ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

GRITOS OCULTOS


- Ilustração: Josemí -

 

Nelson de Oliveira

 

O senhor quer mais um café? Mais um pão de queijo? (Tô exausta. Que dor nas pernas. Até que o velhote não é de se jogar fora, não. Se ele continuar desse jeito, disfarçando e olhando os meus peitos toda hora, por que não marcar uma saída pra mais tarde?)

Quero, sim. Obrigado. Mais um expresso e um pão de queijo. (Essas coxas. Essas coxas. Esses peitos. Esses peitos. Essa voz de adolescente ingênua e bem-intencionada. Ah, São Paulo, por que eu não venho mais vezes aqui, isso eu realmente não sei.)

Aqui está. (Olhou de novo. Eu vi. Tá gostando da paisagem, bacana sacana?)

Obrigado. (Eu não acredito. A safada não tava de aliança? Tava, sim, eu tenho certeza. Essas meninas de hoje. O café tá muito amargo. Eu devia ter pedido uma gota de leite.)

Oi. Atrasei, desculpa. O trânsito tá infernal. Essa chuva. (Que beleza, molhei as meias. Merda de guarda-chuva. Que saco. A gente não podia ter marcado esse encontro noutro dia? No telefone eu devia ter inventado uma história. Devia ter dito que ia viajar, ou qualquer coisa assim.)

Oi. Senta aí. Quer um café? (Meu Deus, como ele emagreceu. Será que tá doente? Ele tá abatido. É essa maldita vida de artista. Caramba, não! Será que é aids? Ah, não!)

Quero. (Eu devia ter inventado uma história qualquer. Justo hoje tinha que chover. Mas a cara dele até que tá bastante boa. Então não deve ser nada sério. Nada muito dramático. Detesto drama. A moça do balcão até que é bem gostosinha.)

Essa chuva. Temporal mais besta. A gente podia ter desmarcado. Podia ter marcado noutro dia. (Ele tá muito magro. Bem que o André avisou. O que eu faço agora? Eu não sirvo pra isso, eu não consigo manter a calma. A mãe dele não pode ver o filho desse jeito, ah não.)

Não tem problema. Já tô acostumado. Chuva rápida, daqui a pouco passa. (Será que eu aproveito este encontro e conto tudo? Ou é melhor esperar mais um pouco?)

Tudo bem com você? Com a Fátima? Com os meninos? (Não posso ir embora sem tocar no assunto. Não posso. Preciso ter coragem.)

Tudo bem, claro. A Fátima e os meninos estão ótimos. A Fátima tá trabalhando muito, gerenciar aquele hotel não é moleza. E você e a mamãe? (Eu e a Fátima. Conto ou não conto? É melhor ele ficar sabendo por mim do que por outra pessoa. Assim, com calma, ele já pode ir preparando a dona Maria. Ela vai ter um troço, eu sei. Vou contar. O duro é começar.)

Eu estou ótimo. Sua mãe também. Ela continua reclamando da perna, das vertigens, da dor de cabeça. Mas, você sabe, sua mãe sempre reclamou de tudo. (Nunca suportei bem estas situações complicadas. Como é que eu vou dizer pra ele que eu e a sua mãe. Como eu começo? É melhor falar de uma vez. É melhor resolver logo essa situação. O duro é começar. Eu e a mãe dele. Mas ele tá tão diferente. Tá tão esquisito.)

Por que ela não veio? Pensei que vinha. (Ele olhou pra baixo. Isso é mau sinal. Quando ele desvia o olhar, isso é sinal de que tá escondendo algo. Caramba, aí vem bomba. Era só o que faltava pra completar o dia.)

Quem consegue tirar sua mãe de casa? Ainda mais no meio da semana. Ela preferiu ficar lá com os gatos. (Ah, não dá. Não consigo. Não vou falar nada. Esse gosto amargo na boca tá me deixando louco. Faz um mês que esse gosto de jiló. Droga, ele percebeu. Ele sabe que tem algo errado. Ou não? Não, ele não sabe nada. É paranóia minha.)

O André telefonou na semana passada. Ele disse que você tá tendo problema com o contador novo. Problema com a Receita Federal. (Faz dois dias que estou dormindo fora de casa. Tô morrendo de saudade dos meninos, mas tenho que agüentar firme. É só uma fase ruim. Eu tenho que me controlar. Se eu contar o que tá acontecendo lá em casa, vai ser pior.)

Seu irmão é igual a sua mãe. Ele também exagera tudo. As duas últimas declarações enroscaram na Receita e o Vitório tá tentando resolver isso. Foi uma discussão boba. Ele quer fazer de um jeito e eu de outro. E daí? O contador é ele. É ou não é? Eu não falo mais nada. (Se eu contar tudo ele não vai entender. Ele é homem, mas não vai entender. Vai logo ficar do lado da mãe, como sempre. Que situação de merda. A gente sai da casa dos pais pra não ter mais que dar satisfação a eles, e de repente tá tendo que dar satisfação aos filhos.)

É melhor deixar o Vitório resolver tudo. (O problema é o ciúme, a raiva, a insegurança. A Fátima nunca foi de perdoar facilmente. E se ela estiver tendo um caso? Mulher bonita e bem-sucedida é fogo.)

É. É melhor mesmo. Eu não falo mais nada. (Eu preciso contar. Eu vim aqui pra isso, não vim? Não posso amarelar agora. Ele vai entender. E a mãe dele vai precisar de apoio. O problema é esta chuva e este lugar lotado. Que zoeira. Por que não marquei o encontro noutro lugar? Num restaurante mais sossegado. Aqui não tá dando pra conversar.)

O Vitório às vezes é meio confuso mas ele sabe o que faz. (Eu pisei na bola. Eu pisei feio na bola, sei disso. Se ela me trair, o que posso dizer? Nada. Não vou poder dizer nada. Eu devia ter tomado mais cuidado, eu devia. Imbecil. Estraguei tudo e agora tô aqui com dó de mim mesmo, lamentando a cagada que eu fiz. Conta duma vez, seu porra. Desabafa. Cedo ou tarde ele vai ficar sabendo. Ele e todo mundo.)

Eu não falo mais nada. (Eu não marquei este encontro num restaurante mais sossegado porque eu sou mesmo um grande covarde. Eu sabia que num lugar mais sossegado eu não teria nenhuma desculpa pra não falar o que eu vim falar. Inconscientemente eu sabia. Não dá. Com essa gritaria não dá. Com esse buzinaço, com esse toró não dá.)

Em que hotel você está? (Se ela me trair eu não vou poder dizer nada, eu não tenho moral pra dizer nada. Olho por olho, dente por dente. É isso o que ela vai dizer.)

No Promenade. Fica aqui perto, na Augusta. (Não vou falar nada. É isso. Não vou falar nada porque não tenho coragem pra contar tudo. Não agora. Tá chovendo, não pára de entrar gente, a gostosa não voltou mais, ela tá atendendo outros velhos cansados como eu, não dá, em dias assim a verdade na funciona, não vou falar nada.)

O André também contou que a Sônia e o Guto já marcaram a data do casamento. (Jamaica. Não vou adiar mais. Jamaica. Chegou a hora. É pra lá que eu vou. Foda-se o resto. Faz dois anos que tô tentando salvar meu casamento, mas não dá mais. Jamaica. Eu sempre quis conhecer as praias da Jamaica.)

Ainda não é oficial. Os dois estão querendo casar no começo do ano. Em maio. Mas ainda não comentaram com mais ninguém. (Este gosto amargo na boca. Esta ansiedade. Esta vontade de gritar. Essa vontade de. Filho, eu e a tua mãe. Como eu começo a contar? Como eu falo pra ele? Como dizer que não dá mais?)

Os dois vão morar mesmo em Santos? (Os meninos. Não posso viajar sem eles. Mas não agüento mais esta situação. Não dá. Se ela me trair, o que eu posso dizer? Nada. Não vou suportar mais olhar na cara dela. Não vai dar.)

Parece que sim. Tua mãe não tá gostando nada dessa história. Mas parece que já tá acertado. Santos. (É melhor eu ir embora. Se eu não consegui dizer nada até agora, isso é sinal de que não vou conseguir dizer nada. Não adianta. Foi perda de tempo ter vindo aqui.)

Dona Maria vai ter que aceitar. (Ele olhou pra baixo de novo. Tá escondendo algo, eu sei. Se eu apertar aposto que ele fala. Ele tá louco pra falar, dá pra ver isso. Mas não tem coragem.)

Não sei, não. Você conhece tua mãe. (Não consigo. Não sei como começar. Ele sempre ficou do lado da mãe, agora não vai ser diferente. Vamos, velho, fala. Aproveita o silêncio súbito. Desembucha. Conta tudo de uma vez.}

Conheço. Ah, conheço muito bem. (Se eu apertar ele fala. O que pode ser? O contador? A empresa? Falta de dinheiro? Minha mãe? Ah, foda-se. Já tenho problema demais. Não quero saber de mais um.)

A chuva tá parando. (Vou contar. Ele precisa ficar sabendo por mim, não pelo André, não pela sua mãe. Por mim.)

Esta cidade vira o caos quando chove. O trânsito, então. (Vou embora. O dia tá perdido. Minha cabeça parece que vai explodir. Ou fico mais um pouco?)

E o trabalho? Tá dando aula? (Nunca suportei bem estas situações complicadas. Como é que eu vou dizer pra ele que eu e a sua mãe. Como é que eu começo?)

Agora menos. Os alunos sumiram, o conservatório vai mal. Estou vendo na PUC, na Faculdade de Música. Talvez dê certo, vamos ver. Conversei com o diretor da faculdade na semana passada. (Eu preciso aproveitar este encontro e contar tudo. Ou é melhor esperar mais um pouco?)

Na PUC? Aula de quê? (Não posso ir embora sem tocar no assunto. Não posso. Preciso ter coragem.)

Harmonia. (Eu e a Fátima. Conto ou não conto? É melhor ele ficar sabendo por mim do que por outra pessoa.)

Muito bom. (Este gosto amargo na boca. Esta ansiedade. Esta vontade de gritar.)

Vamos ver. Talvez dê certo. (Jamaica. Não vou adiar mais. Foda-se o resto. Eu sempre quis conhecer as praias da Jamaica.)

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Nelson de Oliveira nasceu em Guaíra (SP), em 1966. Escritor e mestre em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), publicou Naquela época tínhamos um gato (1998), Treze (1999), Subsolo infinito (2000), O filho do crucificado (2001) e A maldição do macho (2002), entre outros títulos. Organizou duas antologias de contos da Geração 90: Manuscritos de computador (2001) e Os transgressores (2003).

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Leia outro conto de Nelson de Oliveira.

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Josemí (José Miguel Goyena Sábado) nasceu em 1947 em Tafalla (Navarra, Espanha). Estudou Sociologia na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica. Morou em Paris, Marselha, Tenerife e Palma de Mallorca. Atualmente, trabalha como ilustrador para editoras e revistas.

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