OCTAVIO PAZ
OCTAVIO PAZ
O RIO
A cidade desvelada circula por meu sangue como uma abelha.
E o avião que traça um gemido em forma de S larga, os bon-
des que se derrubam nas esquinas remotas,
essa árvore carregada de injúrias que alguém sacode à meia
-noite na praça,
os ruídos que ascendem e estalam e os que deslizam e
cochicham na orelha um segredo que se arrasta
abrem o obscuro, precipícios de ais e ois, túneis de vo-
gais taciturnos,
galerias que recorro com os olhos vendados, o alfabeto sono-
lento cai na cova como um rio de tinta,
e a cidade vai e vem e seu corpo de pedra se faz em pedaços ao
chegar às minhas têmporas,
toda a noite, um a um, estátua a estátua, fonte a fonte,
pedra a pedra, toda a noite,
seus pedaços se buscam em minha fronte, toda a noite a cidade
fala adormecida pela minha boca
e é um discurso incompreensível e ofegante, um tartamudear
de águas e pedra batalhando, sua história.
Deter-se um instante, deter o meu sangue que vai e vem, vai
e vem e não diz nada,
sentado sobre mim mesmo como o yogue à sombra da
figueira, como Buda à beira do rio, deter o instante,
um só instante, sentado à beira do tempo, borrar minha
imagem do rio que fala adormecido e não diz nada e me leva consigo,
sentado à beira deter o rio, abrir o instante, penetrar
pelas suas salas atônitas até seu centro de água,
beber na fonte inesgotável, ser a cascata de sílabas
azuis que cai dos lábios de pedra,
sentado à beira da noite como Buda à beira de si
mesmo ser o piscar do instante,
o incêndio e a destruição e o nascimento do instante e a
respiração da noite fluindo enorme à beira do tempo,
dizer o que diz o rio, longa palavra semelhante à lábios,
longa palavra que não acaba nunca,
dizer o que diz o tempo nas duras frases de pedra, em vas-
tos gestos de mar cobrindo mundos.
À metade do poema me sobressalta sempre um grande desam-
paro, tudo me abandona,
não há ninguém ao meu lado, nem sequer esses olhos que desde atrás
contemplam o que escrevo,
não há atrás nem à frente, a pluma se rebela, não há come-
ço nem fim, tampouco há muro que saltar,
é uma esplanada deserta o poema, o dito não está dito,
o não-dito é indizível,
torres, terraços devastados, babilônias, um mar de sal negro,
um reino cego,
Não,
deter-me, calar, cerrar os olhos até que brote de minhas pál-
pebras uma espiga, um repuxo de sóis,
e o alfabeto ondule largamente sob o vento do sonho e a
maré cresça numa onda e a onda rompa o dique,
esperar até que o papel se cubra de astros e seja o poema
um bosque de palavras enlaçadas,
Não,
não tenho nada que dizer, ninguém tem nada que dizer, nada nem
ninguém exceto o sangue,
nada senão este ir e vir de sangue, este escrever sobre o
escrito e repetir a mesma palavra na metade do poema,
sílabas do tempo, letras rasgadas, sangue que vai e
vem e não diz nada e me leva consigo.
E digo meu rosto inclinado sobre o papel e alguém ao meu lado
escreve enquanto o sangue vai e vem,
e a cidade vai e vem pelo seu sangue, quer dizer algo, o
tempo quer dizer algo, a noite quer dizer,
toda a noite o homem quer dizer uma só palavra, dizer
ao fim seu discurso feito de pedras desmoronadas,
e aguço o ouvido, quero ouvir o que diz o homem, repetir o
que diz a cidade à deriva,
toda a noite as pedras rasgadas se buscam às apalpadelas em minha
fronte, toda a noite a água luta contra a pedra,
as palavras contra a noite, a noite contra a noite, nada
ilumina o escuro combate,
o choque das armas não arranca um relâmpago à pedra,
uma chispa à noite, ninguém dá trégua,
é um combate à morte entre imortais,
Não,
dar marcha ré, parar o rio de sangue, o rio de tinta,
reverter a corrente e que a noite, volvida sobre si mesma,
mostre suas entranhas,
que a água mostre seu coração, cacho de espelhos afogados,
que o tempo se feche e seja sua ferida uma cicatriz invisível,
apenas uma delgada linha sobre a pele do mundo,
que as palavras deponham armas e seja o poema uma só
palavra entretecida,
e seja a alma a planície após o incêndio, o peito lunar de
um mar petrificado que não reflete nada
senão a extensão estendida, o espaço inclinado sobre si mes-
mo, as asas imensas desdobradas,
e seja tudo como a chama que se esculpe e se gela na rocha
de entranhas transparentes,
duro fulgor resoluto já em cristal e claridade pacífica.
E o rio reverte seu curso, redobra suas velas, recolhe suas ima-
gens e se adentra em si mesmo.
Genebra, 1953
O CÂNTARO QUEBRADO
O olhar interior se desdobra e um mundo de vertigem e cha-
ma nasce sob a fronte daquele que sonha:
sóis azuis, verdes redemoinhos, bicos de luz que abrem astros
como romãs,
girassol solitário, olho de ouro girando no centro de uma
esplanada calcinada,
bosques de cristal sonoro, bosques de ecos e respostas e
ondas, diálogo de transparências,
vento, galope de água entre os muros intermináveis de uma
garganta de azeviche,
cavalo, cometa, foguete que se crava justamente no coração da
noite, plumas, jorros,
plumas, súbito florescer das tochas, velas, asas, invasão
do branco,
pássaros das ilhas cantando sob a fronte daquele que sonha!
Abri os olhos, elevei-os até o céu e vi como a noite se
cobria de estrelas.
Ilhas vivas, braceletes de ilhas flamejantes, pedras ardendo,
respirando, cachos de pedras vivas,
quanta fonte, que claridades, que cabeleiras sobre um
ombro obscuro,
quanto rio lá acima, e esse ressoar distante de água junto ao
fogo, de luz contra a sombra!
Harpas, jardins de harpas.
Mas a meu lado não havia ninguém.
Somente a planície: cactos, huizaches, pedras enormes que esta-
lam sob o sol.
Não cantava o grilo,
havia um vago odor de cal e sementes queimadas,
as ruas do povoado eram riachos secos
e o ar teria se rasgado em mil pedaços se alguém tivesse gri-
tado: quem vive?
Colinas desnudas, frio vulcão, pedra e arquejo sob tanto esplen-
dor, seca, sabor de poeira,
rumor de pés descalços sobre a poeira, e um pavão no meio
da planície como um jorro petrificado!
Diga-me, seca, diga-me, terra queimada, terra de ossos remoí-
dos, diga-me, lua agônica,
não há água?
há somente sangue, há somente pó, apenas pisadas de pés
desnudos sobre a espinha,
somente farrapos e comida de insetos e torpor sob o meio-dia
ímpio como um cacique de ouro?
Não há relichos de cavalos à beira do rio, entre as
grandes pedras redondas e reluzentes,
no remanso, sob a luz verde das folhas e os gritos dos
homens e as mulheres se banhando ao amanhecer?
O deus-milho, o deus-flor, o deus-água, o deus-sangue, a Virgem,
todos morreram, se foram, cântaros quebrados à beira da fonte ofuscada?
Somente está vivo o sapo,
somente reluz e brilha na noite do México o sapo verde-escuro,
somente o cacique gordo de Cempoala é imortal?
Estendido ao pé da divina árvore regada a sangue,
enquanto dois jovens escravos abanam os seus leques,
nos dias das grandes procissões frente ao povo,
apoiado na cruz: arma e bastão,
em traje de batalha, o rosto esculpido de sílex aspirando
como um incenso precioso o fumo dos fuzilamentos,
os fins de semana na sua casa blindada junto ao mar, ao lado
de sua querida coberta de jóias de gás neón,
somente o sapo é imortal?
Eis aqui a raiva verde e fria e a sua cauda de navalhas e vidro
cortado,
eis aqui o cão e o seu uivo sarnento
a agave taciturna, o cacto e o candelabro eriçados, eis
aqui a flor que sangra e faz sangrar,
a flor de inexorável e cortante geometria como um delicado
instrumento de tortura,
eis aqui a noite de dentes enormes e olhar afiado, a noite
que esfola com uma pedra invisível,
ouça os dentes chocarem-se um contra o outro
ouça os ossos esmagando os ossos,
o tambor de pele humana golpeado pelo fêmur,
o tambor de peito golpeado pelo calcanhar raivoso,
o tam-tam dos tímpanos golpeados pelo sol delirante,
eis aqui a poeira que se levanta como um rei amarelo e tudo
a arranca e dança solitária e se derruba
como uma árvore à qual de repente tivessem secado as raízes,
como uma torre que cai de um só corte,
eis aqui o homem que cai e se levanta e come poeira e se
arrasta,
o inseto humano que perfura a pedra e perfura os séculos e
rói a luz,
eis aqui a pedra quebrada, o homem quebrado, a luz quebrada.
Abrir os olhos ou fechá-los, tudo é igual?
Castelos interiores que o pensamento acende porque outro
mais puro se levanta, somente fulgor e chama,
semente da imagem que cresce até ser árvore e faz estalar
o crânio,
palavra que busca alguns lábios que a pronunciem,
sobre a antiga fonte humana caíram grandes pedras,
há séculos de pedras, anos de pedras, minutos espessuras
sobre a fonte humana.
Diga-me, seca, pedra polida pelo tempo sem dentes, pela
fome sem dentes,
poeira moída pelos dentes que são séculos, por séculos que são
fomes,
diga-me, cântaro quebrado caído na poeira, diga-me,
A luz nasce esfregando osso contra osso, homem contra
homem, fome contra fome,
até que surja ao fim a faísca, o grito, a palavra,
até que brote ao fim a água e cresça a árvore de amplas
folhas de turquesa?
É preciso dormir com os olhos abertos, é preciso sonhar com as
mãos,
sonhemos sonhos ativos de rio buscando seu leito, sonhos
de sol sonhando seus mundos,
é preciso sonhar em voz alta, é preciso cantar até que o canto
atire raízes, tronco, galhos, pássaros e astros,
cantar até que o sonho engendre e brote do dorso do
adormecido a espiga roxa da ressurreição,
a água da mulher, o manancial para beber e olhar-se e
reconhecer-se e recobrar-se,
o manancial para saber-se homem, a água que fala sozinha
na noite e nos chama com nosso nome,
o manancial das palavras para dizer eu, tu, ele, nós,
sob a grande árvore vivente estátua da chuva,
para dizer os pronomes formosos e nos reconhecer e ser
fiéis aos nossos nomes
é preciso sonhar até atrás, até a fonte, é preciso remar sé-
culos acima,
mais além da infância, mais além do começo, mais além das
águas do batismo,
derrubar as paredes entre o homem e o homem, juntar
de novo o que foi separado,
vida e morte não são mundos contrários, somos um só talo
com duas flores gêmeas,
é preciso desenterrar a palavra perdida, sonhar até dentro e
também até fora,
decifrar a tatuagem da noite e olhar cara a cara o meio-
dia e arrancar-lhe a máscara,
banhar-se na luz solar e comer os frutos noturnos, soletrar
a escritura do astro e a do rio,
recordar o que dizem o sangue e a maré, a terra e o cor-
po, voltar ao ponto de partida,
nem para dentro nem para fora, nem acima nem abaixo, para a cruz dos caminhos,
aonde começam os caminhos,
porque a luz canta com um rumor de água, com um rumor
de folhagem canta a água
e a aurora está carregada de frutos, o dia e a noite reconcilia-
dos fluem como um rio manso,
o dia e a noite se acariciam por um longo tempo como um homem e
uma mulher enamorados,
como um só rio interminável sob arcos de séculos fluem as
estações e os homens,
até além, ao centro vivo da origem, mais além do fim e do começo.
EXAME NOTURNO
Toda noite lutou com a noite,
nem vivo nem morto,
aos poucos penetrando em sua substância,
enchendo-se até o limite de si mesmo.
Primeiro foi estender-se no obscuro,
fazer-se imenso no imenso,
repousar no centro insondável do repouso.
Fluía o tempo, fluía seu ser,
fluíam numa só corrente indivisível.
Com pancadas sonolentas a água caía e se levantava,
precipitavam-se alma e corpo, pensamento e ossos:
a redenção suplicava ao tempo,
suplicava erguer-se, suplicava ver-se,
volta transparente monumento de sua queda?
Rio acima, onde o informe começa,
a água se desmoronava com os olhos fechados.
Retornava o tempo à sua origem, brotando-se de si mesmo.
Além, do outro lado, um fulgor fez sinais.
Abriu os olhos, encontrou-se à margem:
Nem vivo nem morto
Ao lado de seu corpo abandonado.
Começou o assédio dos signos,
a escritura de sangue da estrela no céu,
as ondas concêntricas que uma frase levanta,
ao cair e cair na consciência.
Ardeu sua fronte coberta de inscrições,
santos e sinais súbitos abrirão labirintos e espessuras,
mudarão reflexos tácitos nos quatro pontos cardeais.
Seu próprio pensamento, entre os obeliscos derrubado,
foi pedra negra tatuada pelo raio.
Mas o sonho não veio.
Cega batalha de ilusões,
Obscuro corpo a corpo com o tempo sem corpo!
Caiu de rosto em rosto,
de ano em ano,
até o primeiro vagido:
húmus de vida,
terra que se desterra,
corpo que se desnace,
vivo para a morte,
morto para a vida.
(Nesta hora há mediadores em todas as partes,
há pontes invisíveis entre o dormir e o velar.
Os adormecidos mordem o ramo de sua própria fadiga,
o ramo solar da ressurreição cotidiana;
os desvelados talham o diamante que há de vencer a noite;
mesmo os que estão sozinhos levam em si sua parelha encarniçada,
em cada espelho jaz um duplo,
um adversário que nos reflete e nos abisma;
o fogo precioso oculto sob a capa de seda negra,
o vampiro ladrão dobra a esquina e desaparece, rápido,
roubado por sua própria rapidez;
com o peso de seu ato nas costas
se precipita em seu dormir sem sonho o assassino,
já para sempre, sem o outro;
abandonados à corrente todo-poderosa,
flor dupla que brota de um talo único,
os enamorados fecham os olhos no alto de um beijo:
a noite se abre para eles e devolve-lhes o perdido,
o vinho negro na copa feita de uma única gota de sol,
a visão dupla, a mariposa mira por um instante no centro do céu,
na asa direita um grão de luz e à esquerda um de sombra.
Repousa a cidade nos ombros do obreiro adormecido,
a semente do canto se abre na fronte do poeta.)
O escorpião ermitão na sombra se aguça.
Noite no interdito,
instante que balbucia e não acaba de dizer o que quer!
Amanhã sairá o sol,
o astro se inunda na sua luz,
se afoga em sua cólera rija?
Como dizer bons dias à vida?
Não perguntes mais,
não há nada que dizer, tampouco nada que calar.
O pensamento brilha, se apaga, retorna,
idêntico a si mesmo se devora e engendra, repete-se
nem vivo nem morto,
sempre em torno ao olho fixo que o pensa.
Voltou a seu corpo, meteu-se me si mesmo.
E o sol tocou a fronte do insone,
Brusca vitória de um espelho que já não reflete nenhuma imagem.
Paris, 1950.
Tradução: Winner Chiu
*
Octavio Paz, poeta, tradutor e ensaísta mexicano, nasceu em 1914, na Cidade do México. Passou a infância nos Estados Unidos, e na idade adulta viveu na França e na Índia, exercendo a atividade diplomática. Considerado um dos maiores poetas latino-americanos do século XX, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1990. Entre seus principais livros de poesia estão Libertad bajo palabra (1949), Piedra de sol (1957), Blanco (1967), Topoemas (1971), Pasado em claro (1975), Árbol adentro (1987), além de coletâneas de ensaios como El arco y lira (1956), Los signos em rotación (1965) e Marcel Duchamp o el castillo de la pureza (1968). Faleceu em 1998.
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