ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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WESLEY PERES

 

 

 

 

aceita essa chaga de nove aberturas que é o corpo, segundo o Bhagavad-Gita. A sabedoria?Sofrer dignamente a humilhação que nos infligem nossos nove buracos.  [Émile Cioran] 

                                 

O senhor viu como não é fácil decifrar a escrita com os olhos; mas o nosso homem decifra com os seus ferimentos. [ Franz Kafka]

                                                              

Azul. Provém do persa läzwärd, lápis-lázuli. Cor que, no espectro solar, ocupa a área entre o verde e o violeta. Cor que corresponde à sensação provocada na visão humana pela radiação monocromática, cujo comprimento de onda é da ordem de 455 a 492 nanômetros — uma sensação equivalente pode ser produzida por outros meios.Ainda: o firmamento; que tem essa cor ( ex.: cidade azul); diz-se dessa cor: a cor azul acalma;   muito assustado, muito perturbado (ex.: ficar azul). Azul de metileno: corante azul (C16H18ClN3S) usado como bactericida, antídoto contra envenenamento.Regionalismo: Brasil: tudo azul: tudo em ordem, em paz, às mil maravilhas.

                       [miscelânea. Aurélio. Houaiss]

 

 

 

De modo inesperado, ou nem tanto, as coisas do mundo começam com um não. Uma molécula diz não a outra molécula e a morte principia a destecer a colcha. Às vezes, tudo acontece como se fosse mágico, e a colcha reluz em azul, no quarto escuro, parece até uma cidade — goiânia ou bombaim, pouco importa

 

 — sobrevoada por olhos de criança que, pela primeira vez, vê uma cidade do alto. Mas nem esse consolo há: num breve tempo, as moléculas começam a dizer não de modo acelerado e a ciência ainda virá para explicar tudo, “não, não é uma cidade azul sobre a colcha”. E, então, a mágica desaparece e resta apenas uma seqüência interminável de nãos.

 

 

* * *

 

 

Passo agora a fazer de vez o que sempre fiz, construir meticulosamente os silêncios: cada um com gramatura, espessura, cheiro, líquen e arame próprios; cada um com sua chuva, sua curvatura, sua nódoa, sua opacidade, sua especularidade, sua ranhura e modo de dar notícias do copo de inferno que nos entranha.

 

Passo agora a ser o que sempre fui, corpo percorrendo o lento e próprio desaparecimento, sem fingir que esses meus silêncios forjados não portam rastros do osso duro fóssil semovente movendo os restos do sol

 

* * *

 

Desmontagem de um haikai ainda inescrito ou  homem  pensando eixos de  sua  biografia inervada necessidade

 

[1.]

 

A lógica o objeto o pássaro morto a carne viva

do homem morrendo as estrelas entristecem as paisagens,

iluminam o pó da pele e a matéria das palavras

deixando bocas digitando a curvatura azul

do som da sombra

de qualquer quem se empedra

no movimento ensurdecedor de operar enigmas

e o manejo até mesmo as gramáticas do afeto.

 

[2.]

 

A substância  angústia

inerva a medula metálica do homem

feliz esperando a morte

a morte sempre mórbida do aparelho perceptivo

do homem inervado pela substância

 

amorodiar o alimento convém ao Deus

também convém ao homem,

a mortalidade torna o homem inamordaçável.

As nervuras da carne jamais se calam,

andarilham infernos, paredes móveis

movendo os vazios de lugar.

 

[3.]

 

Não há sequer sofrimento estável.

A angústia:

máquina orgânica logoilógica

despe limitrofias e analogias,

veste nem relógio digital

e sequer o silêncio em que investe.

 

[4.]

 

A despeito da montagem

não há imagemnemônica

nem nenhum som radiografado

nem código algum nada

cura da-coisa-anônima-ele o homem.

 

* * *

 

 

atoms at work

   para Campos de Carvalho

 

 

A maçã sobre a cadeira.

Uma noite, dentro da maçã.

A criança, sequer vê o vento,

senta-se, trincando a noite

da matéria

(Os cães, sim, latem —

  os únicos a escutarem o instante

  em que o mundo se torna o mesmo).

 

 

Um homem esperando o trem

 

adivinha a criança

 

é mais feliz do que o outro

aguardando a eternidade.

 

 

 

A chuva imóvel contém

nossos possíveis passos.

 

A infância é mesmo indestrutível.

 

 

 

tatuagem sonora nº2 para criança de seis anos e oboé

 

 

                                 o homem coisa código algum invertebração recifra a angústia substância limítrofe e análoga ao silencioso gozo sonoro em sua morte instilada nos poros gemidos bordas erógenas fazem  vibrar os átomos até sangrarem também o lugar do  corpus da palavra minério  inervado restou vivo o nada dos corpos ancestrais, rastros ventos pássaros passaram alando túmulos de cadáveres vivos: palavras. Gerações passadas restos de cotidiano  e restos pelos sonhos sonoras vertebrações em vértebras vértices remoendo o corpo parolando com a morte esse eutro na sala enquanto o meu pó da pele ele                      se iluminam de objetos

 

 

 

Poema gerado de implosões do Levítico e de impressões deixadas por haver acontecido o que não acontece em Goiânia 1987

 

 

 

E aconteceu o que não acontece e descobriu-se que as foices também podem ser azuis e foi um pássaro amitológico mortoabertorasgado pela invisível lâmina azul que simulava cidade vista de cima e à noite no corpo nu da mulher de longos cabelos dona do pássaro amitológico mortoabertorasgado e foi na cidade de sol sólido e em setembro e o sol sólido da cidade e tudo permanecia quando alguma pessoa tocar em corpo morto ainda que não soubesse, contudo será ele imundo e culpado. Culpada, esse o veredicto dado pelo polvo de mãos alando e espedaçando lápides sobre o caixão da menina eviscerada pelo azul que não se vê. Porém pode-se usar da gordura de corpo morto, e da gordura do dilacerado por feras, para toda a obra, mas de nenhuma maneira a comereis. Invísivel e sem cheirodor esse azul esse maldororazul que captura vísceras e lambe-lambeu por dentro o corpo da menina eviscerada e apedrejada por vozes uma verdadeira aletria sonora corpodecão outros vitupérios singulares e plurais. E aquilo sobre o que cair alguma parte de seu corpo morto, será imundo; o forno e o vaso de barro serão quebrados; imundos são. E quem comer do seu cadáver lavará as suas vestes, e será imundo até à tarde; e quem levar o seu corpo morto lavará as suas vestes e será imundo até à tarde. E todo o homem entre os naturais, ou entre  estrangeiros, que comer corpo morto ou dilacerado, lavará as suas vestes e se banhará com água e será imundo até à tarde e depois será limpo. E devorada de azul e pedras e vitupérios tentaram fazê-la ela a menina eviscerada morrer uma segunda vez, assim como Judas morreu uma segunda morte ao trair Cristo antes mesmo de morrer a primeira.O corpo morto e o dilacerado não comerá, para que não se contamine com ele.

  

 

 

 

agora só ela e sua cama só ela e seu corpo decalcado na cama. Fala decerto a língua dos mortos, decerto menos deserta do que a língua dos vivos. Ela, só, na casa-de-receber-enfermos. Enfermo, essa palavra. Recobre apascenta a boca da palavra ausente. (O homem crê em Deus e nas pedras. Sonhou a clareza de seus olhos implodidos densos de um imenso sol soletrado pelo calmo ninguém que habita o homem só com o seu corpo)

*

 

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