ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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BLANCA VARELA

 

CANTO VILLANO


y de pronto la vida
en mi plato de pobre
un magro trozo de celeste cerdo
aquí en mi plato

observarme
observarte
o matar una mosca sin malicia
aniquilar la luz
o hacerla

hacerla
como quien abre los ojos y elige
un cielo rebosante
en el plato vacío

rubens cebollas lágrimas
más rubens más cebollas
más lágrimas

tantas historias
negros indigeribles milagros
y la estrella de oriente


emparedada
y el hueso del amor
tan roído y tan duro
brillando en otro plato

este hambre propio
existe
es la gana del alma
que es el cuerpo

es la rosa de grasa
que envejece
en su cielo de carne


mea culpa ojo turbio
mea culpa negro bocado
mea culpa divina náusea

no hay otro aquí
en este plato vacío
sino yo
devorando mis ojos
y los tuyos.

 

CANTO VILÃO

e de repente a vida
no meu prato de pobre
um magro pedaço de celeste porco
aqui no meu prato

observar-me
observar-te
ou a mosca matar sem malícia
aniquilar a luz
ou fazê-la

fazê-la
como quem abre os olhos e escolhe
um céu farto
no prato vazio

rubens cebolas lágrimas
mais rubens mais cebolas
mais lágrimas

tantas histórias
negros indigeríveis milagres
e a estrela do oriente

emparedada
e o osso do amor
tão roído e tão duro
brilhando noutro prato

esta fome própria
existe
é a gana da alma
que é o corpo

é a rosa de gordura
que envelhece
no céu de carne

mea culpa olho turvo
mea culpa negro bocado
mea culpa divina náusea

não há outro aqui
neste prato vazio
afora eu
devorando os meus olhos
e os teus

(De Canto Villano, 1972-1978)

 

 

MALEVITCH EN SU VENTANA

I


ah mon maitre
me has engañado como el sol a sus criaturas
prometiéndome un día eterno todos los días

de lo inexacto me alimento
y toda el agua de los cielos es incapaz de lavar
esta ínfima y rebelde herida de tiempo que soy

polvo rebelde sí
con los cabellos de polvo desordenado
para siempre jamás por un peregrino pensamiento
persigo toda sagrada inexactitud

suave violencia del sueño
palabra escrita palabra borrada
palabra desterrada
voz arrojada del paraíso
catástrofe en el cielo de la página
hinchada de silencios

aquí el ojo comienza a desteñirse
a no ser
y la voz se quiebra inaudita
( alguien ha perdido definitivamente su balsa )
a la deriva sobre el océano
sopla el viento de la indiferencia
por la puerta entreabierta llega la aurora
más silenciosa y pálida que nunca

es el día sobreviviente con su carreta vacía
sigue brillando la lámpara penitente
pero no creo en su luz
ni compro la muerte con nombre de pez
ni es cierto que bajo su escama mortecina
dios nos contempla

II


sí señores
este es otro día inevitable
en que me alimento de lo inexacto
de la monstruosa fruta que aletea
de la huella en el aire
del recuerdo
del azogue perdido en alguna alcantarilla
de lo irrecuperable que se acumula y agiganta
en afiebrados cristales
y cruza el aire como una llama
recién nacida

flamante cuerpo en pugna con el sol

la farsa diaria desaparece tras una mano
que enciende y apaga a voluntad
su propia luz
penitente claridad
arde el oscuro aceite de la conciencia
sobre esta mesa que es todo el mundo

al otro lado de la ventana
alguien ha resuelto el enigma
para entrar en la vida basta un puerta
el otro lado sigue igual
nada que la luz no atraviese y oculte
nada que no sea la antigua y sagrada inexactitud
que golpea maderos bate alas
e incendia gargantas y corazones

 

III


hoy me despierta
con su delgado resplandor abstracto la esperanza
la oscuridad del naufragio
se escapa como un gato por la ventana
y alguien vuelve

alguien vuelve desvelado y sin prisa
con un pequeño rectángulo de eternidad entre las manos

 

MALÉVITCH EM SUA JANELA

I

ah mon maître
enganaste-me como o sol às suas criaturas
prometendo-me um dia eterno todos os dias

do inexato me alimento
e toda a água dos céus é incapaz de lavar
esta ínfima e rebelde ferida de tempo que sou

pó rebelde sim
com os cabelos de pó desordenado
para sempre jamais por um peregrino pensamento
persigo toda a sagrada inexatidão

suave violência do sonho
palavra escrita palavra apagada
palavra desterrada
voz arrancada do paraíso
catástrofe no céu da página
prenhe de silêncios

aqui o olho começa a perder a tinta
a não ser
e a voz quebra-se inaudita
(alguém definitivamente perdeu a balsa)

à deriva sobre o oceano
sopra o vento da indiferença
pela porta entreaberta chega a aurora
mais silenciosa e pálida do que nunca

é o dia sobrevivente com o seu carro vazio
continua brilhando a lâmpada penitente
mas não creio em sua luz
nem compro a morte com o nome de peixe
nem é certo que sob a sua escama mortiça
deus nos contemple

 

II

sim senhores
este é outro dia inevitável
no qual me alimento do inexato
da monstruosa fruta que voeja
da marca no ar
da lembrança
do azougue perdido em algum bueiro
do irrecuperável que se acumula e se agiganta
em cristais febris
e atravessa o ar como uma chama
recém nascida

flamante corpo em luta com o sol

a farsa diária desaparece detrás da mão
que acende e apaga sozinha
a sua própria luz

penitente claridade
arde o escuro azeite da consciência
sobre esta mesa que é todo o mundo

do outro lado da janela
alguém resolveu o enigma
para entrar na vida basta uma porta
o outro lado segue igual
nada que a luz não cruze e oculte
nada que não seja a antiga e sagrada inexatidão
que bate nas vigas bate as asas
e incendeia gargantas e corações

 

III

hoje desperta-me
com o seu magro esplendor abstrato a esperança
a escuridão do naufrágio
foge como um gato pela janela
e alguém volta
sim
alguém volta mal dormido e sem pressa
com um pequeno retângulo de eternidade entre as
mãos

(De Ejercicios materiales; 1978-1993)

Traduções: Horácio Costa

 

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Blanca Varella
, poeta peruana, nasceu em Lima, em 1926. Estudou Letras e Educação na Universidad de San Marcos, onde conheceu importantes intelectuais do período. Em 1949, radicou-se em Paris, onde conheceu Octavio Paz. Viveu também em Florença e Washington, onde atuou como tradutora e jornalista. Publicou Esse puerto existe (1950), Luz de día (1963), Valses y otras confesiones (1971), Canto villano (1978) e Como Dios en la nada (antologia poética, 1949-1998). Recebeu o Prêmio Octavio Paz de Poesia e Ensaio em 2001. Reside atualmente em Lima.

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