HENRI MICHAUX
MAGIA
I
Antigamente eu era muito nervoso. Agora estou num novo caminho:
Coloco uma maçã em cima da mesa. Depois me coloco dentro da maçã. Que tranquilidade!
Isso parece simples. Entretanto, havia vinte anos que tentava; e não teria conseguido, querendo começar por ali. Por que não? Talvez me sentisse humilhado em virtude de seu tamanho diminuto e de sua vida opaca e lenta. É provável. Os pensamentos da camada inferior raramente são belos.
Então comecei de outra forma e me uni ao Escalda.
Em Anvers, onde eu o encontrava, o Escalda é largo e importante e movimenta um grande fluxo. Ele recebe os navios de alto bordo que se aproximam. É um rio, um verdadeiro rio.
Decidi unir-me a ele. Permanecia no cais o dia inteiro. Mas eu me dispersava em numerosas e inúteis perspectivas.
E depois, à minha revelia, olhava as mulheres de vez em quando, e isso não condiz com um rio, nem com uma maçã, nem com nada na natureza.
Então o Escalda e mil sensações. O que fazer? Subitamente, tendo renunciado a tudo, encontrei-me..., não direi em seu lugar, pois, na verdade, nunca foi exatamente assim. Ele corre incessantemente (eis uma grande dificuldade) e desliza em direção à Holanda onde encontrará o mar e a altitude zero.
Retorno à maçã. Lá, novamente, houve tateios, experiências; é uma longa história. Partir é pouco cômodo, assim como falar sobre isso.
Mas, em uma palavra, posso dizer-lhes. Sofrer é a palavra.
Quando cheguei à maçã, estava congelado.
II
Assim que a vi, desejei-a.
De início, para seduzi-la, disseminei planícies e planícies. Planícies saídas do meu olhar estendiam-se doces, amáveis, reconfortantes.
As idéias de planície foram ao encontro dela e, sem o saber, ela as percorria, sentindo-se satisfeita.
Percebendo-a bem segura, eu a possuí.
Isso feito, depois de um pouco de repouso e quietude, voltando ao meu natural, deixei reaparecerem minhas lanças, meus trapos, meus precipícios.
Ela sentiu um grande frio e que tinha se enganado completamente a meu respeito.
Ela foi embora, a fisionomia desfeita e esvaziada, como se tivesse sido roubada.
III
Acho difícil acreditar que isso seja natural e conhecido por todos. Às vezes eu fico tão profundamente entranhado em mim mesmo numa bolha única e densa que, sentado sobre uma cadeira, a menos de dois metros da lâmpada colocada sobre a mesa de trabalho, é com grande dificuldade e após um longo tempo que, apesar dos olhos bem abertos, consigo lançar um olhar até ela.
Uma emoção estranha toma conta de mim quando dou esse depoimento sobre o círculo que me isola.
Parece-me que um obus ou até mesmo um raio não conseguiriam me atingir de tantas camadas de todas as partes que tenho aplicadas sobre mim.
Simplesmente, seria bom que a raiz da angústia estivesse enterrada por algum tempo.
Nesses momentos eu tenho a imobilidade de uma cova.
IV
Este dente da frente cariado me enfiava as suas agulhas muito acima da raiz, quase sob o nariz. Terrível sensação!
E a magia? Talvez, mas então é preciso alojar-se em bloco quase sob o nariz. Que desequilíbrio! E eu hesitava, ocupado com outras coisas, um estudo sobre a linguagem.
Nesse momento uma velha otite, que dormia há cinco anos, despertou com sua fina perfuração no fundo da orelha.
Portanto, eu precisava me decidir. Molhado, melhor lançar-se à água. Abalado em sua posição de equilíbrio, melhor procurar outra.
Abandono então o estudo e me concentro. Em três ou quatro minutos, elimino a dor da otite (eu conhecia o caminho). Quanto ao dente, precisaria do dobro de tempo. Ela ocupava um lugar tão ridículo, quase sob o nariz. Por fim ela desaparece.
É sempre assim; só a primeira vez é uma surpresa. A dificuldade é encontrar o lugar da dor. Assegurado o lugar, é só dirigir-se naquela direção, às apalpadelas na sua noite, procurando circunscrevê-lo (por não terem concentração, os ansiosos sentem a dor em todos os lugares), depois, à medida que é circundado, deve-se observá-lo mais cuidadosamente, pois ele se torna menor, menor, dez vezes menor que uma ponta de agulha; todavia, você o vigia sem descanso, com atenção crescente, projetando nele sua euforia até que não haja diante de você nenhum núcleo de dor. Você realmente o encontrou.
Agora, é preciso permanecer ali sem esforço. Cinco minutos de concentração devem produzir uma hora e meia ou duas horas de calma e insensibilidade. Falo em relação aos homens que não são especialmente fortes ou dotados; por sinal é o “meu tempo”.
(Por causa da inflamação dos tecidos, subsiste uma sensação de pressão, de pequeno volume isolado, como subsiste após a injeção de um líquido anestésico.)
V
Sou tão fraco (eu o era, sobretudo), que se pudesse coincidir em espírito com o que quer que fosse, eu seria imediatamente subjugado e engolido por ele e estaria inteiramente sob sua dependência; mas eu fico de olho, atento, antes aferrado a ser sempre muito exclusivamente eu.
Graças a essa disciplina, agora tenho chances cada vez maiores de nunca coincidir com nenhum espírito e de poder circular livremente nesse mundo.
Melhor assim! Tendo me fortalecido a esse ponto, lançarei um desafio ao mais poderoso dos homens. O que a sua vontade me faria? Eu me tornei tão agudo e circunstanciado que, estando diante dele, ele não conseguiria encontrar-me.
UMA CABEÇA SAI DO MURO
Tenho o hábito de apagar a luz, à noite, bem antes de estar esgotado pelo cansaço.
Depois de alguns minutos de hesitação e de surpresa, durante os quais espero talvez me comunicar com algum ser, ou que um ser se aproxime de mim, vejo uma cabeça enorme de quase dois metros de extensão, que, tão logo formada, investe sobre os obstáculos que a separam do espaço aberto.
Por entre os fragmentos do muro perfurado por sua força, ela aparece no exterior (sinto-a mais do que a vejo) toda machucada e revelando os traços de um esforço doloroso.
Ela vem com a obscuridade, há meses, regularmente.
Se compreendo bem, é a minha solidão que no momento me pesa, da qual aspiro subconscientemente sair, sem saber ainda como, e que exprimo desse modo, encontrando nisso, sobretudo no mais forte dos golpes, uma grande satisfação.
Essa cabeça vive, naturalmente. Ela tem sua vida.
Ela se lança assim milhares de vezes através dos tetos e janelas, com toda velocidade e com a obstinação de uma biela.
Pobre cabeça!
Mas para sair realmente da solidão é preciso ser menos violento, menos nervoso, e não ter uma alma que se contente com um espetáculo.
Às vezes, não somente ela, mas eu mesmo, com um corpo fluido e duro com que me sinto, bem diferente do meu, infinitamente mais móvel, maleável e inatacável, invisto por minha vez com impetuosidade e sem descanso, sobre portas e muros. Adoro me lançar em linha reta sobre o armário de vidro. Eu bato, bato, bato, estripo, tenho satisfações sobre-humanas, ultrapasso sem esforço o furor e o elã dos grandes carnívoros e das aves de rapina, sinto um arrebatamento além das comparações. Em seguida, entretanto, refletindo, fico muito surpreso, fico cada vez mais surpreso que depois de tantos golpes o armário de vidro não tenha rachado, que a madeira não tenha sofrido um simples arranhão.
UM CAVALO MUITO PEQUENO
Eu criei na minha casa um pequeno cavalo. Ele galopa no meu quarto. É a minha distração.
De início, eu tinha algumas preocupações. Eu me perguntava se ele cresceria. Mas minha paciência foi recompensada. Ele tem agora mais de cinquenta e três centímetros e come e digere uma comida de adulto.
A verdadeira dificuldade vem da parte de Hélène. As mulheres não são simples. Um nada de excremento as indispõe. Desequilibra-as. Elas não são mais as mesmas.
“De um traseiro tão pequeno, eu lhe dizia, pode sair muito pouco excremento”, mas ela... Enfim, tanto pior, ela não está mais em questão agora.
O que me inquieta é outra coisa, são, em certos dias, as súbitas e estranhas transformações do meu cavalo. Em menos de uma hora, sua cabeça infla, infla, seu dorso se encurva, se arqueia, se desfia e tremula ao vento que entra pela janela.
Oh! Oh!
Eu me pergunto se ele não me engana ao se passar por um cavalo; pois mesmo pequeno, um cavalo não se desfralda como uma bandeira, não tremula ao vento mesmo que seja por alguns instantes somente.
Eu não gostaria de ter sido enganado, depois de tantos cuidados, depois de tantas noites que passei a velá-lo, defendendo-o dos ratos, dos perigos sempre próximos, e das febres da juventude.
Às vezes ele se perturba por se ver tão nanico. Ele se transtorna. Ou, atormentado pelo cio, ele dá saltos enormes por cima das cadeiras e começa a relinchar, a relinchar desesperadamente.
Os animais fêmeas da vizinhança atraem sua atenção, as cadelas, as galinhas, as mulas, as ratas. Mas é tudo. “Não, decidem elas, cada uma por si, presa ao seu instinto. Não, não sou eu que devo responder.” E até o momento nenhuma fêmea respondeu.
Meu pequeno cavalo me olha com desânimo, com furor nos dois olhos.
Mas de quem é a culpa? Minha?
Traduções: Izabela Leal
Leiam outras traduções de Michaux.
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Henri Michaux nasceu em 24 de maio de 1899, em Namur, Bélgica, e morreu em 1984, com 85 anos, em Paris. Poeta, pintor e viajante, trabalhou também durante a época do Surrealismo, embora esta informação sirva somente para situar sua produção. Michaux evitou ser rotulado de surrealista ou de qualquer outra coisa. Com uma obra extensa, tanto na poesia quanto nas artes plásticas, seu relato de maior sucesso como viajante foi "Um bárbaro na Ásia" (*), uma espécie de diário de andanças pelo continente. Também fez experiências com a alteração da consciência, como desenhos e poemas sob e sobre a influência de drogas alucinógenas, em especial a mescalina. Este não foi seu principal mote, mas é um dos dados mais divulgados sobre a vida do poeta. "Escrita livre", "temperamento particular", consciente da solidão intrínseca da condição humana e por vezes irônico e sarcástico; apesar destes índices, a melhor maneira de entrar em contato com Michaux, claro, é lendo-o, mas não só: viver o instante da leitura, o momento, que nunca é preso por palavras. Afinal, segundo ele, as palavras chegam "mais tarde, sempre mais tarde". |