ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 RAFAEL TORIZ



 

 

ANIMALIA

 

 

O PATO

No princípio dos tempos, muito antes do nascimento dos planos de crédito e da invenção dos casos do latim, um estranho animal, parente próximo dos dinossauros, viu-se na necessidade de repensar sua existência (e por ende sua essência) ao dar-se conta de que não podia expressar sua onomatopéia característica: era um pato que não sabia fazer cuac.

Realizou grandes esforços fonéticos, estudou a semântica de seus congêneres, analisou o discurso anseriforme e até plasmou uma gramática generativa. Impossível. Não conseguia articular linguagem. Patológicas causas, certamente

Tal adversidade o fez repensar sua ontologia. Sendo um pato que não tinha uma ferramenta para expressar o pensamento não conseguia ser, inclusive não podia pensar, logo, tampouco existir.

Subitamente se deu conta de sua fugacidade e despareceu em um brusco pavoneio deixando uma zurrada espessa e esmeralda atrás de si.  (Ao pato Galleta)

 

 

A VESPA

Entre a cansativa infinidade de insetos do planeta, talvez não exista nenhum mais místico e notável que a vespa. Conta com uma fé que move montanhas, conserta ofensas e endireita corcundas. Honra seu pai e mãe, santifica as festas e rende culto aos seus mortos. Emprega toda sua energia na oração e na doutrina, é uma excelente catequista, leu bem Sêneca e divulga por onde pode a palavra divina.

Sua casa é um hexágono perfeito parecido com este <http://www.uam.es/otros/hojavol/hoja7/imagenes07/k6vacio07.gif>, vive obcecada com o infinito como possibilidade de comunicação e se sabe que nasce dos cadáveres dos cavalos.

É tanta sua fé que não hesita em imolar-se para defender suas convicções. Uma vez que se defende, injetando seu veneno, perde junto o ferrão a totalidade de suas vísceras, mas conserva intacta a esperança.

Como todos os crentes, vive para morrer por causas perdidas que não interessam a ninguém.

Todas as vespas mártires voltam como vagalumes.

 

 

 

CRONOTOPO

Entre as múltiplas feras que habitam Animalia este costuma ser um dos mais sedutores e enigmáticos.

É sabido, conforme relatam biólogos ébrios e poetas eslavos, que este estranho e belo animal só se deixa ver em época de carnavais que caem em anos bissextos, ou seja, uma vez a cada quatro anos. Sabe-se que o primeiro naturalista a classificá-lo e domesticá-lo foi um russo dedicado a questões livrescas e religiosas que, desempregado e perseguido, usava seu tempo livre para perseguir estas cegas maravilhas.

O cronotopo tem como costume cavar buracos imensos que comunicam, em terrível união, simultaneamente ao espaço, ocasionando que lugares antiquíssimos se desloquem para o futuro e tempos futuros se percam em territórios presentes com passados diferidos. O cronotopo, ingênuo, desconhece a desgraça e o prodígio de suas obras inconscientes.

Alguns afirmam que se extinguiu, outros que se perdeu em um túnel sem saída, outros ainda que se carbonizou no centro da terra e não falta inclusive quem afirme que jamais existiu. A única coisa certa é que o homem que dizia dominá-lo morreu sozinho e silencioso entre vozes que não cessam.

 

 

ANFISBENA

É o olhar. O veneno da serpente se transluz no olhar. Seus olhos são tochas de fogos fátuos. Mentem e deslumbram, amordaçam e dissipam. A anfisbena, como o desejo, seduz tudo o que toca.

Como o anel de Moebius ou a garrafa de Klein, a anfisbena -por contar com uma cabeça em cada extremidade do corpo-  é um animal não orientável. Nunca sabemos se vem ou vai, se sobe ou desce, ri ou chora, ama ou despreza. Esta serpente é um animal cênico, o preferido dos atores.

Graças a sua flexibilidade e adaptação a anfisbena é a única serpente resistente ao frio, razão pela qual às vezes é dada a habitar a tundra.

Este animal, de mitologias misturadas e enganosas, possui a capacidade de se regenerar se for seccionada; de fato é a única maneira que tem de se reproduzir: por corte de espada.

A anfisbena, como os silêncios, é um animal ambíguo.

 

 

RINOCERONTE

Em sua corpulência impenetrável, os rinocerontes expressam a natureza em suas variadas majestades. É uma máquina perfeita, tanque natural de pacifismo e queratina.

Segundo biólogos especializados em megafauna, no ρινόκερος -textualmente nariz com corno- a malha olfativa é maior que o cérebro, a vista é lamentável e as extremidades perissodáctilas, o que o localiza na ordem de mamíferos placentários com dedos ímpares terminados em cascos. O rinoceronte, sempre cândido e herbívoro, só tem três dedinhos.

Na atualidade só existem cinco espécies de rinocerontes: o de Java (que tem um corno), o de Sumatra (que é peludo), o indiano (imortalizado por Düre), o negro (de boca bicuda) e o branco (que é cinza).

Nas noites de perseidas, devido ao fulgor dos meteoros, todos os rinocerontes parecem unicórnios.

 

 

ESCARAVELHO

O escaravelho, conhecido em algumas latitudes como mayate, é um exemplo comprovado de honestidade e trabalho.

Sísifo dos insetos, está destinado a empurrar seu copromontório até o final de seus dias e ao fazê-lo deve cumprir a ordem que lhe dita seu nome, ou seja, olhando para o chão.

Animal bom, cândido e serviçal, costuma morrer de costas devido ao peso de seus élitros que formam uma armadura recobrindo o tórax e o abdômen.

 

 

ELEFANTE

Junto com as baleias cinza e algumas tartarugas dispersas, o elefante é quem resguarda a memória da terra. Seu papel dentro do reino foi a de testemunhar a passagem dos seres em seu acontecer pelo planeta. Ele conhece o nome e a história de tudo o que voa, repta ou caminha; do que mata, alivia e envenena: do que é e do que jamais será.

Nobre e justo, o gigante de grossa pele é pura misericórdia. Mantém o equilíbrio entre as espécies e seu único inimigo, segundo as mitologias, é o dragão da manhã.

Herbívoro confesso e brincalhão quando jovem, possui uma memória prodigiosa que alonga sua tristeza quando velho. O paquiderme é sábio porque honra seu passado e escolhe o momento de sua morte. O animal dos marfins é construtor de cemitérios.

Ninguém nunca disse -a cria da esperança se afogou em seu próprio ventre-, mas é desejável supor que, em uma vida nova, além das palavras, despertaremos elefantes.

 

Ilustrações: Edgard Cano. Tradução: Maria Alzira Brum



 

 

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