra falo desejo. O silêncio vaza no vértice vazio.
III
Exercito o grafite.
Caras cabeças cortadas sorriem sobre o balcão. Acenam com dentes parcos e pardos o destino das gentes emolduradas nos vagões cinéticos.
IV
O grave estupor exala dos poros a memória cindida no tempo pêndulo grave gravado no peito das horas porosas da carne que espera lenta e certa o toque final.
V
No cinzel das rotas joguei os dados
contei os fardos e alojei ao longo
da linha cortada e atada aos cacos,
aos trancos e barricadas, os trunfos.
Bordadas as linhas em mosaico de fotos
salvei das tripas meu coração cinzelado
e cindi no horizonte meu olhar em meio
aos coriscos das letras a berrarem no paraíso.
As rotas tomam seu rumo:
risco no papel o riso que me rasga.
VI
Saliva de tédio. A boca entreaberta resgata na língua a gota perdida na memória do beco. O gosto é salgado. De mar e rochas. Gosto rasgado como uma fenda funda e aberta de longo no casco roto das rotas. A língua enrosca no céu da boca e procura nas valas dos dentes um refúgio. A palavra mole agasalhada em meio às frestas escorrega pelos cantos da boca e ensaia um gozo e pausa: seu nome: ácida sombra nos umbrais das horas.
VII
Sempre o tu no horizonte de meus ais. Sempre o nada na fina camada que distorce a linha tênue do limite desta moldura de linho e suor. Um eu e um tu traçados de agulha e anzóis, rasgados em fibras, lançam pedras líquidas e salgadas nesta face que insiste em ler o horizonte de frestas. Na morte lenta e encantada, fincada como bordado no linho, sombra de crendice, o sempre se aloja na fina camada do mim sem ti.
VIII
Cindida no tempo resgato o meu rumo no passo a descoberto das pegadas sempre invisíveis que faço nas pedras. Caminho rota entre as rotas que traço louca no papel de riscos: linhas sobrepostas às margens violadas pelas letras, sempre enormes, abastadas de esperança. Cindida pelo tempo do fim gasto meu rumo descompassado às margens frescas da próxima folha de papel, namorando a tenra superfície de pedras invisíveis para as pegadas dos trilhos que me levarão a você.
IX
É tempo de dramas, de românticos rasgados ao meio, rotos na viagem sem rotas de seus corações amaldiçoados e postos em drama, encantados no olho oráculo dos espelhos, cuja voz emudece na garganta dos desgraçados a pergunta sem resposta de seus corações despedaçados: "espelho, espelho meu!"
É tempo de dramatizar o mais romântico dos encantados e destruir a chama posta na finitude de suas promessas de amor eterno: diamante frágil, di-amante de erimanto, missão hercúlea narrada no tom escrachado dos poetas de rotas camisas e corações de papel encarnado.
Riso fácil e débil do mais evil inimigo do coração. Canto livre e trágico: sepulto para sempre o romântico coração.
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Susanna Busato é poeta e professora de Poesia Brasileira na UNESP (São José do Rio Preto/SP). Mantém o blog Papel de Riscos, http://www.meupapelderiscos.blogspot.com/. |