ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 NATHALIE HANDAL



 

 

Amor e Estranhamento

 

Flávia Rocha

 

A poeta de origem palestina Nathalie Handal é hoje, pode-se dizer, uma das vozes representativas da nova poesia americana, cada vez mais interessada numa espécie de miscigenação das culturas locais do mundo. Nathalie é daquelas poetas intermitentes, que viaja continentes numa missão singela, diplomática, humanística através da poesia. Eu a conheci em 2005, numa viagem da revista Rattapallax ao World Social Fórum em Porto Alegre, de que participaram também o poeta sul-africano Breyten Breytenbach e Fabrício Carpinejar.  Iniciamos assim uma amizade poética, mantendo uma correspondência de tempos em tempos. Acompanho desde então a publicação de seus livros (e subseqüentes premiações!) sempre tão surpreendentes, que falam de expatriamento, saudade, amor, um misticismo cultivado, questionador. Uma voz de fundo antigo, que conhece rios, civilizações, ciência e barbárie. Mas também uma voz pessoal, íntima, que conhece seus próprios universos. Apresentar a poesia de Nathalie Handal em português é uma honra e um privilégio.

 

A seguir, uma seleção de poemas publicados originalmente em inglês: Brokenmusic e Javier, no livro Love and Strange Horses (University of Pittsburgh Press, 2010); Freedom, na Guernica Magazine; The Courtyard of Colegiata del Salvador, no livro Poet in Andalucía (University of Pittsburgh Press, 2012.)

 

 

 

 Brokenmusic

 

Maybe when you are ready for music

      every instrument around is broken

Maybe when you are ready for freedom

      your heart can no longer beat

Maybe when you grow madness

      you find what you were meant to see

Maybe if you show me

      how desire begs

play a tune in E minor

      the slow river of wings will

reveal itself.

 

But it had to come to this instead:

      a broken violin

      the heart, unsolved

      an argument with Jesus or Mohammed

—exile has its ways.

      Now your breath is a flat tune

      limping its way around

      the wake of your mouth.

     

 

Músicaquebrada

 

Talvez quando estiver pronto para música

cada instrumento ao redor estará quebrado

Talvez quando estiver pronto para liberdade

seu coração terá parado de bater

Talvez quando estiver louco

achará o que deveria ter visto

Talvez se me mostrar

como o desejo implora

para tocar uma melodia em Mi menor

      o rio lento das asas

se revele.

 

Mas o que ficou foi isto:

      um violino quebrado

      o coração, mal resolvido

      uma discussão com Jesus ou Mohammed

      —o exílio encontra seus caminhos.

      Agora sua respiração tem uma melodia vazia

que se arrasta em torno

do despertar da sua boca.

 

 

Freedom

                  The Arab Revolt 2011

 

The story begins

with a song—

it’s stubborn,

breaks air

into history;

for a minute

it’s quiet

to allow everyone in,

and then it raises

to celebrate voices,

clears its throat,

says:

We will bury the smoke that blinds us,

plant our soul on every page,

we will divide our pain into towers

and fill our hands with rain,

we will arrive on time every day

to chase you away,

we will no longer be afraid

of what makes us shiver under the sun,

we will leave our names in every teahouse,

our messages at the bottom of every cup.

 

Light will no longer be illegal

nor will hope—

even the guards will count

the scars on their tongue

and prepare to heal,

even the children will keep

homeland in the mirror

and prepare to see,

even the women will turn

the fire inside the door

off, and prepare to live.

 

We will never whisper again.

There is evidence, there is evidence,

that now we can hear

the sounds that lift freedom

across a continent,

and say, Salaam to you,

welcome to my country.

 

 

Liberdade

 

Revolta Árabe, 2011

 

 

Começa

com uma música—

é teimosa,

quebra o ar

em história;

por um momento

fica quieta

para deixar todos entrarem,

e então se levanta

para celebrar as vozes,

tosse, diz:

enterraremos a fumaça que nos cega,
plantaremos nossa alma em cada página

dividiremos nossa dor em torres

e encheremos nossas mãos com chuva,

chegaremos na hora todos os dias

para lhe expulsar

não teremos mais medo

do que nos faz tremer sob o sol,

deixaremos nossos nomes em cada casa de chá,

nossas mensagens no fundo de cada xícara.

 

A luz não será mais ilegal

nem a esperança—

até os guardas irão contar

as cicatrizes em suas línguas

e se preparar para curar,

até as crianças irão guardar

a terra no espelho

e se preparar para ver,

até as mulheres irão apagar

o fogo dentro da porta

e se preparar para viver.

 

Nunca mais iremos sussurrar.

Há evidências, há evidências,

de que agora podemos ouvir

os sons que dispersam liberdade

por um continente,

e dizem, Salaam para você,

bem-vindo ao meu país.

 

 

The Courtyard of Colegiata del Salvador

 

We are strange when we’re lost,

his father told him.

Saïd didn’t hear the rest.

He couldn’t count the waves

that led him across

the Strait of Gibraltar

so he tore his memory,

left where he came from behind,

and learned to pray differently.

He knelt instead of bowed.

He counted stones,

drew the church columns,

spoke any language but his own.

Years later, sitting

in a courtyard he is startled

by the loudness of the wind,

almost like the start of the adhan.

He feels a small fire

alongside his heart,

and hears his father’s voice—  

we are nothing

but an image

growing from our sleep—

how do we explain

our journey to others?

He looks at the grounds of the courtyard

where a mosque once stood

and understands what his father hadn’t—

what’s sacred always returns.

 

 

*In Granada, el Albayzín is the old Moorish quarter of the city, facing the Alhambra. Today’s Albayzín used to be the Alcazaba, the Moorish citadel, and the oldest part of the Alhambra. The courtyard of what was once the Albayzín's great mosque is now attached to the church of the Colegiata del Salvador. The adhan is the Muslim call to prayer. Moroccans form one of the largest groups of immigrants in Spain.

 

 

 

O Pátio da Colegiata del Salvador

 

 

Somos estranhos quando estamos perdidos,

disse o pai.

Saïd não ouviu o resto.

Não conseguia contar as ondas

que o conduziram através

do Estreito de Gibraltar

então se desfez da memória,

deixou para trás de onde veio,

e aprendeu a rezar de outro jeito.

Ajoelhava-se ao invés de curvar-se.

Contava pedras,

desenhava as colunas da igreja,

falava qualquer língua que não a sua.

Anos depois, sentado

num pátio se exalta

com o som alto do vento,

quase como o começo do adhan.

Sente um pequeno incêndio

em volta do coração,

e escuta a voz do pai—

não somos nada

a não ser uma imagem

emergindo do nosso sono—

como explicamos

nossa jornada aos outros?

Olha para o lugar no pátio

onde um dia havia um mosteiro

e entende o que seu pai não entendeu—

que o sagrado sempre retorna.

 

 

* Em Granada, el Albayzín é um antigo bairro mouro que fica em frente à Alhambra. A Albayzín de hoje costumava ser Alcazaba, a cidade moura, a parte mais antiga de Alhambra. O pátio do que um dia fora o grande mosteiro de Albayzín fica hoje anexo à igreja Colegiata del Salvador. Adhan é o chamado muçulmano à oração.  Os marroquinos são um dos maiores grupos de imigrantes da Espanha.

 

 

Javier

 

 

Javier gave me a rose. The next day Juanita had the same rose. The day after, the rose was on the lieutenant’s desk. In the afternoon the rose was on Mathida’s bed table. When I returned to my room, the rose was no longer there. I saw Javier. I never said anything. But by the way he looked at me, I knew there was something we were both going to miss.

 

 

I opened the windows to the Zocalo and asked Javier to stand behind me, as in a movie that we both hated but kept watching because we needed the love scenes, needed to see voices when we touched each other, needed to hear the debates of others so that we didn’t hear our own. I asked him, Did you have a lonely childhood? Kill a horse? Marry a shadow? I asked him, Can I suck your nipple or are you suppose to be sucking mine? He said, mujer—because he never called me by my name—turn around; the pages of silence can hold only one of us.

 

 

Amor, donde esta la ventana?And why are your lips swollen, the back of your knees tattooed? Let me worry about unbuttoning your pants, let me worry about where you will sleep, you on the sofa, I in your dreams; you in my dreams, I on the sofa. You see we spoke better when we were where the other once was. Amor, you see, since we picked the wrong God to pray to, here we are on Avenida Juárez, staring at a photo of Magdalena and still praying we could stop licking lust out of each other.

 

 

 

It was a day when cockroaches and beer plead for space with the phantoms in the room. The day Javier and I lay with an unsigned paper between us, when “La Malagueña” was playing but we could not sing along. We had grown deaf of voice, song, melody. We had grown unamused by the icons in our books, by speeches presidents and lovers gave. We needed to get back to the night when he invited me out, said Caballero, dos palomas y un vino rojo—Jubileo de Guadalupe, Baja, Mexico—por favor. When he took my closeness off, smelled my body as if he was looking for mercy, we went somewhere together, unbroken.

 

 

 

He undid my corset, asked for two kisses; he wanted both of me—the one I show and the one I hide. Perhaps I didn’t understand so I moved closer, his lips full. I wanted to see something else but I didn’t ask. Then another woman came in the room. He opened her eyes and her blouse, closed his eyes and my shirt. Here we were, the three of us, uncovered—not knowing if her arrival meant our departure, or if departure was not knowing when we were dressed or undressed.

 

 

 

Javier bought a tamarindo, I bought a manzana. We both blamed each other, then counted the lemons for tequila. It was a ritual, or a prayer session we did instead of singing “Ave Maria.” Dios is with us, except when we are sober. You see, we discovered, Javier and I, that since hunger is difficult to get rid of, why not learn to say verses when everything around us is clear: a bare room, a mattress, a window, two tequila glasses? We understood.

 

 

 

We slept exposed. It was midday. It was another year. We thought of our marriage days. Of the child we had in August. He ate peaches and pretended nothing would ever change. And then we looked at one another and it was many years later. From someone else’s window, we heard the music we used to listen to. We meditated on whether to keep the one chair we had, since we were two and there was just one chair. We looked at life, hour after hour as if it was growing. And then I turned around, placed my hand on Javier’s heart—suddenly a cry. We had waited too long to start.

 

 

 

Javier

 

 

Javier me deu uma rosa. No dia seguinte Juanita tinha a mesma rosa. Um dia depois, a rosa estava na mesa do tenente. À tarde a rosa estava na mesinha ao lado da cama da Mathilda. Quando voltei para o meu quarto, a rosa não estava mais lá. Vi o Javier. Eu nunca disse nada. Mas do jeito que ele me olhou, eu sabia que havia algo de que nós dois sentiríamos falta.

 

 

 

Abri as janelas para Zocalo e pedi ao Javier que ficasse ali comigo, como num filme que nós dois odiamos mas continuamos assistindo porque precisávamos das cenas de amor, precisávamos ver vozes quando nos tocamos, precisávamos ouvir os debates dos outros para que não ouvíssemos o nosso. Perguntei para ele, Você teve uma infância solitária? Matou um cavalo? Casou-se com uma sombra? Perguntei, Posso lamber seu mamilo ou você que deveria lamber o meu? Ele disse, mujer—porque ele nunca me chamava pelo nome—vira; as páginas de silêncio podem apenas conter um de nós.

 

 

Amor, donde esta la ventana? E por que seus lábios estão inchados, a parte de trás dos seus joelhos tatuada? Deixe eu me preocupar em desabotoar sua calça, deixe eu me preocupar com um lugar para você dormir, você no sofá, eu nos seus sonhos; você nos meus sonhos, eu no sofá. Veja, conversávamos melhor quando estávamos onde o outro esteve. Amor, veja, desde que escolhemos rezar para o Deus errado, ficamos aqui na Avenida Juárez, olhando para a foto da Magdalena, rezando para pararmos de lamber desejo um do outro.

 

 

Foi num dia em que baratas e cerveja disputavam lugar com os fantasmas no quarto. No dia em que Javier e eu deitávamos com um papel não-assinado entre nós, quando “La Malagueña” tocava mas não conseguíamos acompanhar. Tínhamos ficado surdos de voz, música, melodia. Tínhamos ficado indiferentes aos ícones nos livros, aos discursos feitos por presidentes e amantes.  Precisávamos retornar à noite em que ele me convidou para sair, disse Caballero, dos palomas y un vino rojo—Jubileo de Guadalupe, Baja, Mexico—por favor. Quando ele me puxou para perto, cheirou meu corpo como se procurasse perdão, fomos para algum lugar juntos, inteiros.

 

 

 

Ele desamarrou meu corpete, me pediu dois beijos;  queria os dois de mim—o que eu mostro e o que escondo. Talvez eu não tenha entendido, e cheguei mais perto, os lábios dele cheios. Eu queria ver algo mais, mas não pedi. Então uma outra mulher entrou no quarto. Ele abriu os olhos, e a blusa dela, fechou os olhos e a minha camisa. Ali estávamos, nós três, descobertos—sem saber se a chegada dela significava a minha partida, ou se a partida não sabia quando estávamos vestidos ou despidos.

 

 

 

Javier comprou um tamarindo, eu comprei uma maçã. Culpamos um ao outro, depois contamos os limões para tequila. Era um ritual, ou uma sessão de rezas que fazíamos ao invés de cantar. Dios está conosco, exceto quando estamos sóbrios. Veja, descobrimos, Javier e eu, que já que é tão difícil de se livrar da fome, por que não aprender a recitar versos quando tudo em torno de nós está claro: um quarto vazio, um colchão, uma janela, dois copos de tequila? Nós entendemos.

 

 

 

Dormimos nus. No meio do dia. Em outro ano. Pensamos no nosso tempo de casados. No bebê que tivemos em agosto. Comemos pêssegos e fingimos que nada jamais iria mudar. Então olhamos um para o outro e era muitos anos depois. Pela janela de alguém, ouvimos a música que costumávamos ouvir. Meditamos se deveríamos ficar com a única cadeira que tínhamos, já que éramos dois e apenas uma cadeira. Olhamos para a vida, hora após hora como se ela estivesse se alongando.  Então eu me virei, coloquei minha mão sobre o coração de Javier—de repente um choro. Tínhamos esperado demais para começar.

 

 

 

 



 

*

Nathalie Handal, premiada poeta e dramaturga franco-americana de ascendência palestina, viveu na Europa, Estados Unidos, no Caribe, na América Latina e no mundo Árabe. Autora de diversos livros, incluindo Love and Strange Horses, vencedor do 2011 Gold Medal Independent Publisher Book Award, e Menção Honrosa no San Francisco Book Festival e no New England Book Festival. O The New York Times escreveu: “a book that trembles with belonging (and longing).” [um livro que estremece com permanência (e saudade)]. Ela é a editora do livro The Poetry of Arab Women: A Contemporary Anthology, um bestseller da Academy of American Poets e vencedor do Pen Oakland Josephine Miles Book Award, e é co-editora da antologia Language for a New Century: Contemporary Poetry from the Middle East, Asia & Beyond, descrita como  “bela conquista para o mundo da literatura” pela vencedora do Prêmio Nobel Nadine Gordimer. Participou como editora, diretora, produtora em mais de 20 peças de teatro e filmes ao redor do mundo, mais recentemente seu trabalho foi produzido pelo John F. Kennedy Center for the Performing Arts, pelo Bush Theatre e Westminster Abbey, em Londres. Recebeu bolsas da Lannan Foundation, Fundación Araguaney e é recipiente, em 2011,  do Alejo Zuloaga Order in Literature, e finalista do Gift of Freedom Award. Já leu seus poemas em diversas partes do mundo, foi entrevistada pelo programa da PBS The NewsHour com Jim Lehrer, NPR Radio, The New York TimesThe San Francisco Chronicle, Reuters, Mail & Guardian, The Jordan Times Il Piccolo; e seu trabalho foi traduzido em mais de quinze línguas. É autora do blog The City and The Writer, coluna que mantém na revista Words without Borders. Alice Walker elogia seu recente livro Poet in Andalucía como “poemas com profundidade e peso e o triste som da saudade e resolução.”  

www.nathaliehandal.com

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