ANTONIO GAMONEDA
Malos Recuerdos
La vergüenza es un sentimiento
revolucionario.
Karl Marx
Llego colgados de mi corazón
los ojos de una perra y, más abajo,
una carta de madre campesina.
Cuando yo tenía doce años,
algunos días, al anochecer,
llevábamos al sótano a una perra
sucia y pequeña.
Con un cable le dábamos y luego
con las astillas y los hierros. (Era
así. Era así.
Ella gemía,
se arrastraba pidiendo, se orinaba,
y nosotros la colgábamos para pegar mejor.)
Aquella perra iba con nosotros
a las praderas y los cuestos. Era
veloz y nos amaba.
Cuando yo tenía quince años,
un día, no sé cómo, llegó a mí
un sobre con la carta del soldado.
Le escribía su madre. No recuerdo:
«¿Cuándo vienes? Tu hermana no me habla.
No te puedo mandar ningún dinero…».
Y, en el sobre, doblados, cinco sellos
y papel de fumar para su hijo.
«Tu madre que te quiere.»
No recuerdo
el nombre de la madre del soldado.
Aquella carta no llegó a su destino:
yo robé al soldado su papel de fumar
y rompí las palabras que decían
el nombre de su madre.
Mi vergüenza es tan grande como mi cuerpo,
pero aunque tuviese el tamaño de la tierra
no podría volver y despegar
el cable de aquel vientre ni enviar
la carta del soldado.
*
Más recordações
A vergonha é um sentimento
revolucionário
Karl Marx
Levo pendurados do meu coração
os olhos de uma cadela e, mais abaixo,
uma carta da mãe camponesa.
Quando eu tinha doze anos,
alguns dias, ao anoitecer,
levávamos ao porão uma cadela
suja e pequena.
Dávamos-lhe com uma corda e depois
com as farpas e com os ferros. (Era
assim. Era assim.
Ela gemia,
arrastava-se suplicando, urinava,
e nós pendurávamo-la para lhe chegarmos melhor.)
Aquela cadela ia connosco
às campinas e às encostas. Era
veloz e amava-nos.
Quando eu tinha quinze anos,
um dia, não sei como, chegou a mim
um envelope com a carta do soldado.
Escrevia-lhe a sua mãe. Não me lembro:
«Quando vens? Tua irmã não me fala.
Não te posso mandar dinheiro…»
E, no envelope, dobrados, cinco selos
e papel de fumar para o seu filho.
«Tua mãe que te quer.»
Não me lembro
do nome da mãe do soldado.
Aquela carta não chegou ao seu destino:
roubei ao soldado o seu papel de fumar
e rasguei as palavras que diziam
o nome da sua mãe.
A minha vergonha é tão grande como o meu corpo,
mas mesmo que tivesse o tamanho da terra
não poderia regressar e soltar
a corda daquele ventre nem enviar
a carta do soldado.
La acusación estuvo demasiado tiempo dentro de tu lengua. Eres tardío como las sustancias destinadas a la dulzura.
Lames mi piel hasta que brotan signos y tus sollozos forman bóvedas en mi corazón
pero mi piedad está habitada por animales muy esbeltos, por animales persuasivos y otros versados en la fugacidad.
Sólo tú eres exterior y horrible: el que robó mis actos y no duerme;
el que está ciego en la serenidad.
¿Quién habla en ti, quién es la forma de tu rostro?
Guárdate de quien se alimenta con el perfume del suicidio, guárdate de mí porque la negación ha tocado mi cuerpo.
Tu alma está fatigada pero eres alto en la fatiga: hablas a dioses extinguidos.
No hay semejanza en ti: hay infección y fuego dentro de tu lengua y la pureza es tu enfermedad.
Subes hasta un lugar de espinos; tocas el borde del crepúsculo.
Eres tardío como las sustancias destinadas a la dulzura. No hay semejanza en ti.
Yo he puesto días en mis ojos y mis acciones son como el olor de la resina en un lugar profundo.
Sólo vi luz en las habitaciones de la muerte.
*
A acusação esteve demasiado tempo dentro da tua língua. És tardio como as substâncias destinadas à doçura.
Lambes a minha pele até que brotem signos e os teus soluços formem abóbadas no meu coração
porém a minha piedade está habitada por animais muito esbeltos, por animais persuasivos e outros versados na fugacidade.
Só tu és exterior e horrível: aquele que roubou os meus actos e não dorme;
aquele que está cego na serenidade.
Quem fala dentro de ti, quem é a forma do teu rosto?
Protege-te de quem se alimenta com o perfume do suicídio, protege-te de mim porque a negação tocou o meu corpo.
A tua alma está cansada mas és alto na fadiga: comunicas com deuses extintos.
Não há semelhança em ti: há infecção e fogo dentro da tua língua e a pureza é a tua enfermidade.
Sobes até a um lugar de espinhos; tocas o limiar do crepúsculo.
És tardio como as substâncias destinadas à doçura. Não há semelhança em ti.
Somei dias aos meus olhos e as minhas acções são como o aroma da resina num lugar profundo.
Só vi luz nas câmaras da morte.
Eran días atravesados por los símbolos. Tuve un cordero negro. He olvidado su mirada y su nombre.
Al confluir cerca de mi casa, las sebes definían sendas que, entrecruzándose sin conducir a ninguna parte, cerraban minúsculos praderíos a los que yo acudía con mi cordero. Jugaba a extraviarme en el pequeño laberinto, pero sólo hasta que el silencio hacía brotar el temor como una gusanera dentro de mi vientre. Sucedía una y otra vez; yo sabía que el miedo iba a entrar en mí, pero yo iba a las praderas.
Finalmente, el cordero fue enviado a la carnicería, y yo aprendí que quienes me amaban también podían decidir sobre la administración de la muerte.
*
Eram dias atravessados pelos símbolos. Tive um cordeiro negro. Esqueci o seu olhar e o seu nome.
Ao confluir para a minha casa, as sebes definiam sendas que, entrecruzando-se sem conduzir a parte alguma, isolavam minúsculos prados que eu percorria com o meu cordeiro. Jogava às escondidas no pequeno labirinto, mas só até que o silêncio fizesse brotar o medo como uma larva dentro do meu ventre. Acontecia uma e outra vez; eu sabia que o medo ia entrar em mim, mas não deixava de ir às pradarias.
Por fim, o cordeiro foi enviado para o matadouro, e eu aprendi que aqueles que me amavam também podiam decidir sobre a administração da morte.
Amor que duras en mis labios:
Hay una miel sin esperanza bajo las hélices y las sombras de las grandes mujeres y en la agonía del verano baja como mercurio hasta la llaga azul del corazón.
Amor que duras: llora entre mis piernas,
come la miel sin esperanza.
*
Amor que duras nos meus lábios:
Há um mel sem esperança debaixo das hélices e as sombras das grandes mulheres e na agonia do verão desce como mercúrio até à chaga azul do coração.
Amor que duras: chora entre as minhas pernas,
come o mel sem esperança.
He atravesado las creencias. Durante mucho tiempo
nevó sin esperanza.
Había madres que enloquecían al amanecer: oigo sus gritos amarillos.
Aún nieva. Creo en la desaparición.
Creo en la ira.
*
Atravessei as crenças. Durante muito tempo
nevou sem esperança.
Havia mães que enlouqueciam ao amanhecer: ouço os seus gritos amarelos.
Ainda neva. Creio na desaparição.
Creio na ira.
Tradução: João Moita
*
Antonio Gamoneda nasceu em Oviedo (Espanha) em 1931, de onde partiu 3 anos depois com a sua mãe para León - cidade onde ainda hoje reside - depois de ficar órfão do pai. O pai, também Antonio e também poeta, morreu durante os primeiros anos da vida do filho, tendo deixado como herança o seu único livro publicado, Otra más alta vida, no qual Antonio Gamoneda aprendeu a reconhecer as primeiras letras ao mesmo tempo que lhes intuía uma modelação completamente nova e imprevisível: ao mesmo tempo que aprendia a ler pelo livro do pai (era o tempo da Guerra Civil e as escolas estavam fechadas), Antonio Gamoneda aprendia a reconhecer e a ser afectado pelo valor estético da palavra poética. Sempre afastado dos círculos literários e dos grupos geracionais, Antonio Gamoneda foi produzindo a sua obra impar, coroada em 2006 com a atribuição do Prémio Cervantes. Hoje Antonio Gamoneda é indiscutivelmente considerado um dos maiores poetas da língua espanhola. |