RITA DAHL
O INFERNO
Uma estrutura concreta afunilada, com nove entradas
ao todo. O inferno é a contínua repetição de tudo,
sem que seja possível avançar. O inferno é gelado.
Para onde vão todos os gulosos macerados depois da morte?
O inferno está solto, um filme de ação ordinário,
os cristais fluindo das almas miseráveis que se agarram pelas mãos.
Talvez o inferno seja belo apesar de tudo.
Durante anos cheguei à conclusão
de que não há a igualdade nesse país.
Soa a campainha. Atrás da porta
dois mórmons bem trajados.
O inferno era gelado sobre a terra.
A caixa de comentários foi deslacrada naquele instante.
O inferno da família ou do paraíso, em qual
você pretende passar a eternidade? Tentei tolerar
a mim mesma e entender porque tenho saudades do
inatingível. O inferno verdadeiro dos anti-capitalistas
foi deixado de lado. O que acontece depois disso?
Sacrificamos seis garrafas, nada
acontece e temos de encher lingüiça.
Não se esqueça de que para um masoquista o paraíso é o inferno.
E é impossível saber se é quente ou frio.
Se o inferno está cheio, é preciso sentar-se e
esperar. Qual o problema com você?
Não sabia? Se o inferno é gelado,
a Finlândia ganhou o concurso de música da Eurovision.
Tradução: Rita Dahl & Márcio-André
HIROSHIMA, MEU AMOR
Não há melhor introdução à semiótica do amor
que os cadáveres cobertos de cinza e de orvalho.
Eu estava um pouco indecisa. A viagem à Itália
também a impressionou enormemente.
Olhos azuis, cabelo preto,
também é lembrado como activista de direitos humanos.
Não qualquer avó senão a incarnação do amor,
renasceu como estendida e fictiva interpretação.
Não há namoro mais eterno
do que a comunicação entre a mulher e o homem.
A primeira versão deste era só fotos,
a seguinte pinturas.
Não é nada surpreendente que Hiroshima meu amor
se foi espalhando ao campo.
Que sim os canais lacrimais lá se purificam.
Espanto-me porque o meu amor se separou ontem?
Explodimos Hiroshima no ar, não é?
Tradução: Linda Nurmi
(da coleção O Tempo dos Aphorismos, PoEsia 2007)
UMA CIDADE DE ESCADAS BRANCAS
Lisboa, cidade das escadas brancas, muitos
poetas têm descido essas escadas como se desce das pelves
escrevendo sobre esta descida até o Tejo que
brilha azul com uma parcela de luz
amarela. Ou eles têm sentado nas esquinas
das tascas mais afastadas pensando por que a
vida deles é tão miserável, por que o seu destino
é o de ter saudades de alguém que não pode ser posto em
palavras, beber esses copos pequeninos e pedir mais,
por que a vida não lhes deu um outro papel. E eles têm escrito
sobre a descida das escadas e da saudade por alguém indizível que
nunca irão encontrar e para afirmar suas palavras eles bebem mais bagaço
para que a vida sinta alguém só por um momento, mesmo com a ausência causada
pela bebedeira e eles escrevem sobre beber e ao escrever eles embriagam-se mais.
E eles bebem os seus copos até o fim, escrevem os versos sobre as escadas que
vão dar no Tejo, os copos que são esvaziados para esquecer esta descida e para a vida mudar de direção, como a intuição do vôo ou o ato do vôo em si mesmo, eles
levantam das cadeiras só um pouco como se fossem levantar
e partir pela porta da tasca ao chamarem os últimos clientes
pelo nome.
HÁ UM DESEJO EM MIM
Há um desejo das noites anoitecidas em mim, do dia
que se levanta alto, dos muitos sóis, simultaneamente
nascidos, há um desejo em mim da chuva, cadente
como as franjas de uma mantilha. Há o desejo, mas
não a força, uso ferramentas simples, a voz do
formão e do martelo na noite mais densa. Como se
atingisse um corpo para entalhar, a noite caindo sobre o muro
negro, as letras rúnicas, talvez o nome.
A ROSA, TAMBÉM A ROSA
A rosa, também a rosa, Lisboa não seria perfeita sem que a rosa florescesse a cada
estação do ano, esta rosa também não dá em qualquer lugar, somente no meio do Rossio,
os espinhos não tocam a ninguém tão de leve como aos passantes, eis
rosa a rosa de Lisboa, em si os sentimentos suaves que afloram
nesta cidade, ela é a rosa dos bandidos, das prostitutas e dos
traficantes, a rosa que acaricia com seus espinhos qualquer
um, esta rosa que não zomba, não odeia, ela recebe qualquer
que seja a densidade da pele, ela é a rosa dos encontros e
dos rumos, por isso cresce no meio do Rossio e
é rosa dos loucos e dos narcômanos, ela
se estica para tornar-se amiga
do estrangeiro, ela é a
rosa
do encontro
(do livro O Encanto das Milles Escadas – Voltas da Cultura em Portugal, Avain 2007)
Tradução Rita Dahl & Márcio-André
*
Rita Dahl nasceu em 1971, em Vantaa, na Finlândia. Publicou os livros de poemas Kun luulet olevasi yksin (Loki-Kirjat, 2004), Aforismien aika (PoEsia, 2007), Elämää Lagoksessa (ntamo 2008), Aiheita van Goghin korvasta (Ankkuri 2009). Publicou também um livro de viagem sobre Portugal, O Encantador de Milles Escadas (Avain 2007) e mais recentemente o livro A liberdade da palavra finlandizada (Multikustannus 2009), entre outros títulos. Foi responsável pela revista de poesia Tuli & Savu, em 2001, e também pela revista cultural Neliö (www.page.to/nelio). Rita Dahl foi vice-presidente do PEN Clube da Finlândia durante 2006-2009, e lá realizou um trabalho com escritoras da Ásia Central, que resultou em um encontro internacional e duas antologias. |