ZUNÁI - Revista de poesia & debates

[ retornar - outros textos - edições anteriores - home]

 

 

SYLVIA BEIRUTE

 

 

 

 

EXCISÃO

 

porque nos vedamos com o tempo que por dentro de nós corre, e porque fazemos filhos por detrás de lembranças, {estrelas} e satélites, talvez estejamos mortos. a idade arqueia, não é uma linha recta cintilante, árvores de outro tempo lhe crescem do seu subsolo. tal ímpeto é maior para o céu e tal peso impede a progressão da via férrea. vimo-lo quando as nossas personagens nos tomaram - ainda há pouco - como exemplo de figuras maiores, e colaram silêncios de outras palavras sobre as nossas palavras. talvez não tenhamos morrido: não: talvez não, talvez não tenha nem queira compromissos com a verdade objectiva.

 

mas seja como for:

{morrer é tão-somente viver na ferida de ontem.}

 

 

O MOVIMENTO DAS CÉLULAS

 

depois fechamos os olhos. descobrimos que

a substância do verso não forma uma linha,

que o seu conjunto se assemelha

à representação de quiasmas. e então

falamos de células e da sua divisão marítima,

ouvimos, ali ao lado, alguém dizer, com a

autoridade de um LOBO:

{primeiro procuramos a solução,

e depois sonhamos o problema}.

o certo é que vamos demasiado longe,

demasiado longe para a mesma certeza,

até que nos tornamos amovíveis.

de noite, cansados e sem a responsabilidade

moral de escrever um poema, e

sem mais precisarmos

de distorcer instantes na cidade subtil,

pensamos no silêncio.

{criar muita poesia é criar muito silêncio}, dizes.

 

 

DEFINIÇÕES

{então que é verdade que a definição se esgota  no rosto
que é o seu rasto} e quanto maior o rasto, maior a /probabilidade/
de se esgotar, em maior número as escolhas {e dentro delas
as pessoas,} as pessoas que mudam, que ainda não sabem,
diferenciam, prescindem, imprescindem}. {eu} realmente
gostaria de dizer algo agora, {mas os dias são transfusões de dias},
de plasmar definições e, dentro delas, significados profundos, ousar
escrever as palavras {completidão} e {perfeitude}, tocar
no fulgor abstracto das histórias futuras, das radiações de um
abraço nas repetições tumefactas da espessa mudez,  reconhecer
a transversalidade de todo o tempo. {e então que este princípio
de poema me diz que devo parar aqui, aqui onde um rasto não
começa, onde um significado não acaba, todas as definições estão
ainda encarceradas no seu primeiro infinito, onde uma bruma passa
no exacto momento em que os corpos abrem.}

 

 

MONARQUIA INTERINA

 

/ lembrei-me de lembrar-te às quatro / lembrei-me que haverá todo o material humano para que o resto / suplante o todo, /

para que não haja palavras fora de erros, para que me saiba escrever.

 

/ autenticamente as coisas acontecem, lembrei-me de lembrar-te às quatro,

e a minha apólice não o cobre - { o silêncio das ruas dói no ouvido}.

 

{/ as coincidências são abrigos de cansaço, uma confissão inadvertida rompe o fio condutor,

as perguntas custam dinheiro}

 

/ lembrei-me de lembrar-te às quatro, fugi e, nas saudades irreconciliadas com o corpo,

ficou todo o rasto do esquecimento.

 

/ e dentro do medo as mão suam, / e hoje às quatro / lembrei-me de lembrar-te.

 

 

 

*

Sylvia Beirute é natural de Faro, Portugal, e nasceu em 1984. É autora do blogue Uma casa em Beirute, sylviabeirute.blogspot.com.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2010 ]