ADONÍS
O SACRE
Seja!
Vieram os pássaros e amalgamaram-se: é pedra e pedra.
Seja!
Despertarei ruas e noite
e juntos passaremos pelas árvores.
Os ramos serão malas verdes
e o sonho, travesseiro no intervalo das viagens.
A manhã persiste e estranha
imprime seu rosto em meu segredo.
Seja!
Despontou um raio chamou-me uma voz
desde os confins das muralhas...
E rezei...
sussurrei rente às pedras
e li as estrelas: tomei seus pontos
e apaguei-os.
Meu desejo é um mapa
e nele o meu sangue e as entranhas.
Se soubesse, como o poeta, mudar as estações,
se soubesse conversar com as coisas,
enfeitiçava a tumba do pequeno cavaleiro no Eufrates,
a tumba do meu irmão na margem do Eufrates
(morreu, não teve bálsamos, nem enterro, nem orações).
Eu diria às coisas e estações
“Juntai-vos como se junta o ar,
estendei-me o Eufrates;
verta a água verde
como a oliva verte em meu sangue enamorado,
no meu tempo ancião”.
Se soubesse, como o poeta, tomar as núpcias das plantas,
cobriria estas árvores com crianças.
Se soubesse, como o poeta, domar o insólito
faria nuvem de cada pedra
para fazer chover sobre a Síria e sobre o Eufrates.
Se soubesse, como o poeta, mudar a hora da morte
se soubesse ser profecia, que adverte ou dá sinal,
eu gritaria
“Ó, nuvens, condensai-vos, chovei
em meu nome sobre a Síria e sobre o Eufrates.
Por Deus, nuvens...”
Abriram-se os céus, e
da poeira fizeram-se livros,
e Deus estava em cada livro.
Sem dormir...
pedra alguma dorme em meu rosto,
miragem alguma retém o meu olhar.
Um sinal vem do Eufrates:
Sou aquele que habita em teu colar, ó pomba
em teu bando migratório, ó gaivão.
Sou como o adivinho,
espalho signos e visões
no horizonte, e em muitas línguas.
Sou o Eufrates e sou a Península.
Um sinal...
Devagar, minha saudade...
O Sacre nas veias secas, nas urbes do pensamento íntimo.
O Sacre, como halo gravado no portal da Península.
O Sacre, saudoso e confuso entre o sonho e o pranto.
O Sacre, em seu desespero criador, no labirinto,
ergue, no cume, no fundo do fundo, o Alandalus profundo.
De Damasco ao Ocidente, o Alandalus,
levando a colheita do Oriente.
O Sacre escreve ao espaço, esse desconhecido generoso,
a pedir-lhe um lugar... limpo, como o espaço nas veias.
O Sacre acena a outros sacres —
cansado, levam-no os dédalos, levam-no as rochas.
E ele se inclina, alimentando as rochas, alimentando os dédalos,
o rosto avante, o sol por encalço.
O espaço é fornalha
e os ventos, velha a tecer contos,
e os sacres, cortejo a abrir o céu.
Como um amante, audacioso,
juvenil, de paixão audaz,
ergue o Alandalus profundo
ergue-o para o Mundo — esse novo santuário.
Todo espaço em seu nome é livro.
Todo vento em seu nome é hino.
Tradução: Michel Sleiman
NOTA DO TRADUTOR:
Trechos do poema “O Sacre”, do Livro das Transformações e da Fuga pelas Regiões do Dia e da Noite, do poeta sírio, naturalizado libanês, Ali Ahmad Said Esber, nascido em Alkassabin, em 1930, mais conhecido como Adonís.
O poema faz referência ao príncipe omíada Abderrahmán, apelidado “O Sacre de Coraich” por sua ascendência de árabe peninsular da tribo de Coraich, a que também pertenceu o Profeta Muhammad do Islã. No ano de 750, fugindo da chacina dos abássidas – golpe que deu fim a toda sua família em Damasco – o príncipe escapa sozinho, cruzando a nado o rio Eufrates, e chega heroicamente às longínquas terras do Alandalus, onde restaurará a dinastia omíada... nas mesmas terras de onde sairão, centenas de anos depois, Espanha e Portugal.
Mas o que é o “sacre” que ostenta a alcunha de Abderrahmán? Habitando as regiões desérticas e as estepes da Europa Oriental, da Ásia Central e do Oriente Médio, o sacre é a mais primitiva e a mais rústica de todas as espécies de falcões. Os falcões sacres são menos ágeis e velozes que outros falcões; em compensação, são dotados de grande força, persistência e valentia.
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Adonis (Síria, 1930), pseudônimo de Ali Ahmad Said Isbir, é um dos renovadores da poesia árabe contemporânea. Poeta e professor, publicou os livros de ensaios Poética Árabe (1985) e A Palavra das Origens (1989), e os de poesia Cantos de Mihyâr, o Damasceno (1961), Homenagem às Escuras Coisas Claras (1988) e Índice das Ações do Vento (1998), entre outros.
Leia outro poema de Adonis. |