JARDIM 'TRANSBARROCO'
André Dick
A antologia Caribe transplatino - poesia neobarroca cubana
e rioplatense, organizada por Néstor Perlongher e com
traduções de Josely Vianna Baptista, trazia, para o leitor
brasileiro, um apanhado sobre a poesia neobarroca no início
dos anos 1990 (tendo sido lançada em 1991, pela editora Iluminuras).
Já nessa antologia, podia-se perceber que esse caminho poético,
capaz de revitalizar, dentro do contexto latino-americano,
a noção do Barroco, investe não raramente num terreno híbrido
entre prosa e poesia, rompendo a separação dos gêneros. Por
um lado, ele é visto como exagerado - mesmo Severo Sarduy
escreveu que "todo o barroco não é mais do que uma hipérbole"[1]
-, obscuro, ilegível, com pretensão a ser profundo,
e mesmo retórico. Por outro lado, de uma maneira mais justificável,
ele é peça chave de uma desconstrução (embora a palavra esteja
gasta pelo uso) benéfica para o "sistema" tradicional: ele
descentralizaria objetos (autores, obras) e a tradição vigente.
Parece haver, contudo,
um desentendimento no que se refere à sua aceitação. Começarei
por aquela que conheço, pelo menos um pouco, pois diz respeito
à tradição literária do Brasil, mas que pode estabelecer,
em alguns pontos, a desconfiança sobre o neobarroco de forma
geral na América Latina, afinal literaturas não existem isoladas
em sistemas.
O
Barroco, a meu ver, merece outra espécie de análise da historiografia
crítica. No Brasil, é necessário sempre lembrar que ele foi
esquecido pelo importante crítico Antonio Candido, "crítico
de formação e inspiração sociológicas",
[2]
na concepção da Formação da literatura brasileira,
o que foi questionado por Haroldo de Campos, em seu
ensaio "Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura
brasileira" (1980) e na obra O seqüestro do barroco na
Formação da Literatura Brasileira: o caso Gregório de Matos
(1988). O Barroco, que se nutriu da "razão antropofágica,
desconstrutora do logocentrismo que herdamos do Ocidente",
[3] segundo Haroldo de Campos, é peça importante para
compreender a poética a-histórica, sem que a crítica literária
analise determinadas obras por um eixo fixo no sentido de
que tudo que surgiu na Europa é copiado e não incorporado,
com múltiplas diferenças, por outro olhar. Candido refere
na introdução de sua Formação: "Justificava-se no século
passado, quando se tratou de reforçar por todos os modos o
perfil da jovem pátria e, portanto, nós agíamos, em relação
a Portugal, como esses adolescentes mal seguros, que negam
a dívida aos pais e chegam a mudar de sobrenome. A "nossa"
literatura seria um ramo da portuguesa: pode-se considerá-la
independente desde Gregório de Matos ou só após Gonçalves
Dias e José de Alencar, segundo a perspectiva adotada".
[4]
Candido
opta pelo segundo ponto de vista. Ele considera a literatura
nacional representativa a partir do Arcadismo e do Romantismo,
valorizando autores como Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu
e José de Alencar. O Barroco só existiria a partir de sua
redescoberta no Romantismo, até este período não tendo existido
literariamente. [5]
Ou seja, o Barroco, mesmo com "homens do porte" do Padre
Antônio Vieira e Gregório de Matos, seria mais uma "manifestação
literária" do que uma peça do sistema que constitui a literatura
brasileira, pois se restringiu, inicialmente, à tradição local
da Bahia. [6]
No ensaio "Literatura de dois gumes" (1966), Candido escreveria,
revelando melhor sua posição, que o Barroco teria instaurado
"nos hábitos mentais do brasileiro um amor irracional pela
grandiloqüência pura e simples", que levava "o espírito a
se enganar a si mesmo, e a ação a cruzar os braços ou se perder
na utopia estéril".
[7] O caso é que o domínio colonial literário - representado
pela chegada do Barroco às Américas - não representou a simples
aceitação do que vinha de fora, mas uma incorporação de formas
que se alastrou, afinal, queira-se ou não, pela cultura do
Ocidente. Sérgio Buarque de Holanda, mesmo partindo do mesmo
princípio de Candido, escreve: "Galho da literatura portuguesa,
a brasileira dos tempos coloniais não pode ser arbitrariamente
separada da moldura que naturalmente lhe corresponde. Renascimento,
Barroco, Neoclassicismo setecentista representam formas ou,
para empregar o termo já consagrado entre modernos
historiadores da arte, vontades de expressão, mais
ou menos definidas e que se expandiram através de todo
o mundo da civilização européia".
[8]Não
pode ser arbitrariamente separada e, certamente, não
deveria ser.
Analisemos
um pouco a origem do Barroco. Fundado no na Espanha e introduzido
em Portugal durante o reinado filipino, em 1580, o Barroco
é um movimento de "instável contorno, por corresponder a uma
profunda transformação cultural, cujas origens constituem
ainda objeto de polêmica".
[9] Já se encontram no Renascimento algumas de suas formas
originárias, principalmente no final do século XVI, "quando
já se percebem as palpitações da discórdia interna que iria
transformar-se em barroco, enfeixada no chamado Maneirismo".
[10] O movimento procurou mesclar a "visão do mundo medieval"
e a "ideologia clássica, renascentista, pagã, terrena, antropocêntrica",
empenhando-se "no sentido de conciliar o claro e o escuro,
a matéria e o espírito, a luz e a sombra, visando a anular
pela unificação a dualidade do ser humano, dividido entre
os apelos do corpo e os da alma".
[11] Pela própria dualidade, o Barroco corresponde a
dois modos de conhecimento. O primeiro, dado pela "descrição
dos objetos, num estado de verdadeiro delírio cromático, em
que se procurava saber o como das coisas", recebeu o nome
de Gongorismo - em razão de Gôngora ser seu maior representante.
[12] O segundo, que pressupunha a "análise dos objetos
no encalço de lhes conhecer a essência, ou melhor, saber o
que são, conceituá-los", para tanto utilizando-se da "inteligência
e da Razão, sem prejuízo dos sentidos", em oposição ao "caos
plástico" da "descrição gongórica", aplicando a "ordem racionalista,
lógica, discursiva, própria de quem procura estabelecer silogismos
em torno da vida e das coisas", foi chamado de Conceptismo,
tendo Quevedo como representante típico.
[13] O Gongorismo se propunha como "espetáculo para o
gozo dos sentidos; forma inferior, discutível ou requintada,
de pragmatismo", pressupondo sempre a "existência de um auditório
(...) ao qual suas obras deveriam dirigir-se", com a mescla
entre "poesia e prazer lúdico", enquanto o Conceptismo pretendia
organizar "as idéias com o fito de convencer e ensinar".
[14] O Gongorismo, portanto, estaria bastante ligada
à maneira como Gregório de Matos produziu e fez com que sua
obra se infiltrasse na corrente popular, através de leituras
em público (como o Padre Antônio Vieira, um grande orador),
o que não significa que Quevedo não esteja presente em sua
formação. Para Francisco Adolfo de Varnhagen,
[15] em sua "recuperação" do Barroco, Gregório era "escravo
imitador de Quevedo": "Como de Quevedo, o estilo é cortado
e desigual". Matos traria, no entanto, uma "sandice, um disparate,
ou uma indecência". A visão de Varnhagen não é mais que desanimadora:
"Sua imaginação (a de Gregório) era talvez viva, mas descuidada.
O seu gênio poético faísca, mas não inflama; surpreende, e
não comove; salta com ímpeto e força, mas não voa, nem atura
na subida". [16]
Outro crítico, Joaquim Norberto de Sousa Silva, não pensava
muito diferente: "Foi prodigioso na sátira, mas ao cabo rara
deixou-nos que digna seja de ler-se: obscenidades, frases
bordalengas andam de envolta com seus versos: contudo seu
estilo é simples e corrente, e isento desses trocadilhos e
antíteses, com que os poetas seus contemporâneos borrifaram
suas obras, pois que não era para afetações, mas todo natureza,
todo satírico, se bem que infelizmente um satírico todo indecência".
[17] Sérgio Buarque de Holanda escreveria: "Quase se
pode dizer de Gregório que, onde carrega mais fortemente as
tintas na pintura dos conterrâneos, é freqüentemente onde
mostra maior dependência dos modelos ultramarinos. Dependência
que se confunde muitas vezes com o plágio mais deslavado".
[18] É curioso que, embora datadas, essas reflexões
carregam um pouco do que ainda se pensa sobre o Barroco e
sobre o neobarroco, mesmo no início do século XXI: ao invés
de se falar em diálogo crítico, fala-se em imitação, como
se o Barroco se propusesse a ser uma vanguarda; a paródia
(compartilhada com a hipérbole) implicaria na indecência da
linguagem; a sintaxe estranha é confundida com "frases bordalengas";
e, finalmente, um trabalho especial com a coloquialidade trazida
para os limites estranhos da linguagem é tomada por uma seleção
de "trocadilhos e antíteses" (o mesmo que se diz das paranomásias
de Roman Jakobson).
É
importante atentar para o fato de o Barroco ter começado nas
artes plásticas, como constata Massaud Moisés: "a pintura,
a escultura e a arquitetura traduzem, mais a primeira que
as outras, a busca da conciliação que vai no interior do Barroco.
O belo-belo, a linha torta, o excesso de pormenor, o desenho
que foge do ponderado, do 'razoável', o jogo do claro-escuro
em que a sombra ocupa lugar preponderante".
[19] Essa consideração é importante, a partir do pressuposto
de que, para Ezra Pound, a poesia está mais para as artes
plásticas e para a música do que para a literatura. Em sua
análise sobre o seqüestro do barroco, Haroldo vai ligar Gregório
à figura do músico, também baiano, Caetano Veloso (sem querer
comparar as potencialidades de Gregório e Caetano). Respondendo
à posição de Antonio Candido de que a obra de Gregório era
inexistente não ter sido publicada à época em que foi feita,
apenas apresentada oralmente ao público, Haroldo vê, nesse
movimento, uma tradição poético-musical à margem. Compõe,
desse modo, um estudo sobre a carnavalização proposta pelo
Barroco, o que Severo Sarduy considerou como um espaço da
superabundância e do desperdício, contrariando a "linguagem
comunicativa, econômica, austera, reduzida a sua funcionalidade".
[20] Curiosamente, Pound nega a presença do Barroco em
sua concepção literária, o que não indica que seus pressupostos
não possam ser utilizados para uma investigação da forma barroca.
Baseando-se
em proposições de González Echevarría, Néstor Perlongher,
estudioso do neobarroco, lembra que o Barroco é "uma arte
furiosamente antiocidental, pronta a se aliar, a entrar
em misturas 'bastardas' com culturas não ocidentais"; e, recorrendo
a Lezama Lima, "se processa, na transposição americana do
Barroco Áureo (séculos XVI/XVII), o encontro e imisção com
elementos (aportes, reapropriações, usos) indígenas e africanos:
hispano-incaixo e hispano-negróide, (...) fixo nas dobras
fenomenais do Aleijadinho e do índio Kondori".
[21] Segundo o próprio Perlongher, sendo "Poética
da desterritorialização, o Barroco sempre choca e percorre
um limite preconcebido e sujeitante. Ao dessujeitar, dessubjetiva.
É o desfazimento ou o desprendimento dos míticos. Não é a
poesia do eu, mas a aniquilação do eu. (...) Tende à imanência
e, curiosamente, essa imanência é divina, alcança, forma e
integra (constitui) sua própria divindade ou plano de transcendência".
[22] Todas essas colocações de Perlongher se aproximam
muito das observações do Barroco original. E é esta "aniquilação
do eu" que provocou Walter Benjamin em seus textos sobre o
Barroco. Ao filósofo alemão interessava sobretudo o conceito
do barroco como alegoria - representada pela imagem baudelaireana
das ruínas - que, vista de perto, adquire o sentido de signo
isolado, de hieróglifo.
[23]
Haroldo de Campos, a quem foi dedicada a primeira antologia
lançada no Brasil, Caribe transplatino, questionava,
em seu estudo O seqüestro do barroco na formação da
literatura brasileira, exatamente a ausência dessa
tradição no Brasil: de fíguras singulares como Gregório de
Matos e o Padre Antonio Vieira, por exemplo (lembre-se também
a recuperação de Sousândrade feita por Haroldo e Augusto de
Campos, e de Pedro Kilkerry, por Augusto de Campos). Esses
autores eram relegados a segundo plano na Formação da literatura
brasileira, por constituírem obras anteriores à criação
de uma literatura pressuposta a partir de raízes brasileiras,
mesmo que ligadas ao Romantismo. Que a formação de Antonio
Candido, que elevou os românticos ao ponto máximo da tradição,
não tivesse admitido esse autor ou o estilo do qual ele fez
parte é parte da escolha dele como crítico - essencial para
compreender a história de uma parte da crítica brasileira.
Mas a quase completa ausência de autores com traços dessa
forma transistórica (conforme Néstor Perlongher), não uma
escola, na releitura de nossa tradição de leituras, se faz
injusta. Pois o neobarroco não é uma vanguarda stricto
sensu - ou seja, não é um movimento considerado apenas
possível no "primeiro mundo" ou um movimento a ser copiado
por autores de uma tradição pobre -, à medida que "não se
preocupa em ser novidade": "ele se apropria de fórmulas anteriores,
remodelando-as, como argila, para compor o seu discurso: dá
um novo sentido a estruturas consolidadas, como o soneto,
a novela, o romance, perturbando-as".
[24] Como avalia o crítico francês, aluno de Roland Barthes,
Antoine Compagnon, a "estética do novo" proposta pelas vanguardas
sempre existiu, mas no "sentido de uma estética da surpresa
e do inesperado, como no barroco", e não no de uma "estética
da mudança e da negação".
[25] Haroldo já analisava que traços barrocos poderiam
ser encontrados em autores de muitos períodos literários.
[26]
O Barroco e o neobarroco fazem frente a uma linha pseudo-romântica,
que costuma ser uma tradição aliada a um excesso verbal sem
um trabalho de linguagem interessante. O apuro verbal, o trabalho
que implica a reprodução de leituras matizadas por um novo
olhar, com os quais os poetas neobarrocos trabalham, é nitidamente
amplo. Se esses não têm a preocupação religiosa que tinham
os poetas barrocos, nem se dividem em escolas ligadas a Gôngora
ou a Quevedo, desapegando-se de uma discussão filosófica sobre
o corpo e a alma, embora não desconsidere as questões que
se mostrem além do olhar, eles ainda se situam entre uma clareza
e uma obscuridade constantes no tratamento que dão ao texto
como encontro de linguagens e tradições, somadas a uma dicção
contemporânea. Não se trata de os neobarrocos terem um olhar
exótico sobre as coisas, como se os objetivistas, por exemplo,
tivessem um olhar cerebral, metalingüístico, mas de eles também
serem conscientes da linguagem que utilizam, através do amarramento
do acaso numa forma literária. Nesse sentido, não parece real
que o poeta neobarroco deixa seu poema se fazer por conta
própria, sem saber onde amarrá-lo, como se ele fosse fruto
do inconsciente; na "realidade", ele lida é com a "consciência
do inconsciente".
[27] Adotar uma proliferação na linguagem, no caso, não
significa ignorar o trabalho com a lapidação da linguagem,
adotando tanto o desperdício evocado por Severo Sarduy quanto
o rigor e os limites de criticidade.
Para compreender melhor
essa cena poética, é vital que a coletânea Caribe transplatino,
lembrada de início, ganhe a companhia, agora, na entrada do
novo século, de Jardim de camaleões: a poesia neobarroca
na América Latina, com organização, seleção e notas de
Claudio Daniel e tradução deste, de Luiz Roberto Guedes e
Glauco Mattoso. A editora é a mesma da primeira antologia
publicada no Brasil: Iluminuras. E Haroldo passa de homenageado
a autor do prefácio, intitulado "Barroco, neobarroco, transbarroco".
Severo Sarduy ainda
não havia usado o termo neobarroco (só o fez em 1972), quando
Haroldo o utilizou no texto "A obra de arte aberta", de 1955,
ou seja, quase vinte anos antes. O autor de Galáxias,
nesse texto que ajudou a constituir a Teoria da poesia
concreta, lembrava que Pierre Boulez, em conversa com
Décio Pignatari, havia manifestado o seu desinteresse
pela obra de arte "perfeita", "clássica", e enunciou a sua
concepção da obra de arte aberta como um "barroco moderno".
Para Haroldo, este seria o "neobarroco", capaz de atemorizar,
com a ousadia da juventude que marcava a teoria da poesia
concreta, os que "amam a fixidez das soluções convencionadas".
Ao falar dos poemas do irmão, Augusto de Campos falaria num
"concreto barroco". Essa ligação se faz aceitável à medida
que o Barroco é um conceito transistórico, pressupondo-se
sua importância para a poesia não só contemporânea. Quando
Haroldo, em Galáxias, compõe analogias, arremedos de
sons, trabalhando e retrabalhando leituras, com um vocabulário
expansivo, ele provavelmente esteja tentando compor esse concreto
barroco, pela sua representação também do branco-escuro da
página numa série de poemas como "O â mago do ô mega". Onde
vêem parnasianismo em sua obra, parece muito mais evidente
essa linha tênue do neobarroco. E, por isso, Haroldo complementa
o título de sua apresentação para a antologia Jardim de
camaleões com a palavra "transbarroco", isto é, além do
Barroco e do neobarroco.
Claudio, percebendo
a importância do Barroco, numa linha histórica - mas situada
à margem, sincrônica -, tem se dedicado, há alguns anos, a
compor uma obra pessoal com ressonância de suas leituras (com
livros como Sutra, Yumê e A sombra do leopardo)
e a traduzir autores como José Kozer, Eduardo Milán etc. Sua
antologia, no entanto, apresenta outros nomes, alguns mais,
outros menos conhecidos, além de trazer representantes do
Brasil, o que não havia na antologia precursora. Figuram nela
os nomes de Haroldo de Campos (em poemas e fragmentos de Galáxias),
Horácio Costa, Paulo Leminski (em trechos do Catatau),
Josely Vianna Baptista e Wilson Bueno (em poemas e passagens
de Mar paraguayo).
Começo por um dos nomes
mais importantes, no cenário atual, e isso parece um consenso:
o de José Kozer, em plena atividade, autor de sugestivo texto
sobre alguns poetas de Jardim de camaleões. Poeta cubano
que vive nos Estados Unidos, Kozer tem poemas - aliás, hoje,
uma notável quantidade, com qualidade, o que importa mais
- ao mesmo tempo expansivos e tensos, mas a tensão com a qual
ele produz sempre acaba implodindo. Os segmentos de idéias
que parecem soltas ao longo de cada poema seu, num olhar mais
atento, acabam adquirindo um sentido mais elaborado do que
parecia à primeira vista. Ou seja, o olhar que lança sobre
as coisas, mesmo que se disperse através de uma fragmentação
nada coloquial, se produz em uma sintaxe elaborada. Esta se
desautomatiza, voltando-se para uma espécie de coesão na qual,
já no curso de entendimento do leitor, transforma o poema.
Por isso, é possível afirmar que ele trabalha com imagens
em que há uma experimentação de movimentos, baseando-se, como
se ouvisse uma peça musical, tanto em silêncios quanto em
ruídos, peças, intervalos de tempo-e-espaço, numa espécie
de transição do zen oriental para o caos da vida urbana; são
claramente traços barrocos, construído por "pérolas irregulares".
A poesia de Kozer é um bom exemplo de como uma poesia que
lida mais com a implosão sintática, coordenando-o por meio
de um pensamento pode ser consciente de seu trabalho crítico
(Octavio Paz, ao analisar Mallarmé, comentava o domínio do
poeta francês sobre o "acaso", por meio do raciocínio crítico,
do poema como peça de reflexão
[28] ), mas feita através de camadas sonoras irregulares,
às vezes contidas, às vezes expansivas, respeitando a "estética
do desperdício", que Severo Sarduy entendia ter de especial
no Barroco, mas também critérios de rigor. É interessante
lembrar também que Kozer observa, no seu ensaio, que a poesia
neobarroca busca a universalidade: "Ela é cosmopolita na natureza
e ainda altamente localizada, de forma que um poeta neobarroco
está à vontade com uma rua de Havana ou com Li Po e seus amigos
bebendo um copo de saquê ao pé das Montanhas Sagradas de Tai
Chan, com a densidade do Amazonas ou Mato Grosso, bem como
com a experiência de superfície visual dos Pampas, o deserto
do Atacama ou a tundra russa".
[29] Tudo isso parece de acordo com a própria poesia
de Kozer, ampliando os lugares que o motivam, como em "Centro
de gravidade", no qual escreve: "Minha pátria é a irrealidade",
movimento que acompanha também a poesia de Raul Zúrita, com
seus poemas sobre o deserto do Atacama, ou de Rodolfo Hinostroza,
em seu poema plurilíngüe "Ária verde". Daí também os outros
trabalhos de Kozer com tradução de Claudio Daniel, no Brasil,
como Geometria da água, Rupestres e Madame
Chu & outros poemas, merecerem uma edição conjunta
e ampliada.
Mas há outros nomes
a destacar - e muito. Como o de Coral Bracho, poeta com um
apuro de imagens ligadas à água - Josely Vianna Baptista comenta,
no livro Musa paradisiaca, que em sua obra existe um
"rumor constante de rio corrente" -, mas também com a ousadia
de "De seus olhos ornados de areias vítreas", com um certo
contato corporal (mas sem emoção, contido):
Dizem do tato,
de suas centelhas
dos jogos tranqüilos que
deslizam à borda,
à margem lenta dos ocasos.
De seus lábios de gelo.
[30]
Ou, obviamente, em "Água
de bordas lúbricas", em que escreve:
Água
de medusas,
água láctea, sinuosa,
água de bordas lúbricas,
espessura vitrificante - deliquescência
entre contornos deleitosos.
Água - água suntuosa
de involução, de languidez.
[31]
A profusão de adjetivos,
característica do barroco, e o ambiente lamacento que desperta
o poema dão um tom não de leveza, mas de uma espécie de violência,
como se a água estivesse querendo romper uma pedra, como prossegue,
em tensão, ao longo de todo o poema.
Coral Bracho é um talento
feminino que faz companhia à Tamara Kamenszain, cuja seleção
de poemas traz imagens raras, como o seguinte:
Como
o bailarino de teatro nô
que
detém cada gesto
para
mostrá-lo na cena quieta
e
detém o desenho de gestos
para
suspendê-lo em uma história
quieta
sem desenlace
assim
a corrente de palavras
começa
a circular detida
lentamente
habita o teatro
povoa
a cena
com
letras
coloca-se
em seu papel. [32]
O bailarino de teatro
nô é comparado a uma "corrente de palavras" e sua dança -
a cena vista - se passa no teatro da folha em branco, sendo
comparada a "letras". Passos como letras. Jorge Schwartz,
na orelha da antologia Caribe transplatino, comentava
que o trabalho de Tamara Kamenszain se distinguia, "em contraposição
ao excesso da proliferação barroca", pela "concisão e pela
síntese". [33]
Em sua poesia, conforme ainda Schwartz, haveria "a ânsia da
perfeição, na realizada tentativa de 'atrapar' objetos cujas
imagens lavradas recuperam um tempo objetual".
[34]
Há também a cubana Reina
María Rodríguez, que, sobretudo em "Âmbar", revela um certo
desalento extraído do cotidiano, daí, a meu ver, também o
neobarroco não se afastar tanto assim de um olhar ligado a
uma percepção mais objetiva, não no sentido da transposição
óbvia da realidade para o texto, no sentido da mímesis tradicional,
mas no sentido de se mostrar consciente do que realiza:
Pulseira
de pedras quadradas que caem sustidas.
De
cada uma se desprende
o
valor de nossa amizade.
Quadrada
cidade como contas de muitas cores:
quadrilátero
infernal de colina em colina
desordenado
para chegar a ti.
Como
conta estas contas tão dispersas?
O
vendedor as pesou na balança, sem paixão,
mas
foi enganado. [35]
Outro poeta que lida
com o cotidiano de forma singular é Carlos Rodriguez Ortíz,
como no poema "Calçadas sem sapateados", unindo a caminhada
solitária, entrecortada por varredores de rua, a um diálogo
com amigos:
Passo
de uma rua a outra e há um vapor de chaminés
nos
edifícios que contemplo.
Sigo
rua adentro e sigo divisando as coisas que me parecem
familiares
(por meu hábito de vê-las).
Finalmente
regresso a minha casa e cumprimento algumas pessoas.
Os
varredores escondem suas vassouras depois de uniformizados
e
param na calçada e às vezes não cumprimentam.
Dou
a eles a linguagem agradável de meus lábios, a Darío e aos
outros
que bebem o dia em seus copos de cevada.
[36]
Nem todo o trabalho dos
neobarrocos, é claro, permite essa ligação direta com o cotidiano.
É muito mais comum, aliás, essa poesia se manter num fio tênue
entre o claro e o escuro, como no barroco original. Nesse
sentido, encontramos um bom representante em Victor Sosa, capaz
de sustentar um poema longo como "De Dizer é Abissínia"
sem perder o controle do encadeamento, do ritmo (mesmo que
não seja facilmente percebido, ou musical). León Félix Batista,
que Claudio Daniel traduziu com Fabiano Calixto no livro Prosa
do que está na esfera, no sentido também da experimentação,
é um dos mais radicais da antologia: trabalha com imagens
em decomposição (em todos os sentidos), ligadas sobretudo
às sombras, mas com uma organização matemática (como em Lautréamont),
mas carnavalizada, com inserções de referências a cultura
pop, que dá ainda mais estranheza ao que está tentando
configurar.
São especiais os poemas
de Mário Eduardo Arteca, sobretudo "LARRY RIVERS por John
Ashebery", em que há uma mescla da Language Poetry (imagens
comuns do cotidiano sob um viés de linguagem desautomatizada),
no caminho inspirado por Gertrude Stein e John Ashbery, com
a profusão de imagens do Barroco, encadeando um pensamento
a outro, como se o pensamento mais importante fosse o quebra-cabeças
irônico que está tentando apresentar ao leitor, procurando
uma espécie de labirinto entre as estrofes:
Larry
pinta sua sogra
porque
ficava em casa. Não pretendia
conferir-lhe
algum significado universal,
nem
seu oposto. Atualmente (1962)
está
pintando maços de cigarros
com
a graciosa seriedade de Tiépolo.
Não
pretende dizer-nos que os objetos
comuns
têm seu lugar
no
sistema das coisas.
Ou
que nada seja mais importante
que
nenhuma outra coisa.
[37]
Nesse sentido, ele parece
dialogar - não sei, obviamente, se o diálogo é real, ou seja,
consciente - com alguns trabalhos de Aníbal Cristobo (argentino
radicado no Brasil). Leia-se, por exemplo, o seguinte fragmento
do poema "R. B. KITAJ por R. B. Kitaj", mostrando o lado onírico
de um desastre:
Luzes
dianteiras de automóveis fazem frente
às
minhas. O que é destroçar e gaguejar
à
maneira de um búfalo branco, into the dreams.
Preparo
meu terreno, se chegar até amanhã.
Se
eu me cortar, e com apenas um primeiro contato
do
fluxo deste sangue com os vapores de gasolina,
voará
em pedaços este lindo Oldsmobile 62.
[38]
De
Eduardo Espina, destaque-se a precisão formal da primeira
parte de "Caravaggio, vigília final":
I
A
luz ouve o que necessita,
habitar
onde não possui tudo.
A
ameixeira volta-se para vê-la
tornar-se
salutar avalanche.
[39]
Ou o impressionante
"Velhice de Wittgenstein", com seu poder de dispersão e de
síntese, configurando a solidão de um cenário caseiro e os
mínimos movimentos que o cercam, tomando como matéria a organização
das coisas concentradas nas pequenas coisas (azaléas, uma
"débil névoa", "semente líquida") diante de sentimentos como
a morte:
Tudo posa de impossível
sentimento
e um cenário de quase azaléas
em casa
o suave, o casebre, uma
débil névoa.
Pouco seria dele sem conhecê-lo.
Seriam sombras, incestos,
seria um rosto.
Semente líquida até que
culmina
e um uso para pensar em
cada coisa
quando o sentido é o que
ele fez.
Já nada nem o igual da
morte.
O lar do fado redobra o
castigo,
constelação anterior ao
terreno.
Por dizê-lo, assim, melhor
não sabê-lo.
Melhor deixar em paz as
palavras.
Agora tudo e árduo vaso
e jade.
Outro ouvir no que o mundo
cala. [40]
Perceba-se que, no movimento
final, Espina lança um olhar de silêncio sobre as palavras.
Tudo seria "vaso" e "jade", que seria outra forma de ouvir
o silêncio, neste caso, da abstração na matéria. Espina trabalha
sobretudo com os sentidos. O olhar torna-se ou tato ("Dorme
a pele apesar do que passa. / Os olhos tomam como verdade
as palavras / as coisas buscam um lugar na visão"
[41] ) ou representação da morte ("Morreu com os olhos
abertos / para que as imagens / seguissem saindo"
[42] ).
A poética de Eduardo
Milán, outro incluído, incorpora (e não dilui) a poesia concreta.
Suas imagens, entrecortadas, com palavras espalhadas pela
página, são precisas: "Entre a lâmpada e a / fronte da luz:
/ ponte / tridente branco / aí se afogam as palavras / gotas
/ brancas / vermelhas como o poema", do poema "Estação da
fábula". [43]
Nele, as palavras escorrem como gotas de tinta na parede branca
(como letras na página em branco). E Roberto Picciotto, a
julgar pelos poemas "Ancorado na ilha do cotovelo" e "Aschenbach
chez lui", é um nome que surpreende, pela precisão dos versos.
No primeiro poema citado, ele desenvolve, em seis quadras,
o travelling de um olhar para o mar até o rosto de
um marinheiro, investindo em uma amplitude de imagens.
Há a presença de nomes (sobretudo para um leitor que se mantém
um pouco afastado da leitura do neobarroco) mais conhecidos,
como os de Severo Sarduy (um dos poucos autores no mundo que
soube revitalizar o soneto, não à toa traduzido por outro
revitalizador da forma, no Brasil, Glauco Mattoso), Néstor
Perlongher (um dos pensadores principais do neobarroco e organizador
da antologia Caribe transplatino), José Lezama Lima
(nome clássico, autor de obras como Paradiso e do essencial
estudo A expressão americana
[44] ) e Roberto Echaverren (responsável pelo posfácio).
Desses nomes, Sarduy chegou a escrever para a clássica revista
Tel Quel, na qual se reuniam alguns dos pensadores
mais importantes da França (Barthes, Derrida, Kristeva). Em
relação a uma obra sua, Roland Barthes escreveu sobre a universalidade
de sua linguagem. Seu "texto cubano" seria mais que a representação
de uma língua: seria uma "inscrição de culturas e épocas diversas",
deslocando, assim que traduzido, o chamado "barroco verbal",
vindo da Espanha originalmente, de natureza gongoriana ou
quevediana, para a língua francesa. A escritura dá a liberdade,
inclusive a do Barroco, negado inicialmente pela cultura francesa,
assim como a poética de Mallarmé, o que fez com que o significante
não tivesse uma proliferação de sentidos.
[45] A proposição de Barthes, portanto, é adequada: Sarduy
é um dos que reestabeleceram a noção do Barroco como universal.
Sua própria fala sobre o neobarroco é sintomática de um processo
de leituras de Roland Barthes e Jacques Derrida: "[...] o
barroco atual, o neobarroco, reflete estruturalmente a desarmonia,
a ruptura da homogeneidade, do logos enquanto absoluto,
a carência que constitui nosso fundamento epistemológico".
[46] Por isso, o neobarroco seria assim por seu "desequilíbrio,
reflexo estrutural de um desejo que não pode alcançar seu
objeto, desejo para o qual o logos não organizou mais
que uma cortina que esconde a carência", um "reflexo necessariamente
pulverizado de um saber que sabe que já não está docemente
fechado sobre si mesmo".
[47] Seus sonetos são a prova de que essa forma, se bem
empregada e aliada a um campo experimental, sem render-se
à tradição, pode dar bons resultados. Vejamos, por exemplo,
o belíssimo poema:
A luz do meio-dia, transparente,
filtrava pelas paralelas bordas
da janela, e o confronto em fulgor das
frutas (ou da tua pele?) ardia quente.
Saudade é o que o torpor do sono sente
da ilha. Aquele céu (não te recordas?)
de acaso que no opaco véu põe gordas
camadas cambiantes de poente,
um outro brilho tinha. Onde eu dormia,
numa casinha litorânea e pobre,
no ar a luz das lâmpadas de cobre,/p>
traçava lentamente espirais sobre
alva toalha, sombra em que se urdia
o teorema doutra geometria.
[48]
É uma forma reaproveitada
(sem rimas) por Reynaldo Jiménez em "De improviso", por exemplo,
com seus belos versos finais:
Aqui, abrem-se mais, os espaços. Acontece
o que ninguém poderia recordar ou ter
tramado. O bosque de símbolos, sim,
e juntos a pira tântrica e o ascético
deserto que dá ao rio. Também o pátio
de mandala, o templo, a rocha, o eco.
[49]
Do Brasil, os poetas
trazidos por Claudio são importantes. A começar por Haroldo
de Campos, cujo empenho para revalorizar o barroco e o neobarroco
foi intenso. Destaque-se, em Jardim de camaleões, seu
poema "Klimt: tentativa de pintura". Haveria outras peças
de mesmo nível em Crisantempo e Xadrez de estrelas,
pois o trabalho desse poeta é um dos mais ricos no campo e
seria uma dificuldade selecionar apenas alguns, mas este poema,
que pertence ao livro A educação dos cinco sentidos,
é uma de suas peças mais interessantes. Leia-se este fragmento,
de sua segunda parte:
2
e sob isto tudo como sob
uma panóplia (armada) um pavilhão
de pedraria (um baldaquino) dra
pejantes panos (um azul turquino)
(caravelas ao largo) bandeiras de um
(impossível) impromptu ultra
(biombo grand'aberto gonfalão panóplia)
violeta
o corpo (a ci
catriz li
lás)
o branco albino se diria
um corpo um cor
po de me
nina [50]
Compreende-se, pela
própria forma como o poema é apresentado, por que Augusto
via um "concreto barroco" na obra de Haroldo, fazendo-o trabalhar
com "imagens e metáforas, que dispõe em verdadeiros blocos
sonoros". [51]
Não há dúvida de que a sintaxe aqui é mais entrecortada, com
versos curtos, indicando uma síntese maior. Como observa Antonio
Risério, Haroldo de Campos, desde o início de sua trajetória,
mostrava vínculos com as estéticas barroca e surrealista,
que precisou filtrar durante a poesia concreta, submetendo
"sua fluência barroca ao mínimo vocabular exigido pela 'matemática
da composição'".
[52] Ou seja, "em vez de voar no turbilhão de seus signos
alados, de alimentar seu dom para a exímia estruturação de
frases altamente complexas ou de incrementar seu brilhante
jogo de metáforas",
[53] Haroldo, na fase concreta ortodoxa, descobriu o
caminho da síntese. Então, como ainda observa Risério, "Passado
o concretismo, o poeta pôde reencontrar o seu estro, mas agora
para uma produção neobarroca concentrada, depurada pela quadra
joão-cabralina e pela educação 'ideogrâmica'".
[54] Essa produção neobarroca concentrada é exemplarmente
demonstrada na seção "Lacunae", de Xadrez de estrelas,
em que o poeta apresenta poemas como este abaixo:
céu-pavão
turquesa
rampante
azul
a pino
centúria
de olhos-luz
num caudário
de estrelas
poeira
constelário
o mundo
do seu
pedúnculo
(mundúnculo)
desestrela
trema
e isto
*
cisco
risco
astro
asterisco [55]
Há também, em Jardim
de camaleões, um trecho de Galáxias, um dos livros
mais importantes de Haroldo de Campos, seu work in progress,
feito entre 1963 e 1976. Nela, vale lembrar as palavras de
Severo Sarduy, "O barroco frondoso, selvático, furioso, se
deixou decantar em uma geometria legível, despojada até à
transparência do projeto, como as fachadas mineiras do Aleijadinho.
Neobarroco, ou melhor, outro classicismo: como se nos moldes
métricos ou estróficos não implicassem uma torção ou um resíduo
de sentido, porém estivessem prestes a conduzi-lo em toda
a sua intensidade".
[56]
Horácio Costa é um dos
poetas brasileiros que se arriscam no verso longo, o que,
se poderia criar um certo cansaço, em seu caso se dá por uma
via mais interessante: de imagens pensadas com rara habilidade
lingüística. "Os jardins e os poetas" servem de exemplo nesse
sentido, com os versos:
O número de folhas de
suas roseiras seria contado
O número de pétalas das
rosas seria minuciosamente contado
Como sílabas de poemas
estritamente sintáticos
As rosas amarelas seriam
assonâncias
As rosas vermelhas consonâncias
O jardim horaciano é um
Mondrian avant-la-lettre
Mas Horácio não tece dinheiro
para comprar escravos que
contassem
pétalas e folhas
[57]
Perceba-se que, para
quem pensa que o barroco traz apenas um delírio visual inconseqüente
e sem raciocínio, a matemática com que Horácio Costa constrói
sua peça, fazendo uma analogia entre rosas e sons - dando
um tratamento verbal elaborado - e ligando o jardim imaginário
ao universo da pintura, situado num ambiente oriental. Sua
ligação com a estética neobarroca também se esclarece no poema
"O retrato de Dom Luís de Gôngora" e, sobretudo, no fluxo
verbal de "Cetraria", em que volta a mencionar Gôngora: "[...]
Ave caligráfica, lápis-lazúli, Amém, leia de novo este / soneto
de Gôngora, observe a máscara artesanal que esconde / os olhos
da Ave". [58]
A curitibana Josely Vianna Baptista é outra poeta interessante.
Conheço apenas seus livros iniciais, Ar e Corpografia.
Os poemas seus na antologia são de seu último livro, Os
poros flóridos (ainda inédito no Brasil), com um vocabulário
barroco mais carregado e de fino trato sonoro: "Nuvens e água,
pênseis, a ouro-fio nos olhos. / Inverso de mortalha, os lençóis
correm em álveos: / os barcos têm velâmens" (em "Schisma"
[59] ), ou "Mas teu olhar o mesmo, em íris-dia- / fragma,
/ fotogramas a menos na edição do livro, / e o enredo sonho
e sol, delírios insula- / res" (em um fragmento do poema "Os
poros flóridos" [60]
). Wilson Bueno, mais conhecido como prosador, mas de
experimentação visível, comparece exatamente com trechos -
com ressonância poética - de seu Mar paraguayo e de
poemas (não, obviamente, os tankais, que compôs para Pequeno
tratado de brinquedos). Bueno, que é conterrâneo - vindo
do Paraná - do poeta Paulo Leminski, que comparece no livro
com fragmentos de seu antológico Catatau, poesia prosaica
que foi um sopro de renovação, junto com a obra poética dele,
no cenário brasileiro, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980.
Os nomes apresentados são esses. Mas, como lembra o organizador,
a antologia "não deseja mapear ou definir um cânone, nem fazer
história literária ou arqueologia do presente: sua meta é
apresentar uma pequena mostra desse fascinante campo de experimentação
poética". [61]
Ou seja, ele permite que se pense em outros nomes que existem
no cenário latino-americano e que, de algum modo, façam um
trabalho que pode ser aproximado desse universo experimental,
ajudando, como todos esses trabalhos, a desvirtuá-lo, decompô-lo.
Penso, particularmente, em poemas, por exemplo, da fase inicial
de Décio Pignatari, considerado por Haroldo de Campos um belo
exemplo de trabalho neobarroco.
Que os trabalhos apresentados
são, de certo modo, difíceis, não há dúvida; no entanto, só
o trabalho apurado com a linguagem, não esquecendo a experiência
moderna de dissolução do sujeito (e não o Yo, o Eu, o Je),
produziu boa poesia nos últimos anos. Perlongher falava que
o barroco trazia uma "aniquilação do eu" - difícil de ser
aceita por qualquer tradição que glorifica a hipóstase do
Eu - e um ingresso no Texto, como provocava Roland Barthes,
para quem ainda o barroco era visto como "a ubiqüidade do
significante, presente em todos os níveis do texto, e não,
como comumente se diz, na sua superfície apenas",
[62] seguindo o mesmo caminho de Sarduy, para quem o
barroco também "consiste em obliterar o significante de um
significado dado, substituindo-o não por outro, por distante
que este se encontre, mas por uma cadeia de significantes
que progride metonicamente e que termina circunscrevendo o
significante ausente, traçando uma órbita ao redor dele, órbita
de cuja leitura - que chamaríamos leitura radial - podemos
interferi-lo". [63]
Como se poderia dizer da melhor poesia. Neste sentido,
este Jardim de camaleões, em se tratando de poesia,
e não de representação de uma tradição vista como à margem,
existente em meio a sociedades aclamadas como "pobres", sem
importância no funcionamento vital da literatura, é um jardim
de riquezas e uma leitura radial.
*
André Dick
nasceu em Porto Alegre (RS), em 1976. Publicou os livros de
poesia Grafias (2002) e Papéis de parede (2004).
Organizou, com Fabiano Calixto, o livro A linha que nunca
termina - pensando Paulo Leminski (2004).
Leia também
poemas
de André Dick e ensaios do autor sobre
Augusto de Campos
e Paulo Leminski.
*
Notas
[26] No Brasil, Haroldo lembra inclusive das obras
de Sousândrade, esquecido também por Candido, e de obras
dos árcades, como Cartas chilenas, que são vistos
por Candido como fundadores de uma literatura com raízes
brasileiras. No Brasil, o contato com o barroco é restabelecido,
de forma evidente, no Modernismo, a partir das investidas
de Mário de Andrade na área musical e de Oswald de Andrade
nas artes plásticas, mesmo que a poesia de ambos não traga
características especificamente barrocas. Indispensável
lembrar de outros nomes evocados por Haroldo, como Cruz
e Sousa, Augusto dos Anjos Jorge de Lima, Affonso Ávila,
Mário Faustino; eu acrescentaria o Ferreira Gullar de
Crime na flora e a Hilda Hilst de Fluxofloema.
Importante lembrar, também, do estudo "A arquitextura
do barroco" (In: A operação do texto. São Paulo:
Perspectiva, 1976, p. 139-150), em que Haroldo, num lance
de sincronia, vê traços barrocos em poemas de José Lezama
Lima, Stéphane Mallarmé, Gôngora, Sousândrade, Li Shang-Yin,
Lícofron (poeta do século III a. C.) e Décio Pignatari.
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