ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 CHYIO-NI



 

 

tesão de mulheres

raízes profundas

violetas selvagens

 

 

 

ávida a lua vendo

somos nós deus

mundovida adeus

 

 

 

prima neve leve

uma palavra ela derrete

a mesma palavra se repete

 

 

 

sonhos-tempestade

crisântempo tatame

desabrochar q morde

 

 

 

d som zen sonho

borboleta

pétalas perpétuas

 

 

 

sombra d.uma agulha

fluxo d.água

uma libélula mergulha

 

 

 

rio d trevas úmidas

fluxo escuro imune

e agora, vagalume?

 

 

a neve e eu refletidas

na água reluzem

duas vidas

 

 

 

assobiar d cantos

d um jeito ou d outro

resposta ventando

 

 

 

e com a borboleta o voo:

sonho ou ponta da pena?

cifra nas asas da caneta

 

 

Tradução: Walter Vetor

 

 

 

 



 

*

Nascida num século de transição (toda poética sincrônica retém em si o germe de sua própria saturação), o dezoito, no ano de 1703, no período conhecido como Edo, uma espécie de época de ouro da poesia japonesa, Chyio-ni é sem dúvida a mais importante poeta mulher japonesa que se têm notícia e sem dúvida situada entre os grandes nomes inventores do haiku, a supra-forma de poesia na terra do sol nascente. discípula de Bashô, o enorme, recebeu a lanterna através dos discípulos diretos do mestre-inventor, em particular de Shikô e depois de Otsuyu - este já da segunda geração. Buson, outro monstro, apontou certo emocionalismo em sua poesia (Chyio-ni começou a escrever aos 7 anos, aos 19 era uma quase pop-star e sente-se mesmo nos poemas da juventude este emocionalismo combatido por Buson e q depois se saturaria em síntese na poesia mais matura dela. morta aos 72, após os 50 nota-se uma mudança radical, época esta em que tornou-se monja zen-budista). Depois o próprio Buson a convidou para prefaciar sua última antologia –dele - em vida. Prova da redenção desta antilírica moderníssima q constitui a poesia de Chyio-ni. seus temas são curiosos, indo da metalinguagem radical (derrete a palavra e a mesma se repete) até a máxima emoção vendo o tesão feminino nas violetas selvagens (a cor, o cheiro, o sabor, a textura? vagina-flor a lembrar o “bocetadas em flor“ q nosso Sousândrade alude em seu haikítico Tatuturema). Mas de onde pulsa tamanha variação de ação e assimilação d temas e meta-temas? Chyio-ni gravita (vive em greve) em constante hesitação entre o ícone e o espírito, poesia grávida e lívida. Tentei na tradução arrancar o açúcar de confeiteiro com que eventualmente se salpica a poética de salto no vazio e a verdadeira viagem ao desconhecido da linguagem chyiônica. Pensei em estruturar uma tradução pedagógica das esculturas fônicas q são os kanji para auxiliar o leitor mas isso seria buscar a essência e a essência como ensina Valéry é contra a vida. Creio q no haiku só traduzindo-o se chega ao seu interior. ou lendo em japonês. Conheço muito pouco da língua japonesa. Me aventuro como um carateca faixa-branca no tatame da página vazia, sabendo dos percalços e dos riscos. poesia é risco, tradução é um perigo, tradução de haiku é escalar o monte Fuji de regata no inverno, risco d vida pro poema e pro poeta/tradutor. A paronomásia japonesa, q eles chamam kakekotoba, é um labirinto q só com um treinamento zen d concentração e não-ação pra se achar a saída. E a poesia é a meu ver uma vida / viagem só ida, sem saída. isso em haiku é explícito, nele exige-se o exímio. Há um um detalhe curioso aqui: o povo do sol nascente tem em duas mulheres murasaki shikubi e sei-shonagon - os pilares de sua literatura. a primeira escreveu um diário, a outra um romance. faltava uma poeta e Chyio-ni estava ali, na hora e no lugar certos. Se Bashô é o inventor por excelência, aquele q deu ao haiku o posto de alta poesia e o elevou a ser a mais conhecida forma de poesia japonesa no mundo todo, Buson lhe deu o design (conhecido como haiga) e Issa o libertou das facilidades e da redundância, Chyio-ni imprimiu no haikai a cadência antilírica e a dose exata d dinamite (voz d mulher durona e militante, como Safo, Sor Juana, Emily Dickson, Yoko Ono). É a continuadora de Bashô, a antecedente direta de Buson, pouco mais novo q ela. Issa, o outro dinamitador, possivelmente o mais revolucionário poeta japonês de todos os tempos (“a via do haiku é a mesma de Buda e Confucio. Aqueles que se esquecem do verdadeiro sentido desse caminho, restringindo-se apenas a copiar uma fórmula, são enganadores“, Kobayashi Issa) deve muito aos três e me arrisco a dizer ser muito próximo deste antilirismo extremamente moderno d Chyio-ni, extremamente próximos do olho cínico q Rogério Sganzerla toma para definir o cinema d invenção, característico da linguagem iconômica do haikai. Q outra forma d poesia pode ser mais cinematográfica q este instantes perfuradores de pedras?

 

 

walter vetor | verãoutono | 2012

 

 

Leia outros poemas de Chyio-Ni, traduzidos por Alice Ruiz.

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