ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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JARDIM 'TRANSBARROCO'

André Dick

 

A antologia Caribe transplatino - poesia neobarroca cubana e rioplatense, organizada por Néstor Perlongher e com traduções de Josely Vianna Baptista, trazia, para o leitor brasileiro, um apanhado sobre a poesia neobarroca no início dos anos 1990 (tendo sido lançada em 1991, pela editora Iluminuras). Já nessa antologia, podia-se perceber que esse caminho poético, capaz de revitalizar, dentro do contexto latino-americano, a noção do Barroco, investe não raramente num terreno híbrido entre prosa e poesia, rompendo a separação dos gêneros. Por um lado, ele é visto como exagerado - mesmo Severo Sarduy escreveu que "todo o barroco não é mais do que uma hipérbole"[1] -, obscuro, ilegível, com pretensão a ser profundo, e mesmo retórico. Por outro lado, de uma maneira mais justificável, ele é peça chave de uma desconstrução (embora a palavra esteja gasta pelo uso) benéfica para o "sistema" tradicional: ele descentralizaria objetos (autores, obras) e a tradição vigente. 

Parece haver, contudo, um desentendimento no que se refere à sua aceitação. Começarei por aquela que conheço, pelo menos um pouco, pois diz respeito à tradição literária do Brasil, mas que pode estabelecer, em alguns pontos, a desconfiança sobre o neobarroco de forma geral na América Latina, afinal literaturas não existem isoladas em sistemas.  

O Barroco, a meu ver, merece outra espécie de análise da historiografia crítica. No Brasil, é necessário sempre lembrar que ele foi esquecido pelo importante crítico Antonio Candido, "crítico de formação e inspiração sociológicas", [2] na concepção da Formação da literatura brasileira, o que foi questionado  por Haroldo de Campos, em seu ensaio "Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira" (1980) e na obra O seqüestro do barroco na Formação da Literatura Brasileira: o caso Gregório de Matos (1988). O Barroco, que se nutriu da "razão antropofágica, desconstrutora do logocentrismo que herdamos do Ocidente", [3] segundo Haroldo de Campos, é peça importante para compreender a poética a-histórica, sem que a crítica literária analise determinadas obras por um eixo fixo no sentido de que tudo que surgiu na Europa é copiado e não incorporado, com múltiplas diferenças, por outro olhar. Candido refere na introdução de sua Formação: "Justificava-se no século passado, quando se tratou de reforçar por todos os modos o perfil da jovem pátria e, portanto, nós agíamos, em relação a Portugal, como esses adolescentes mal seguros, que negam a dívida aos pais e chegam a mudar de sobrenome. A "nossa" literatura seria um ramo da portuguesa: pode-se considerá-la independente desde Gregório de Matos ou só após Gonçalves Dias e José de Alencar, segundo a perspectiva adotada". [4]  

Candido opta pelo segundo ponto de vista. Ele considera a literatura nacional representativa a partir do Arcadismo e do Romantismo, valorizando autores como Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu e José de Alencar. O Barroco só existiria a partir de sua redescoberta no Romantismo, até este período não tendo existido literariamente. [5] Ou seja, o Barroco, mesmo com "homens do porte" do Padre Antônio Vieira e Gregório de Matos, seria mais uma "manifestação literária" do que uma peça do sistema que constitui a literatura brasileira, pois se restringiu, inicialmente, à tradição local da Bahia. [6] No ensaio "Literatura de dois gumes" (1966), Candido escreveria, revelando melhor sua posição, que o Barroco teria instaurado "nos hábitos mentais do brasileiro um amor irracional pela grandiloqüência pura e simples", que levava "o espírito a se enganar a si mesmo, e a ação a cruzar os braços ou se perder na utopia estéril". [7] O caso é que o domínio colonial literário - representado pela chegada do Barroco às Américas - não representou a simples aceitação do que vinha de fora, mas uma incorporação de formas que se alastrou, afinal, queira-se ou não, pela cultura do Ocidente. Sérgio Buarque de Holanda, mesmo partindo do mesmo princípio de Candido, escreve: "Galho da literatura portuguesa, a brasileira dos tempos coloniais não pode ser arbitrariamente separada da moldura que naturalmente lhe corresponde. Renascimento, Barroco, Neoclassicismo setecentista representam formas ou, para empregar o termo já consagrado entre modernos historiadores da arte, vontades de expressão, mais ou menos definidas e que se expandiram através de todo o mundo da civilização européia". [8]Não pode ser arbitrariamente separada – e, certamente, não deveria ser.

Analisemos um pouco a origem do Barroco. Fundado no na Espanha e introduzido em Portugal durante o reinado filipino, em 1580, o Barroco é um movimento de "instável contorno, por corresponder a uma profunda transformação cultural, cujas origens constituem ainda objeto de polêmica". [9] Já se encontram no Renascimento algumas de suas formas originárias, principalmente no final do século XVI, "quando já se percebem as palpitações da discórdia interna que iria transformar-se em barroco, enfeixada no chamado Maneirismo". [10] O movimento procurou mesclar a "visão do mundo medieval" e a "ideologia clássica, renascentista, pagã, terrena, antropocêntrica", empenhando-se "no sentido de conciliar o claro e o escuro, a matéria e o espírito, a luz e a sombra, visando a anular pela unificação a dualidade do ser humano, dividido entre os apelos do corpo e os da alma". [11] Pela própria dualidade, o Barroco corresponde a dois modos de conhecimento. O primeiro, dado pela "descrição dos objetos, num estado de verdadeiro delírio cromático, em que se procurava saber o como das coisas", recebeu o nome de Gongorismo - em razão de  Gôngora ser seu maior representante. [12] O segundo, que pressupunha a "análise dos objetos no encalço de lhes conhecer a essência, ou melhor, saber o que são, conceituá-los", para tanto utilizando-se da "inteligência e da Razão, sem prejuízo dos sentidos", em oposição ao "caos plástico" da "descrição gongórica", aplicando a "ordem racionalista, lógica, discursiva, própria de quem procura estabelecer silogismos em torno da vida e das coisas", foi chamado de Conceptismo, tendo Quevedo como representante típico. [13] O Gongorismo se propunha como "espetáculo para o gozo dos sentidos; forma inferior, discutível ou requintada, de pragmatismo", pressupondo sempre a "existência de um auditório (...) ao qual suas obras deveriam dirigir-se", com a mescla entre "poesia e prazer lúdico", enquanto o Conceptismo pretendia organizar "as idéias com o fito de convencer e ensinar". [14] O Gongorismo, portanto, estaria bastante ligada à maneira como Gregório de Matos produziu e fez com que sua obra se infiltrasse na corrente popular, através de leituras em público (como o Padre Antônio Vieira, um grande orador), o que não significa que Quevedo não esteja presente em sua formação. Para Francisco Adolfo de Varnhagen, [15] em sua "recuperação" do Barroco, Gregório era "escravo imitador de Quevedo": "Como de Quevedo, o estilo é cortado e desigual". Matos traria, no entanto, uma "sandice, um disparate, ou uma indecência". A visão de Varnhagen não é mais que desanimadora: "Sua imaginação (a de Gregório) era talvez viva, mas descuidada. O seu gênio poético faísca, mas não inflama; surpreende, e não comove; salta com ímpeto e força, mas não voa, nem atura na subida". [16] Outro crítico, Joaquim Norberto de Sousa Silva, não pensava muito diferente: "Foi prodigioso na sátira, mas ao cabo rara deixou-nos que digna seja de ler-se: obscenidades, frases bordalengas andam de envolta com seus versos: contudo seu estilo é simples e corrente, e isento desses trocadilhos e antíteses, com que os poetas seus contemporâneos borrifaram suas obras, pois que não era para afetações, mas todo natureza, todo satírico, se bem que infelizmente um satírico todo indecência". [17] Sérgio Buarque de Holanda escreveria: "Quase se pode dizer de Gregório que, onde carrega mais fortemente as tintas na pintura dos conterrâneos, é freqüentemente onde mostra maior dependência dos modelos ultramarinos. Dependência que se confunde muitas vezes com o plágio mais deslavado". [18]   É curioso que, embora datadas, essas reflexões carregam um pouco do que ainda se pensa sobre o Barroco e sobre o neobarroco, mesmo no início do século XXI: ao invés de se falar em diálogo crítico, fala-se em imitação, como se o Barroco se propusesse a ser uma vanguarda; a paródia (compartilhada com a hipérbole) implicaria na indecência da linguagem; a sintaxe estranha é confundida com "frases bordalengas"; e, finalmente, um trabalho especial com a coloquialidade trazida para os limites estranhos da linguagem é tomada por uma seleção de "trocadilhos e antíteses" (o mesmo que se diz das paranomásias de Roman Jakobson). 

É importante atentar para o fato de o Barroco ter começado nas artes plásticas, como constata Massaud Moisés: "a pintura, a escultura e a arquitetura traduzem, mais a primeira que as outras, a busca da conciliação que vai no interior do Barroco. O belo-belo, a linha torta, o excesso de pormenor, o desenho que foge do ponderado, do 'razoável', o jogo do claro-escuro em que a sombra ocupa lugar preponderante". [19] Essa consideração é importante, a partir do pressuposto de que, para Ezra Pound, a poesia está mais para as artes plásticas e para a música do que para a literatura. Em sua análise sobre o seqüestro do barroco, Haroldo vai ligar Gregório à figura do músico, também baiano, Caetano Veloso (sem querer comparar as potencialidades de Gregório e Caetano). Respondendo à posição de Antonio Candido de que a obra de Gregório era inexistente não ter sido publicada à época em que foi feita, apenas apresentada oralmente ao público, Haroldo vê, nesse movimento, uma tradição poético-musical à margem. Compõe, desse modo, um estudo sobre a carnavalização proposta pelo Barroco, o que Severo Sarduy considerou como um espaço da superabundância e do desperdício, contrariando a "linguagem comunicativa, econômica, austera, reduzida a sua funcionalidade". [20] Curiosamente, Pound nega a presença do Barroco em sua concepção literária, o que não indica que seus pressupostos não possam ser utilizados para uma investigação da forma barroca.  

Baseando-se em proposições de González Echevarría, Néstor Perlongher, estudioso do neobarroco, lembra que o Barroco é "uma arte furiosamente  antiocidental, pronta a se aliar, a entrar em misturas 'bastardas' com culturas não ocidentais"; e, recorrendo a Lezama Lima, "se processa, na transposição americana do Barroco Áureo (séculos XVI/XVII), o encontro e imisção com elementos (aportes, reapropriações, usos) indígenas e africanos: hispano-incaixo e hispano-negróide, (...) fixo nas dobras fenomenais do Aleijadinho e do índio Kondori". [21]   Segundo o próprio Perlongher, sendo "Poética da desterritorialização, o Barroco sempre choca e percorre um limite preconcebido e sujeitante. Ao dessujeitar, dessubjetiva. É o desfazimento ou o desprendimento dos míticos. Não é a poesia do eu, mas a aniquilação do eu. (...) Tende à imanência e, curiosamente, essa imanência é divina, alcança, forma e integra (constitui) sua própria divindade ou plano de transcendência". [22] Todas essas colocações de Perlongher se aproximam muito das observações do Barroco original. E é esta "aniquilação do eu" que provocou Walter Benjamin em seus textos sobre o Barroco. Ao filósofo alemão interessava sobretudo o conceito do barroco como alegoria - representada pela imagem baudelaireana das ruínas - que, vista de perto, adquire o sentido de signo isolado, de hieróglifo. [23]

Haroldo de Campos, a quem foi dedicada a primeira antologia lançada no Brasil, Caribe transplatino, questionava, em seu estudo O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira, exatamente a ausência dessa tradição no Brasil: de fíguras singulares como Gregório de Matos e o Padre Antonio Vieira, por exemplo (lembre-se também a recuperação de Sousândrade feita por Haroldo e Augusto de Campos, e de Pedro Kilkerry, por Augusto de Campos). Esses autores eram relegados a segundo plano na Formação da literatura brasileira, por constituírem obras anteriores à criação de uma literatura pressuposta a partir de raízes brasileiras, mesmo que ligadas ao Romantismo. Que a formação de Antonio Candido, que elevou os românticos ao ponto máximo da tradição, não tivesse admitido esse autor ou o estilo do qual ele fez parte é parte da escolha dele como crítico - essencial para compreender a história de uma parte da crítica brasileira. Mas a quase completa ausência de autores com traços dessa forma transistórica (conforme Néstor Perlongher), não uma escola, na releitura de nossa tradição de leituras, se faz injusta. Pois o neobarroco não é uma vanguarda stricto sensu - ou seja, não é um movimento considerado apenas possível no "primeiro mundo" ou um movimento a ser copiado por autores de uma tradição pobre -, à medida que "não se preocupa em ser novidade": "ele se apropria de fórmulas anteriores, remodelando-as, como argila, para compor o seu discurso: dá um novo sentido a estruturas consolidadas, como o soneto, a novela, o romance, perturbando-as". [24] Como avalia o crítico francês, aluno de Roland Barthes, Antoine Compagnon, a "estética do novo" proposta pelas vanguardas sempre existiu, mas no "sentido de uma estética da surpresa e do inesperado, como no barroco", e não no de uma "estética da mudança e da negação". [25] Haroldo já analisava que traços barrocos poderiam ser encontrados em autores de muitos períodos literários. [26]                                                       

O Barroco e o neobarroco fazem frente a uma linha pseudo-romântica, que costuma ser uma tradição aliada a um excesso verbal sem um trabalho de linguagem interessante. O apuro verbal, o trabalho que implica a reprodução de leituras matizadas por um novo olhar, com os quais os poetas neobarrocos trabalham, é nitidamente amplo. Se esses não têm a preocupação religiosa que tinham os poetas barrocos, nem se dividem em escolas ligadas a Gôngora ou a Quevedo, desapegando-se de uma discussão filosófica sobre o corpo e a alma, embora não desconsidere as questões que se mostrem além do olhar, eles ainda se situam entre uma clareza e uma obscuridade constantes no tratamento que dão ao texto como encontro de linguagens e tradições, somadas a uma dicção contemporânea. Não se trata de os neobarrocos terem um olhar exótico sobre as coisas, como se os objetivistas, por exemplo, tivessem um olhar cerebral, metalingüístico, mas de eles também serem conscientes da linguagem que utilizam, através do amarramento do acaso numa forma literária. Nesse sentido, não parece real que o poeta neobarroco deixa seu poema se fazer por conta própria, sem saber onde amarrá-lo, como se ele fosse fruto do inconsciente; na "realidade", ele lida é com a "consciência do inconsciente". [27] Adotar uma proliferação na linguagem, no caso, não significa ignorar o trabalho com a lapidação da linguagem, adotando tanto o desperdício evocado por Severo Sarduy quanto o rigor e os limites de criticidade. 

Para compreender melhor essa cena poética, é vital que a coletânea Caribe transplatino, lembrada de início, ganhe a companhia, agora, na entrada do novo século, de Jardim de camaleões: a poesia neobarroca na América Latina, com organização, seleção e notas de Claudio Daniel e tradução deste, de Luiz Roberto Guedes e Glauco Mattoso. A editora é a mesma da primeira antologia publicada no Brasil: Iluminuras. E Haroldo passa de homenageado a autor do prefácio, intitulado "Barroco, neobarroco, transbarroco". 

Severo Sarduy ainda não havia usado o termo neobarroco (só o fez em 1972), quando Haroldo o utilizou no texto "A obra de arte aberta", de 1955, ou seja, quase vinte anos antes. O autor de Galáxias, nesse texto que ajudou a constituir a Teoria da poesia concreta, lembrava que Pierre Boulez, em conversa com Décio Pignatari, havia manifestado o seu desinteresse pela obra de arte "perfeita", "clássica", e enunciou a sua concepção da obra de arte aberta como um "barroco moderno". Para Haroldo, este seria o "neobarroco", capaz de atemorizar, com a ousadia da juventude que marcava a teoria da poesia concreta, os que "amam a fixidez das soluções convencionadas". Ao falar dos poemas do irmão, Augusto de Campos falaria num "concreto barroco". Essa ligação se faz aceitável à medida que o Barroco é um conceito transistórico, pressupondo-se sua importância para a poesia não só contemporânea. Quando Haroldo, em Galáxias, compõe analogias, arremedos de sons, trabalhando e retrabalhando leituras, com um vocabulário expansivo, ele provavelmente esteja tentando compor esse concreto barroco, pela sua representação também do branco-escuro da página numa série de poemas como "O â mago do ô mega". Onde vêem parnasianismo em sua obra, parece muito mais evidente essa linha tênue do neobarroco. E, por isso, Haroldo complementa o título de sua apresentação para a antologia Jardim de camaleões com a palavra "transbarroco", isto é, além do Barroco e do neobarroco.  

Claudio, percebendo a importância do Barroco, numa linha histórica - mas situada à margem, sincrônica -, tem se dedicado, há alguns anos, a compor uma obra pessoal com ressonância de suas leituras (com livros como Sutra, Yumê e A sombra do leopardo) e a traduzir autores como José Kozer, Eduardo Milán etc. Sua antologia, no entanto, apresenta outros nomes, alguns mais, outros menos conhecidos, além de trazer representantes do Brasil, o que não havia na antologia precursora. Figuram nela os nomes de Haroldo de Campos (em poemas e fragmentos de Galáxias), Horácio Costa, Paulo Leminski (em trechos do Catatau), Josely Vianna Baptista e Wilson Bueno (em poemas e passagens de Mar paraguayo).  

Começo por um dos nomes mais importantes, no cenário atual, e isso parece um consenso: o de José Kozer, em plena atividade, autor de sugestivo texto sobre alguns poetas de Jardim de camaleões. Poeta cubano que vive nos Estados Unidos, Kozer tem poemas - aliás, hoje, uma notável quantidade, com qualidade, o que importa mais - ao mesmo tempo expansivos e tensos, mas a tensão com a qual ele produz sempre acaba implodindo. Os segmentos de idéias que parecem soltas ao longo de cada poema seu, num olhar mais atento, acabam adquirindo um sentido mais elaborado do que parecia à primeira vista. Ou seja, o olhar que lança sobre as coisas, mesmo que se disperse através de uma fragmentação nada coloquial, se produz em uma sintaxe elaborada. Esta se desautomatiza, voltando-se para uma espécie de coesão na qual, já no curso de entendimento do leitor, transforma o poema. Por isso, é possível afirmar que ele trabalha com imagens em que há uma experimentação de movimentos, baseando-se, como se ouvisse uma peça musical, tanto em silêncios quanto em ruídos, peças, intervalos de tempo-e-espaço, numa espécie de transição do zen oriental para o caos da vida urbana; são claramente traços barrocos, construído por "pérolas irregulares". A poesia de Kozer é um bom exemplo de como uma poesia que lida mais com a implosão sintática, coordenando-o por meio de um pensamento pode ser consciente de seu trabalho crítico (Octavio Paz, ao analisar Mallarmé, comentava o domínio do poeta francês sobre o "acaso", por meio do raciocínio crítico, do poema como peça de reflexão [28] ), mas feita através de camadas sonoras irregulares, às vezes contidas, às vezes expansivas, respeitando a "estética do desperdício", que Severo Sarduy entendia ter de especial no Barroco, mas também critérios de rigor. É interessante lembrar também que Kozer observa, no seu ensaio, que a poesia neobarroca busca a universalidade: "Ela é cosmopolita na natureza e ainda altamente localizada, de forma que um poeta neobarroco está à vontade com uma rua de Havana ou com Li Po e seus amigos bebendo um copo de saquê ao pé das Montanhas Sagradas de Tai Chan, com a densidade do Amazonas ou Mato Grosso, bem como com a experiência de superfície visual dos Pampas, o deserto do Atacama ou a tundra russa". [29] Tudo isso parece de acordo com a própria poesia de Kozer, ampliando os lugares que o motivam, como em "Centro de gravidade", no qual escreve: "Minha pátria é a irrealidade", movimento que acompanha também a poesia de Raul Zúrita, com seus poemas sobre o deserto do Atacama, ou de Rodolfo Hinostroza, em seu poema plurilíngüe "Ária verde". Daí também os outros trabalhos de Kozer com tradução de Claudio Daniel, no Brasil, como Geometria da água, Rupestres e Madame Chu & outros poemas, merecerem uma edição conjunta e ampliada. 

Mas há outros nomes a destacar - e muito. Como o de Coral Bracho, poeta com um apuro de imagens ligadas à água - Josely Vianna Baptista comenta, no livro Musa paradisiaca, que em sua obra existe um "rumor constante de rio corrente" -, mas também com a ousadia de "De seus olhos ornados de areias vítreas", com um certo contato corporal (mas sem emoção, contido):  

            Dizem do tato,
            de suas centelhas
            dos jogos tranqüilos que deslizam à borda,
            à margem lenta dos ocasos.
            De seus lábios de gelo. [30]
 
            Ou, obviamente, em "Água de bordas lúbricas", em que escreve:

            Água de medusas,
            água láctea, sinuosa,
            água de bordas lúbricas, espessura vitrificante - deliquescência
            entre contornos deleitosos. Água - água suntuosa
            de involução, de languidez. [31]  

A profusão de adjetivos, característica do barroco, e o ambiente lamacento que desperta o poema dão um tom não de leveza, mas de uma espécie de violência, como se a água estivesse querendo romper uma pedra, como prossegue, em tensão, ao longo de todo o poema.

Coral Bracho é um talento feminino que faz companhia à Tamara Kamenszain, cuja seleção de poemas traz imagens raras, como o seguinte:  

            Como o bailarino de teatro nô
            que detém cada gesto
            para mostrá-lo na cena quieta
            e detém o desenho de gestos
            para suspendê-lo em uma história
            quieta sem desenlace
            assim a corrente de palavras
            começa a circular detida
            lentamente habita o teatro
            povoa a cena
            com letras
            coloca-se em seu papel. [32]  

O bailarino de teatro nô é comparado a uma "corrente de palavras" e sua dança - a cena vista - se passa no teatro da folha em branco, sendo comparada a "letras". Passos como letras. Jorge Schwartz, na orelha da antologia Caribe transplatino, comentava que o trabalho de Tamara Kamenszain se distinguia, "em contraposição ao excesso da proliferação barroca", pela "concisão e pela síntese". [33] Em sua poesia, conforme ainda Schwartz, haveria "a ânsia da perfeição, na realizada tentativa de 'atrapar' objetos cujas imagens lavradas recuperam um tempo objetual". [34]  

Há também a cubana Reina María Rodríguez, que, sobretudo em "Âmbar", revela um certo desalento extraído do cotidiano, daí, a meu ver, também o neobarroco não se afastar tanto assim de um olhar ligado a uma percepção mais objetiva, não no sentido da transposição óbvia da realidade para o texto, no sentido da mímesis tradicional, mas no sentido de se mostrar consciente do que realiza: 

            Pulseira de pedras quadradas que caem sustidas.
            De cada uma se desprende
            o valor de nossa amizade.
            Quadrada cidade como contas de muitas cores:
            quadrilátero infernal de colina em colina
            desordenado para chegar a ti.
            Como conta estas contas tão dispersas?
 
            O vendedor as pesou na balança, sem paixão,
            mas foi enganado. [35]  

Outro poeta que lida com o cotidiano de forma singular é Carlos Rodriguez Ortíz, como no poema "Calçadas sem sapateados", unindo a caminhada solitária, entrecortada por varredores de rua, a um diálogo com amigos:  

            Passo de uma rua a outra e há um vapor de chaminés
            nos edifícios que contemplo.
            Sigo rua adentro e sigo divisando as coisas que me parecem
            familiares (por meu hábito de vê-las).
            Finalmente regresso a minha casa e cumprimento algumas pessoas.
            Os varredores escondem suas vassouras depois de uniformizados
            e param na calçada e às vezes não cumprimentam.
            Dou a eles a linguagem agradável de meus lábios, a Darío e aos
            outros que bebem o dia em seus copos de cevada. [36]  

Nem todo o trabalho dos neobarrocos, é claro, permite essa ligação direta com o cotidiano. É muito mais comum, aliás, essa poesia se manter num fio tênue entre o claro e o escuro, como no barroco original. Nesse sentido, encontramos um bom representante em Victor Sosa, capaz de sustentar um poema longo como "De Dizer é Abissínia" sem perder o controle do encadeamento, do ritmo (mesmo que não seja facilmente percebido, ou musical). León Félix Batista, que Claudio Daniel traduziu com Fabiano Calixto no livro Prosa do que está na esfera, no sentido também da experimentação, é um dos mais radicais da antologia: trabalha com imagens em decomposição (em todos os sentidos), ligadas sobretudo às sombras, mas com uma organização matemática (como em Lautréamont), mas carnavalizada, com inserções de referências a cultura pop, que dá ainda mais estranheza ao que está tentando configurar. 

São especiais os poemas de Mário Eduardo Arteca, sobretudo "LARRY RIVERS por John Ashebery", em que há uma mescla da Language Poetry (imagens comuns do cotidiano sob um viés de linguagem desautomatizada), no caminho inspirado por Gertrude Stein e John Ashbery, com a profusão de imagens do Barroco, encadeando um pensamento a outro, como se o pensamento mais importante fosse o quebra-cabeças irônico que está tentando apresentar ao leitor, procurando uma espécie de labirinto entre as estrofes:  

            Larry pinta sua sogra
            porque ficava em casa. Não pretendia
            conferir-lhe algum significado universal,
            nem seu oposto. Atualmente (1962)
            está pintando maços de cigarros
            com a graciosa seriedade de Tiépolo.
            Não pretende dizer-nos que os objetos
            comuns têm seu lugar
            no sistema das coisas.
            Ou que nada seja mais importante
            que nenhuma outra coisa. [37]  

Nesse sentido, ele parece dialogar - não sei, obviamente, se o diálogo é real, ou seja, consciente - com alguns trabalhos de Aníbal Cristobo (argentino radicado no Brasil). Leia-se, por exemplo, o seguinte fragmento do poema "R. B. KITAJ por R. B. Kitaj", mostrando o lado onírico de um desastre: 

            Luzes dianteiras de automóveis fazem frente
            às minhas. O que é destroçar e gaguejar
            à maneira de um búfalo branco, into the dreams.
            Preparo meu terreno, se chegar até amanhã.
            Se eu me cortar, e com apenas um primeiro contato
            do fluxo deste sangue com os vapores de gasolina,
            voará em pedaços este lindo Oldsmobile 62. [38]  

            De Eduardo Espina, destaque-se a precisão formal da primeira parte de "Caravaggio, vigília final": 

            I

            A luz ouve o que necessita,
            habitar onde não possui tudo.
            A ameixeira volta-se para vê-la
            tornar-se salutar avalanche. [39]  

Ou o impressionante "Velhice de Wittgenstein", com seu poder de dispersão e de síntese, configurando a solidão de um cenário caseiro e os mínimos movimentos que o cercam, tomando como matéria a organização das coisas concentradas nas pequenas coisas (azaléas, uma "débil névoa", "semente líquida") diante de sentimentos como a morte: 

            Tudo posa de impossível sentimento
            e um cenário de quase azaléas em casa
            o suave, o casebre, uma débil névoa.
            Pouco seria dele sem conhecê-lo.
            Seriam sombras, incestos, seria um rosto.
            Semente líquida até que culmina
            e um uso para pensar em cada coisa
            quando o sentido é o que ele fez.
            Já nada nem o igual da morte.
            O lar do fado redobra o castigo,
            constelação anterior ao terreno.
            Por dizê-lo, assim, melhor não sabê-lo.
            Melhor deixar em paz as palavras.
            Agora tudo e árduo vaso e jade.
            Outro ouvir no que o mundo cala. [40]  

Perceba-se que, no movimento final, Espina lança um olhar de silêncio sobre as palavras. Tudo seria "vaso" e "jade", que seria outra forma de ouvir o silêncio, neste caso, da abstração na matéria. Espina trabalha sobretudo com os sentidos. O olhar torna-se ou tato ("Dorme a pele apesar do que passa. / Os olhos tomam como verdade as palavras / as coisas buscam um lugar na visão" [41] ) ou representação da morte ("Morreu com os olhos abertos / para que as imagens / seguissem saindo" [42] ). 

A poética de Eduardo Milán, outro incluído, incorpora (e não dilui) a poesia concreta. Suas imagens, entrecortadas, com palavras espalhadas pela página, são precisas: "Entre a lâmpada e a / fronte da luz: / ponte / tridente branco / aí se afogam as palavras / gotas / brancas / vermelhas como o poema", do poema "Estação da fábula". [43] Nele, as palavras escorrem como gotas de tinta na parede branca (como letras na página em branco). E Roberto Picciotto, a julgar pelos poemas "Ancorado na ilha do cotovelo" e "Aschenbach chez lui", é um nome que surpreende, pela precisão dos versos. No primeiro poema citado, ele desenvolve, em seis quadras, o travelling de um olhar para o mar até o rosto de um marinheiro, investindo em uma amplitude de imagens. 

Há a presença de nomes (sobretudo para um leitor que se mantém um pouco afastado da leitura do neobarroco) mais conhecidos, como os de Severo Sarduy (um dos poucos autores no mundo que soube revitalizar o soneto, não à toa traduzido por outro revitalizador da forma, no Brasil, Glauco Mattoso), Néstor Perlongher (um dos pensadores principais do neobarroco e organizador da antologia Caribe transplatino), José Lezama Lima (nome clássico, autor de obras como Paradiso e do essencial estudo A expressão americana [44] ) e Roberto Echaverren (responsável pelo posfácio). Desses nomes, Sarduy chegou a escrever para a clássica revista Tel Quel, na qual se reuniam alguns dos pensadores mais importantes da França (Barthes, Derrida, Kristeva). Em relação a uma obra sua, Roland Barthes escreveu sobre a universalidade de sua linguagem. Seu "texto cubano" seria mais que a representação de uma língua: seria uma "inscrição de culturas e épocas diversas", deslocando, assim que traduzido, o chamado "barroco verbal", vindo da Espanha originalmente, de natureza gongoriana ou quevediana, para a língua francesa. A escritura dá a liberdade, inclusive a do Barroco, negado inicialmente pela cultura francesa, assim como a poética de Mallarmé, o que fez com que o significante não tivesse uma proliferação de sentidos. [45] A proposição de Barthes, portanto, é adequada: Sarduy é um dos que reestabeleceram a noção do Barroco como universal. Sua própria fala sobre o neobarroco é sintomática de um processo de leituras de Roland Barthes e Jacques Derrida: "[...] o barroco atual, o neobarroco, reflete estruturalmente a desarmonia, a ruptura da homogeneidade, do logos enquanto absoluto, a carência que constitui nosso fundamento epistemológico". [46] Por isso, o neobarroco seria assim por seu "desequilíbrio, reflexo estrutural de um desejo que não pode alcançar seu objeto, desejo para o qual o logos não organizou mais que uma cortina que esconde a carência", um "reflexo necessariamente pulverizado de um saber que sabe que já não está docemente fechado sobre si mesmo". [47] Seus sonetos são a prova de que essa forma, se bem empregada e aliada a um campo experimental, sem render-se à tradição, pode dar bons resultados. Vejamos, por exemplo, o belíssimo poema: 

            A luz do meio-dia, transparente,
            filtrava pelas paralelas bordas
            da janela, e o confronto em fulgor das
            frutas (ou da tua pele?) ardia quente.

            Saudade é o que o torpor do sono sente
            da ilha. Aquele céu (não te recordas?)
            de acaso que no opaco véu põe gordas
            camadas cambiantes de poente,

            um outro brilho tinha. Onde eu dormia,
            numa casinha litorânea e pobre,
            no ar a luz das lâmpadas de cobre,/p>

            traçava lentamente espirais sobre
            alva toalha, sombra em que se urdia
            o teorema doutra geometria. [48]  

            É uma forma reaproveitada (sem rimas) por Reynaldo Jiménez em "De improviso", por exemplo, com seus belos versos finais:  

            Aqui, abrem-se mais, os espaços. Acontece
            o que ninguém poderia recordar ou ter
            tramado. O bosque de símbolos, sim,

            e juntos a pira tântrica e o ascético
            deserto que dá ao rio. Também o pátio
            de mandala, o templo, a rocha, o eco. [49]  

Do Brasil, os poetas trazidos por Claudio são importantes. A começar por Haroldo de Campos, cujo empenho para revalorizar o barroco e o neobarroco foi intenso. Destaque-se, em Jardim de camaleões, seu poema "Klimt: tentativa de pintura". Haveria outras peças de mesmo nível em Crisantempo e Xadrez de estrelas, pois o trabalho desse poeta é um dos mais ricos no campo e seria uma dificuldade selecionar apenas alguns, mas este poema, que pertence ao livro A educação dos cinco sentidos, é uma de suas peças mais interessantes. Leia-se este fragmento, de sua segunda parte: 

            2 

            e sob isto tudo como sob
            uma panóplia (armada) um pavilhão
            de pedraria (um baldaquino) dra
            pejantes panos (um azul turquino)
            (caravelas ao largo) bandeiras de um
            (impossível) impromptu ultra
            (biombo grand'aberto gonfalão panóplia)
            violeta

                        o corpo (a ci
                        catriz li
                        lás)
                        o branco albino se diria
                        um corpo um cor
                        po de me
                        nina [50]  

Compreende-se, pela própria forma como o poema é apresentado, por que Augusto via um "concreto barroco" na obra de Haroldo, fazendo-o trabalhar com "imagens e metáforas, que dispõe em verdadeiros blocos sonoros". [51] Não há dúvida de que a sintaxe aqui é mais entrecortada, com versos curtos, indicando uma síntese maior. Como observa Antonio Risério, Haroldo de Campos, desde o início de sua trajetória, mostrava vínculos com as estéticas barroca e surrealista, que precisou filtrar durante a poesia concreta, submetendo "sua fluência barroca ao mínimo vocabular exigido pela 'matemática da composição'". [52] Ou seja, "em vez de voar no turbilhão de seus signos alados, de alimentar seu dom para a exímia estruturação de frases altamente complexas ou de incrementar seu brilhante jogo de metáforas", [53] Haroldo, na fase concreta ortodoxa, descobriu o caminho da síntese. Então, como ainda observa Risério, "Passado o concretismo, o poeta pôde reencontrar o seu estro, mas agora para uma produção neobarroca concentrada, depurada pela quadra joão-cabralina e pela educação 'ideogrâmica'". [54] Essa produção neobarroca concentrada é exemplarmente demonstrada na seção "Lacunae", de Xadrez de estrelas, em que o poeta apresenta poemas como este abaixo: 

            céu-pavão

            turquesa
            rampante

            azul
            a pino
                                               centúria
                                               de olhos-luz
                                               num caudário
                                               de estrelas

            poeira

            constelário

                                               o mundo
                                               do seu
                                               pedúnculo
                                               (mundúnculo)
                                               desestrela

            trema

            e isto
            *

            cisco
            risco
            astro

            asterisco [55]

Há também, em Jardim de camaleões, um trecho de Galáxias, um dos livros mais importantes de Haroldo de Campos, seu work in progress, feito entre 1963 e 1976. Nela, vale lembrar as palavras de Severo Sarduy, "O barroco frondoso, selvático, furioso, se deixou decantar em uma geometria legível, despojada até à transparência do projeto, como as fachadas mineiras do Aleijadinho. Neobarroco, ou melhor, outro classicismo: como se nos moldes métricos ou estróficos não implicassem uma torção ou um resíduo de sentido, porém estivessem prestes a conduzi-lo em toda a sua intensidade". [56]  

Horácio Costa é um dos poetas brasileiros que se arriscam no verso longo, o que, se poderia criar um certo cansaço, em seu caso se dá por uma via mais interessante: de imagens pensadas com rara habilidade lingüística. "Os jardins e os poetas" servem de exemplo nesse sentido, com os versos: 

            O número de folhas de suas roseiras seria contado
            O número de pétalas das rosas seria minuciosamente contado
            Como sílabas de poemas estritamente sintáticos
            As rosas amarelas seriam assonâncias
            As rosas vermelhas consonâncias
            O jardim horaciano é um Mondrian avant-la-lettre
            Mas Horácio não tece dinheiro para comprar escravos que
                       contassem pétalas e folhas [57]  

Perceba-se que, para quem pensa que o barroco traz apenas um delírio visual inconseqüente e sem raciocínio, a matemática com que Horácio Costa constrói sua peça, fazendo uma analogia entre rosas e sons - dando um tratamento verbal elaborado - e ligando o jardim imaginário ao universo da pintura, situado num ambiente oriental. Sua ligação com a estética neobarroca também se esclarece no poema "O retrato de Dom Luís de Gôngora" e, sobretudo, no fluxo verbal de "Cetraria", em que volta a mencionar Gôngora: "[...] Ave caligráfica, lápis-lazúli, Amém, leia de novo este / soneto de Gôngora, observe a máscara artesanal que esconde / os olhos da Ave". [58]

A curitibana Josely Vianna Baptista é outra poeta interessante. Conheço apenas seus livros iniciais, Ar e Corpografia. Os poemas seus na antologia são de seu último livro, Os poros flóridos (ainda inédito no Brasil), com um vocabulário barroco mais carregado e de fino trato sonoro: "Nuvens e água, pênseis, a ouro-fio nos olhos. / Inverso de mortalha, os lençóis correm em álveos: / os barcos têm velâmens" (em "Schisma" [59] ), ou "Mas teu olhar o mesmo, em íris-dia- / fragma, / fotogramas a menos na edição do livro, / e o enredo sonho e sol, delírios insula- / res" (em um fragmento do poema "Os poros flóridos" [60] ). Wilson Bueno, mais conhecido como prosador, mas de experimentação visível, comparece exatamente com trechos - com ressonância poética - de seu Mar paraguayo e de poemas (não, obviamente, os tankais, que compôs para Pequeno tratado de brinquedos). Bueno, que é conterrâneo - vindo do Paraná - do poeta Paulo Leminski, que comparece no livro com fragmentos de seu antológico Catatau, poesia prosaica que foi um sopro de renovação, junto com a obra poética dele, no cenário brasileiro, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980.  

Os nomes apresentados são esses. Mas, como lembra o organizador, a antologia "não deseja mapear ou definir um cânone, nem fazer história literária ou arqueologia do presente: sua meta é apresentar uma pequena mostra desse fascinante campo de experimentação poética". [61] Ou seja, ele permite que se pense em outros nomes que existem no cenário latino-americano e que, de algum modo, façam um trabalho que pode ser aproximado desse universo experimental, ajudando, como todos esses trabalhos, a desvirtuá-lo, decompô-lo. Penso, particularmente, em poemas, por exemplo, da fase inicial de Décio Pignatari, considerado por Haroldo de Campos um belo exemplo de trabalho neobarroco.  

Que os trabalhos apresentados são, de certo modo, difíceis, não há dúvida; no entanto, só o trabalho apurado com a linguagem, não esquecendo a experiência moderna de dissolução do sujeito (e não o Yo, o Eu, o Je), produziu boa poesia nos últimos anos. Perlongher falava que o barroco trazia uma "aniquilação do eu" - difícil de ser aceita por qualquer tradição que glorifica a hipóstase do Eu - e um ingresso no Texto, como provocava Roland Barthes, para quem ainda o barroco era visto como "a ubiqüidade do significante, presente em todos os níveis do texto, e não, como comumente se diz, na sua superfície apenas", [62] seguindo o mesmo caminho de Sarduy, para quem o barroco também "consiste em obliterar o significante de um significado dado, substituindo-o não por outro, por distante que este se encontre, mas por uma cadeia de significantes que progride metonicamente e que termina circunscrevendo o significante ausente, traçando uma órbita ao redor dele, órbita de cuja leitura - que chamaríamos leitura radial - podemos interferi-lo". [63] Como se poderia dizer da melhor poesia. Neste sentido, este Jardim de camaleões, em se tratando de poesia, e não de representação de uma tradição vista como à margem, existente em meio a sociedades aclamadas como "pobres", sem importância no funcionamento vital da literatura, é um jardim de riquezas e uma leitura radial.

* 

André Dick nasceu em Porto Alegre (RS), em 1976. Publicou os livros de poesia Grafias (2002) e Papéis de parede (2004). Organizou, com Fabiano Calixto, o livro A linha que nunca termina - pensando Paulo Leminski (2004). 

Leia também poemas de André Dick e ensaios do autor sobre Augusto de Campos e Paulo Leminski.

*

Notas

[1] SARDUY, Severo. Por uma ética do desperdício. In: ______. Escrito sobre um corpo (Org. Haroldo de Campos). Trad. Lígia Chiappini Moraes Leite e Lúcia Teixeira. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 62.

[2] PERRONE-MOISÉS, Leyla. Antonio Candido: o amor à literatura. In: ______. Inútil poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.330.

[3] CAMPOS, Haroldo de. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In: _____. Metalinguagem & outras metas. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 243.

[4] CANDIDO, Antonio. Uma literatura empenhada. In: ______. Formação da Literatura Brasileira - Vol. 1. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. p. 28.

[5] Ibidem, p. 24.

[6] Ibidem, p. 24.

[7] CANDIDO, Antonio. Literatura de dois gumes. In: ______. A educação pela noite e outros ensaios. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989, p. 180.

[8] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Literatura colonial. In: ______. O espírito e a letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 387. 

[9] MOISÉS, Massaud. Barroco. In: ______. A literatura portuguesa. 28. ed. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 72

[10] Ibidem, p. 72.

[11] Ibidem, p. 73.

[12] Ibidem, p. 73.

[13] Ibidem, p. 73.

[14] Ibidem, p. 74.

[15] VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Ensaio histórico sobre as letras no Brasil. In: ______. O berço do cânone (Orgs. Regina Zilberman e Maria Eunice Moreira). Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998, p. 242.

[16] Ibidem, p. 242.

[17] SOUSA SILVA, Joaquim Norberto de. Modulações poéticas. In: ______. O berço do cânone (Orgs. Regina Zilberman e Maria Eunice Moreira). Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998, p. 109.

[18] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Panorama da literatura colonial. In: ______. Capítulos de Literatura Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 416.

[19] MOISÉS, op. cit., p. 74.

[20] SARDUY, op. cit., p. 77.

[21] PERLONGUER, Néstor. Caribe transplatino. In: _____. Caribe transplatino: poesia neobarroca cubana e rioplatense. São Paulo: Iluminuras, 1991. p. 14.

[22] Ibidem, p. 14.

[23] Ver BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.

[24] DANIEL, Claudio. A escritura como tatuagem. In: DANIEL, Claudio (Org., seleção e notas.). Jardim de camaleões: a poesia neobarroca na América Latina. Trad. Claudio Daniel, Luiz Roberto Guedes, Glauco Mattoso. São Paulo: Iluminuras, 2004, p. 18.

[25] COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Trad. Cleonice P. B. Mourão, Consuelo F. Santiago e Eunice D. Galéry. Belo Horizonte: Ed. UFMG, p. 20.

[26] No Brasil, Haroldo lembra inclusive das obras de Sousândrade, esquecido também por Candido, e de obras dos árcades, como Cartas chilenas, que são vistos por Candido como fundadores de uma literatura com raízes brasileiras. No Brasil, o contato com o barroco é restabelecido, de forma evidente, no Modernismo, a partir das investidas de Mário de Andrade na área musical e de Oswald de Andrade nas artes plásticas, mesmo que a poesia de ambos não traga características especificamente barrocas. Indispensável lembrar de outros nomes evocados por Haroldo, como Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos Jorge de Lima, Affonso Ávila, Mário Faustino; eu acrescentaria o Ferreira Gullar de Crime na flora e a Hilda Hilst de Fluxofloema. Importante lembrar, também, do estudo "A arquitextura do barroco" (In: A operação do texto. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 139-150), em que Haroldo, num lance de sincronia, vê traços barrocos em poemas de José Lezama Lima, Stéphane Mallarmé, Gôngora, Sousândrade, Li Shang-Yin, Lícofron (poeta do século III a. C.) e Décio Pignatari.

[27] Ou seja, o poeta barroco não necessariamente trabalha apenas com o "caráter lúdico", com o "divertimento verbal", por meio de um "malabarismo das imagens", mostrando um "gosto pela pirotecnia vocabular, sintática e versificatória", como escreve Massaud Moisés (in: A literatura portuguesa. 28. ed. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 85). Num sentido parecido, Hugo Friedrich escreve sobre a tradição espanhola, sem mencionar diretamente o Barroco, que provém de Gôngora: "Um estilo obscuro, pleno de laconismos e alusões, com tendência a abandonar tudo à intuição, a suprimir os liames objetivos e lógicos" (In: Estrutura da lírica moderna. Trad. Marise M. Curioni. São Paulo: Duas Cidades, 1978, p. 146). Antonio Candido, no ensaio "Literatura de dois gumes", escreve que o Barroco traz "jogos de argúcia do espírito" e que seus representantes no Brasil "se adaptaram com vantagem a uma moda literária que lhes permitia empregar ousadamente a antítese, a hipérbole, as distorções mais violentas da forma e do conceito", utilizando o Barroco como "forma providencial" (In: A educação pela noite e outros ensaios. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989, p. 165).

[28] PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 332.

[29] KOZER, José. O neobarroco: um convergente na poesia latino americana. In: Jardim de camaleões: a poesia neobarroca na América Latina. Org., sel. e notas de Claudio Daniel. Trad. Claudio Daniel, Luiz Roberto Guedes, Glauco Mattoso. São Paulo: Iluminuras, 2004, p. 28.

[30] DANIEL, Claudio (Org, seleção e notas.). Jardim de camaleões: a poesia neobarroca na América Latina.  Trad. Claudio Daniel, Luiz Roberto Guedes, Glauco Mattoso. São Paulo: Iluminuras, 2004, p. 54.

[31] Ibidem, p. 49.

[32] Ibidem, p. 225.

[33] SCHWARTZ, Jorge. Orelha. In: Caribe transplatino: poesia neobarroca cubana e rioplatense (Org. Néstor Perlongher). Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1991.

[34] Ibidem.

[35] DANIEL, 2004, p. 175.

[36] Ibidem, p. 44.

[37] Ibidem, p. 133.

[38] Ibidem, p. 138.

[39] Ibidem, p. 63.

[40] Ibidem, p. 61-62.

[41] Ibidem, p. 60.

[42] Ibidem, p. 64.

[43] Ibidem, p. 69.

[44] Ver LEZAMA LIMA, José. A expressão americana. Trad. Irlemar Chiampi. São Paulo: Brasiliense, 1988.

[45] BARTHES, Roland. A face barroca. In: O rumor da língua. 2. ed. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 295.

[46] SARDUY, op. cit., p. 79.

[47] Ibidem, p. 79.

[48] DANIEL (Org.), op. cit., p. 217.

[49] Ibidem, p. 187.

[50] Ibidem, p. 75.

[51] CAMPOS, Augusto de. Poesia concreta. In: ______; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 41.

[52] RISÉRIO, Antonio. Ensaio sobre o texto poético em contexto digital. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; CONEPE, 1998, p. 75.

[53] Ibidem, p. 75.

[54] Ibidem, p. 75.

[55] CAMPOS, Haroldo de. Xadrez de estrelas: percurso textual 1949-1974. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 161. O título, Xadrez de estrelas, é expressão extraída de um texto do Padre Antônio Vieira.

[56] SARDUY, Severo. Rumo à concretude. In: CAMPOS, Haroldo de. Signantia quasi coelum: Signância quase céu. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 125.

[57] Ibidem, p. 88.

[58] Ibidem, p. 86.

[59] Ibidem, p. 119.

[60] Ibidem, p. 122.

[61] DANIEL, op. cit., p. 21.

[62] BARTHES, op. cit., p. 295.

[63] SARDUY, op. cit., p. 62.

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