CHARLES BAUDELAIRE
Tradução e nota: Luiz Carlos de Brito Rezende
Fim das Flores de Baudelaire
Suas Flores do Mal foram publicadas em 1857. Pouco depois, alguns poemas foram censurados pela Justiça. Para a segunda edição, em 1861, Baudelaire criou novos poemas e uma nova seção, dedicada a Paris. Pensou num epílogo, nunca acabado. Tratava-se de uma ode em terza rima, cujo modelo era – claro – Dante. Duas cartas, de Baudelaire a seu editor falam dessa ode-epílogo, ambas do começo de julho de 1860 (a segunda edição das Flores, em preparação, foi publicada em 1861). A grande novidade desta edição era a seção das Cenas de Paris (Tableaux Parisiens). O epílogo nunca foi concluído. Um longo poema escrito em 1859, A Viagem (Le Voyage) tornou-se epílogo: uma alegoria de nossa passagem por tudo. Já no projeto abandonado, Baudelaire realçava o papel central de Paris, “capital moderna”, objeto também de seus poemas substanciais do período 1859-1860, segundo e grande período criativo do poeta. O inacabado desta ode permite ousadias. Transpus a primeira parte, mais acabada, em terza rima “livre”, mas não tanto... A segunda foi transposta com o sentido métrico/rímico do “pierrô lunar” de um Laforgue:
Le coeur content, je suis monté sur la montagne
D'où l'on peut contempler la ville en son ampleur,
Hôpital, lupanar, purgatoire, enfer, bagne,
Où toute énormité fleurit comme une fleur.
Tu sais bien, ô Satan, patron de ma détresse,
Que je n'allais pas là pour répandre un vain pleur;
Mais, comme un vieux paillard d'une vieille maîtresse,
Je voulais m'enivrer de l'énorme catin
Dont le charme infernal me rajeunit sans cesse.
Que tu dormes encor dans les draps du matin,
Lourde, obscure, enrhumée, ou que tu te pavanes
Dans les voiles du soir passementés d'or fin,
Je t'aime, ô capitale infâme! Courtisanes
Et bandits, tels souvent vous offrez des plaisirs
Que ne comprennent pas les vulgaires profanes.
Subi o morro, todo contente:
do alto vi tudo,
toda a cidade em frente:
cru, o carandiru
hoje é livro: inferno, purgatório, puteiro:
tanto flora o mal feito flor
de câncer: nu, sem força, zombeteiro,
veleja ali, em glória alada um urubu
faceiro: novas do demônio.
(Mas não vim aqui p’ra chorar em vão...)
Amante consentido, ainda quero caso,
putona: você dá p’ra todos, tudo!
Você dorme envolta de aurora,
pesada, rouca, no escuro;
e só agora sai montada,
já moitinha, pronta p’ro... Eu extudo!...
e te amo, capital infame! Alma bandida!
Só por ti, mudo, escrevo muito,
polegar.
* * *
Tranquille comme un sage et doux comme un maudit
Tranqüilo como um sábio, suave e maldito,
... j'ai dit :
... tenho dito :
Je t'aime, ô ma très belle, ô ma charmante...
te amo, linda cidade, meu feitiço...
Que de fois...
E quanto...
Tes débauches sans soif et tes amours sans âme,
Tuas noitadas sem sede e os amores sem alma,
Ton goût de l'infini
Teu gosto de infinito
Qui partout, dans le mal lui-même, se proclame...
Que em tudo se anuncia, até no mal...
Tes bombes, tes poignards, tes victoires, tes fêtes,
Tuas bombas, teus punhais, tuas vitórias e festas,
Tes faubourgs mélancoliques,
Teus subúrbios insípidos,
Tes hôtels garnis,
Teus cortiços,
Tes jardins pleins de soupirs et d'intrigues,
Teus parques cheios de suspiros e de intrigas,
Tes temples vomissant la prière en musique,
Teus templos que vomitam preces, música,
Tes désespoirs d'enfant, tes jeux de vieille folle,
Tuas angústias, criança – matrona, tuas manhas,
Tes découragements;
Teus desânimos;
Et tes jeux d'artifice, éruptions de joie,
Teus jogos de artifício, explosões de alegria
Qui font rire le Ciel, muet et ténébreux.
Que fazem rir o céu, a nuvem negra: mas cala.
Ton vice vénérable étalé dans la soie,
Teu vício venerável, seda só: “sorria!”
Et ta vertu risible, au regard malheureux,
Tua virtude risível, olhos de ressaca
Douce, s'extasiant au luxe qu'il déploie...
em êxtase, “quanto luxo não sabia!”
Tes principes sauvés et tes lois conspuées,
Os princípios salvos, leis conspurcadas,
Tes monuments hautains où s'accrochent les brumes,
Teus monumentos mais altos que as nuvens,
Tes dômes de métal qu'enflamme le soleil,
Sol que lhes realça as cúpulas,
Tes reines de théâtre aux voix enchanteresses,
Tuas atrizes, quanta beleza !
Tes tocsins, tes canons, orchestre assourdissant,
Teus faróis, tuas sirenes, orquestra ruidosa,
Tes magiques pavés dressés en forteresses,
As calçadas, quase uma fortaleza...
Tes petits orateurs, aux enflures baroques,
Teus anjinhos barrocos
Prêchant l'amour, et puis tes égouts [ruisseaux, biffé] pleins de sang,
Beijam amor; teus rios, merda
S'engouffrant dans l'Enfer comme des Orénoques,
Indo ao Inferno como um Amazonas
Tes anges, tes bouffons neufs aux vieilles défroques
Arrastando anjos – palhaços – à nova zona:
Anges revêtus d'or, de pourpre et d'hyacinthe,
Anjos alquímicos, de ouro, púrpura,
Ô vous, soyez témoins que j'ai fait mon devoir
Jázico azul – fiz meu dever
Comme un parfait chimiste et comme une âme sainte.
De puro químico: ex-
Car j'ai de chaque chose extrait la quintessence,
Traí de nada, tudo:
Tu m'as donné ta boue et j'en ai fait de l'or.
A lama que me deste, virei ouro
e acabou.
*
Charles Baudelaire (1821-1867), poeta francês. É autor de As Flores do Mal, Pequenos Poemas em Prosa e Os Paraísos Artificiais, além de ensaios de crítica literária, musical e de artes plásticas. Traduziu os Contos de Edgar Allan Poe para o francês e foi um dos primeiros entusiastas do teatro musical de Richard Wagner. Boêmio, amante da atriz Jeanne Duval, era amigo do álcool e dos entorpecentes e fez estudos de ocultismo. Seus poemas foram censurados, sob acusação de obscenidade. Baudelaire foi a principal influência na poesia francesa do final do século XIX até meados do século XX, sendo fundamental para a formação iterária de autores como Mallarmé, Rimbaud, Verlaine, Lautréamont, entre outros, e foi incluído por André Breton entre os principais santos do surrealismo.
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