ZUNÁI - Revista de poesia & debates

AO LADO DO RIO

 

Virna Teixeira

 

Fumava na varanda de um pequeno apartamento, em um condomínio próximo ao rio.  O lugar era desolado. As ruas tinham nomes de rios. Um fluxo de silêncio dominava os cômodos. Um ritmo líquido, contínuo, vibrava contra as paredes. Havia poeira sobre a mobília, alimentos vencidos na geladeira. E papéis. E livros e discos, quietos na estante, numa ordem aleatória. 

Trabalhava em silêncio, e às vezes se levantava e fumava. Havia apenas uma pequena luminária acesa, em formato de caracol. No único quarto, uma mulher deitada sobre a cama. Ela fingia dormir mas esperava por ele, que não vinha. Ele queria falar com ela, mas não conseguia. Um fluxo aquoso de silêncio ampliava em camadas a pequena distância física. Ela não compreendia o que ele pensava, fazia pequenos movimentos de nado para quebrar seu alheamento, ela o circundava com perguntas curtas e ele respondia com monossílabos. De olhos fechados e cansada, finalmente adormeceu. Na manhã seguinte, quando acordou, ele já estava de pé, de terno. Despediu-se dela com frieza, e partiu. 

Na noite seguinte, encontraram-se no mesmo lugar. Jantaram, conversaram, e quando a mulher começou a dar pequenas braçadas de aproximação em torno de seus ombros, ele retirou suas mãos, ligou a tevê e voltou-se para os papéis. Sufocada, ela chocou-se contra as paredes do aquário com um choro convulso. Ele sacudiu os ombros dela. E como se transbordasse toda a raiva represada e interna, ele tomou seu corpo com violência, sem dizer nada. Depois virou-se para o lado e dormiu. Na manhã seguinte, despediu-se do mesmo modo. Ainda inclinou-se e deu-lhe um beijo no ombro, desajeitado, seco.  Ela tentou falar com ele mas se conteve. Ao levantar, encontrou a faxineira na cozinha, que passava um pano sobre o chão molhado. Ela tomou café, entregou as chaves para a faxineira, e partiu.

Ele chegou à noite do trabalho, no apartamento sem luz, agora limpo. Encontrou um bilhete sobre a mesa. Pôs-se a fumar na varanda. O silêncio era mais agudo sem os movimentos dela no cômodo, andando de um lado para o outro até o banheiro.  Havia apenas o seu casaco, esquecido, sobre a cadeira. Ele ligou para ela, que não atendeu. Abriu uma cerveja, esperou de volta o telefonema em vão, até que desligou o aparelho, descalçou os sapatos e recostou-se na cama. Um pequeno fluxo de lágrimas desceu pelo seu rosto. Uma edição de Men without women, de Hemingway, repousava na cabeceira do quarto mal iluminado. A lua falcão banhava como prata as águas do rio.

 

*

 

Virna Teixeira é poeta e tradutora. Nasceu em Fortaleza e vive em São Paulo. Tem três livros de poesia publicados: Visita (2000) e Distância (2005), pela editora 7 Letras, e Trânsitos (2009), pela Lumme Editor.

 

Leia também outros poemas (I e II) de Virna Teixeira e um ensaio sobre a sua poesia escrito por Eduardo Jorge.

 

 

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2011 ]