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VALÉRIO OLIVEIRA

 


 

MILAGRES E MUTAÇÕES

As pessoas azuis seriam muito melhores se tivessem
em vez de dois, três olhos.
Um cor-de-rosa, um lilás, um ultravioleta.
Sei que não sou pago para pensar nas pessoas e nos seus olhos
mas penso, não posso evitar.
Três olhos, em vez de dois.
As pessoas azuis seriam muito melhores
se fossem parecidas com as pessoas da foto.
Da foto que está flutuando no fundo.
No fundo da tela azul do meu computador.
As pessoas cinza dessa foto têm três olhos
e não sabem que são parte da foto
do fundo da tela azul do meu computador.
Não sabem que são luz estática, sombra congelada
movimento petrificado.
Se soubessem certamente acenariam de volta para mim.
Acenariam com lenços azuis.
Faz frio no cenário estático, congelado, petrificado.
O inverno chegou mas as pessoas cinza da foto não sabem disso.
Não leram o jornal de hoje, não viram a previsão do tempo.
O jornal de hoje pertence ao dia de hoje (vermelho com pessoas azuis)
não ao dia cinza e antigo da foto.
Sei que não sou pago para pensar nas pessoas, no inverno
nas fotos que flutuam no fundo da tela azul do meu computador
mas penso, não posso evitar.
As mensagens vêm e vão, vermelhas.
Vêm e vão dia e noite, às vezes amarelas.
Deve haver outra forma de amor
outra forma bem diferente do amor amarelo
que há entre as pessoas azuis que não têm três olhos.
Deve haver outra forma de afeto
outra forma bem diferente do afeto eletrônico
que há entre as máquinas cinza.
As mensagens vêm e vão, acasalam e se multiplicam.

Vêm e vão dia e noite: famílias inteiras de recados digitais
acasalando e povoando o jardim das delícias virtuais.
Oxalá as ruas vermelhas e as pessoas azuis
me reconheçam quando eu sair daqui.
As pessoas azuis que não têm três olhos.
Tomara que me reconheçam.
Tanto tempo na frente da foto, tanto tempo na frente dessa foto cinza.
Da foto do fundo da tela azul do meu computador.
Milagres e mutações não respeitam o metabolismo do inverno
o frio das reflexões cristalizadas.
Se me reconhecerem, adeus casamento, adeus acasalamento.
Milagres frenéticos e mutações voláteis.
Quantos deles esse tempo todo na frente da foto
seria capaz de provocar?
Um cor-de-rosa, um lilás, um ultravioleta?

 

CHEGADA ÀS SEIS

 

Ela deixa
a mochila ao lado do aparador
     e admira e admira e admira
     as curvas suntuosas
do vestíbulo, aqui tudo resplandece
tudo cheira bem: cadeiras
          e crisântemos

Ela espanta-se, ah, oh
ao passar pela porta da cozinha
     Atrás da casa
o poente, o horizonte e o oceano
são mais, muito mais
     atrevidos e eloqüentes
do que todos os poentes horizontais e oceânicos
          de sua vida

Ela junta as mãos
     e apóia os antebraços
no portão que separa o quintal do resto
          do mundo
Venta muito, garoa
O resto do mundo, o quintal, a casa, a garoa
     tudo isso está
inteiro dentro dela. Ela mesma
          está inteira dentro de si

          As pessoas que vêm
brindar à sua chegada vestem roupas rococós
     gesticulam de maneira maneirista
          exibem
dentes muito azuis e jóias
     assustadoramente salgadas
Pesadelo? Morte?
          Ela não sabe ao certo

Festejam: confete e serpentina
     A noite mergulha na luz ondulada
dos comentários jocosos e das confissões
          nostálgicas
Ela reencontra os amigos de infância
     os parentes perdidos

          O baseado
passa de mão em mão, na sua vez
ela recusa encabulada
     Não quer se perder
mais ainda
 

Tem medo
     de não conseguir
     sair dessa casa, tem medo de
não acordar desse sono úmido
     tem medo de que
os parâmetros da cannabis confundam os comandos
da máquina do tempo
     estacionada
no jardim

 

CINEMA

A estupidez da natureza é encantadora
         mas às vezes é muito, muito tediosa
O universo é esperto como as amebas
Não há surpresas, tudo caminha sempre
         para a frente, não há saltos no tempo, não há
                  cortes ou voltas (como no cinema)

As estrelas nascem, vivem e morrem
O sujeito nasce, faz dez anos, faz vinte
         trinta, quarenta, cinqüenta
                  sessenta, setenta, oitenta e morre

Não há cortes ou voltas (como no cinema)
Do jeito que está não pode ficar
Péssimo roteiro, péssima direção

É quase impossível não se aborrecer
Era preferível nascer com oitenta anos
         dormir com trinta e acordar com setenta
                  voltar aos vinte e morrer com dez

Anteontem, câncer na próstata
         ontem alpinismo, hoje hemorróidas
                  amanhã muito sexo, depois de amanhã
                           sabe-se lá o quê

Como está não pode ficar
É quase impossível não se aborrecer

 

*

Valério Oliveira nasceu no Rio de Janeiro, em 1958. Poeta e vagabundo globalizado, já morou em Los Angeles, Buenos Aires, Madri, Milão, Lisboa e no Porto. Gosta de felinos, de Modigliani e de Itamar Assumpção. Atualmente mora em São Paulo e ganha a vida como garçom num restaurante de comida italiana. Tem três livros publicados, todos de maneira artesanal: Mínimo eu (2002), Oh! (2003) e Sobras do subsolo (2004).

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