ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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PAULO LEMINSKI: DEPOIS DO ACASO

André Dick

"Sou propenso ao silêncio"
Paulo Leminski, Catatau

"Não sou o silêncio
que quer dizer palavras"
Paulo Leminski, Caprichos & relaxos


O paranaense Paulo Leminski talvez seja, pelos estudos que sua obra vem ganhando, além da biografia, escrita por Toninho Vaz, o poeta que melhor represente, no futuro, a poesia dos anos 70 e 80 do século passado, no Brasil. Seria um equívoco, contudo, considerá-lo um escritor que pretendia ter esse peso ou ser representante de algum período. Deve-se lembrar que ele não seguiu o movimento característico dos anos 70 - o da poesia marginal, com livros feitos em mimeógrafos ou xerox. -, apesar de ter começado a lançar suas obras nessa época. Sob esse ângulo, se Sousândrade foi visto como um romântico estranho, cheio de preciocismos sintáticos, completamente deslocado do seu tempo, Leminski foi modelado como um marginal chique depois de se "formar", na adolescência, pela poesia concreta. Em meio a esse choque de gerações, Leminski saiu-se bem. Sem pertencer a nenhum desses movimentos, embora tivesse grande admiração pelo Concretismo, ele possivelmente não imaginava o destaque que teria nos dias de hoje. A atenção que seu nome vem ganhando de alguns críticos literários é um bom sinal de que considerá-lo um poeta datado, justamente por representar esse choque, pelo qual passou apresentando um estilo próprio, não passa de um engano.

Com diversos livros de poemas (entre os principais, Caprichos & relaxos, reunião de sua obra de 1964 a 1983, Distraídos venceremos, La vie en close e O ex-estranho, os dois últimos póstumos) além de alguns romances (Catatau e Agora é que são elas), híbridos de prosa, poesia e crítica (a exemplo de Metaformose), biografias (reunidas no volume Vida), contos e ensaios críticos, pode-se afirmar que Leminski foi um escritor polifônico, além de um poliglota, característica demonstrada em muitas traduções suas, publicadas pela Brasiliense nos anos 80. De certa maneira, apenas obedeceu a seus dados biográficos, cuja atenção máxima se deu em O bandido que sabia latim, de Toninho Vaz.

Nascido em Curitiba, em 24 de agosto de 1944, Leminski passou parte da infância em Santa Catarina, numa família em que o pai, de origem polaca, era militar, e a mãe, de origem negra, vinha de família também militar. Essa aparente austeridade não impediu sua admiração pelas palavras e pela arte em geral desde muito cedo. Aos 12 anos, foi estudar, a fim de ser monge beneditino, no Colégio São Bento, em São Paulo, idéia da qual desistiu, deixando a ordem - podemos buscar resquícios dessa passagem aqui e ali em trechos de Catatau e em seu livro póstumo O ex-estranho, com poemas de lavra religiosa, mas não confessional, e um apreço especial pela língua latina. Não criou laços com a religião, preferindo, mais tarde, experimentar os grandes momentos da cultura hippie. Idolatrou os Beatles, sobretudo John Lennon (do qual traduziu Um atrapalho no trabalho), apoiando a contracultura e o Tropicalismo, mas escolheu, junto com a poeta Alice Ruiz, a poesia concreta como exemplo de rigor para sua obra. A partir de 1987, principalmente depois de se separar de Alice, por problemas com o álcool, agravados com o suicídio do irmão, ocorrido um ano antes, a situação se agravou, até que morreu em 1989, aos 44 anos, atingido por uma cirrose hepática (ou "prometéica", na definição de Haroldo de Campos).

LEMBRANÇAS - Tal destino, pontuado pelos poucos dados do parágrafo anterior (que devem ser complementados pela leitura da biografia), teria sido mais cruel se não fosse amenizado pelo próprio sentido de autodestruição de Leminski, tendo este escrito certa vez os versos "morrer de vez em quando / é a única coisa que me acalma", um poeta de sentimentos múltiplos, paradoxais, situado entre uma procura e uma fuga do silêncio, e, por isso mesmo, capaz de desafiar, ou desafinar. Não é coerente, entretanto, buscarmos uma aproximação existencial de Leminski, que foi se destruindo aos poucos, com outros poetas que procuraram o suicídio imediato, como Paul Celan, Sylvia Plath, Torquato Neto e Ana Cristina César, assinalando a trajetória melancólica de certos poetas da modernidade, mas saber que, por trás dessa espécie de fuga da realidade, escondia, em seu caso, um certo sarcasmo com o mundo exterior. Afinal, ele não se levava a sério, pelo contrário, se considerava uma "besta dos pinheirais" do alto da Cruz do Pilarzinho, onde morava em Curitiba, um "cachorro louco filhadaputa", como se apresenta num de seus poemas mais conhecidos, e aquele que praticava "todos os gêneros provincianos". No caso dele, sua triste biografia final não encobre os momentos de felicidade que viveu, apresentando uma proposta de realização poética capaz de misturar alegria e melancolia. Esta ressurge com força quando certos críticos elegem Leminski como uma mera representação de um período marcado pelo poema curto, como um autor já inserido num determinado cânone brasileiro, fazendo com que ele passe a ser vítima da mesma "síndrome cabralina", a que atinge os poetas que todos dizem ter lido, mas pouquíssimos realmente leram. Mesmo tendo escrito num poema seu, publicado em La vie en close, que "um dia sobre nós também / vai cair o esquecimento / como a chuva no telhado / e sermos esquecidos / será quase a felicidade", Leminski também queria o contrário, num poema de Caprichos & relaxos: "lembrem de mim / como de um que ouvia a chuva / como quem assiste missa / como quem hesita, mestiça, / entre a pressa e a preguiça".

As melhores lembranças de Leminski se concentram em sua escritura poética ou em prosa, grafada no papel mineral, como diria Cabral, e não servindo de acessório para a melodia musical, por mais que seu discurso em vida pareça ter privilegiado a importância lírica da MPB. A própria "introdução" do autor para Caprichos & relaxos revela certo paradoxo, pois, ao mesmo tempo em que afirma que o volume contém poemas "para dizer em voz alta", "letras, lyrics, para cantar", também há poemas serem lidos "em silêncio", usando-se "o olho, o coração e a inteligência". Esse paradoxo representa bem Leminski. Para ele, durante as décadas de 70 e 80 do século passado, boa parte dos melhores poetas estava concentrada na música brasileira mais refinada, e sonhou fazer parte desse universo pop. Mesmo sendo amigo de artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Walter Franco e Jorge Mautner, entre outros, para os quais fez letras de música, as referências que realmente moviam Leminski, e na visão de alguns (na do próprio autor, em alguns momentos) foram abandonadas depois de Catatau, seu romance já antológico, e dos poemas "concretos" da fase inicial, do final dos anos 1960, eram Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari (o primeiro, de forma destacada), guiados pelo poeta francês Stéphane Mallarmé. Leminski pode ter desejado ser um poeta musical, mas desejava - isso fica patente por meio de sua produção concisa -, acima de tudo, abordar a poesia sem subjetivismo e sem perder de vista o trabalho formal com a palavra, próprio de Mallarmé e do Concretismo para chegar a mais leitores. Essas referências quase paternas representavam o silêncio da poesia moderna, capaz de compreender, para o "ex-estranho", "o silêncio dos mais difíceis de ler / o silêncio da poesia de vanguarda / o claro silêncio de mallarmé / e da poesia de vanguarda / o silêncio da ilegibilidade de hoje / que vai aumentar a legibilidade superior / de amanhã", como lemos em "Variações para silêncio e iluminação", do seu livro Anseios crípticos.

ENCONTRO DECISIVO - É preciso, desse modo, antes de abordar algumas questões referentes à sua obra, resguardar Leminski daqueles que só querem reduzi-lo a um haicaísta (e o era com talento, até a forma se esgotar, por meio da diluição) ou a um poeta que queria, na verdade, ser letrista ou músico, ou mesmo a um simplório protótipo devorado pela mídia a seu bel prazer. Leminski parece nunca ter suportado o sucesso fácil, daí seu desapego pelas obras de Ferreira Gullar, em sua fase populista (cuja duração se deu por pelo menos uma década), e de Thiago de Mello. Por isso, possivelmente, tenha sido amigo dos poetas concretos. Para ele, Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari representavam, mais do que a poesia marginal, os verdadeiros marginalizados, por se negarem a fazer uma poesia cuja pretensão era buscar apenas um contato imediato com o público, sem um trabalho mais polido.

Num encontro decisivo para sua vida literária, depois de uma longa viagem no melhor estilo easy rider, com a diferença de que tinha algum destino em vista, Leminski conheceu o trio Noigandres em 1963, na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda. Mais tarde publicaria, em dois exemplares da revista Invenção, coordenada pelo trio, alguns poemas, misturando, segundo a aprentação de Décio Pignatari, "a pesquisa concreta da linguagem com um sentido oswaldiano de humor". Esse "sentido oswaldiano de humor" - aliado a uma pretensa fidelidade ao modernista de 22, assinalada por Leyla Perrone-Moisés, e a uma deglutição da poesia Pau-Brasil, conforme Haroldo de Campos - acabou rotulando, para o grande público, a obra de Leminski. Este era um anticosmopolita (mas não provinciano), capaz, por um lado, de fazer agitos dentro da sua comunidade, e, por outro, desinteressado em querer exportar sua poesia e em se apresentar como representante para assuntos internacionais (no bom e mau sentido), como o modernista de São Paulo. Inserindo-se, claro, dentro da tradição construtiva de Oswald, mesmo sem ter este como influência direta, o que fica claro em seu depoimento "Sobre poesia e conto" (1979), Leminski, de qualquer modo, por ter cavado um vazio insuperável ao redor de sua obra, negando em parte a própria tradição brasileira - como o fez também o trio Noigandres, desde seus primeiros livros, pré-concretistas -, preferia os autores que estavam à margem da margem. Citava Pound e os "concretos", ao afirmar que a poesia está mais para as artes plásticas e para a música do que para a literatura. Estava certo, apesar de nunca ter pretendido criar uma epopéia como Pound fez com Os cantos ou traduzir a Ilíada, como fez recentemente Haroldo de Campos. Não queria ser um sucessor de Drummond, cuja poesia, conforme ele explica numa entrevista para a revista Quem, recolhida para o livro Paulo Leminski, constituído por escritos sobre sua obra, encerrava a trajetória de uma poesia a seu ver prosaica, pouco musical (idéia, se lembrarmos obras como Claro enigma e Fazendeiro do ar, certamente equivocada, mas paradoxal também era a postura de nosso poeta em questão). De Manuel Bandeira, talvez tenha extraído a ironia melancólica diante da morte, não mais que isso. De Murilo Mendes, praticamente nada - talvez da fase inicial, um tom mais coloquial, pois, de resto, Leminski não utilizava nenhum traço de Surrealismo em seu trabalho. De Mário de Andrade, gostava pouco; achava muito regionalista o trabalho do autor de Macunaíma. Oswald, já referido: conheceu tarde demais, como ele mesmo escreveu, para alterar algum rumo, ou seja, é uma injustiça caracterizar seus poemas como "pílulas de poesia", iguais aos de Oswald. Se Leminski admirava algo nos modernistas (no último referido, sobretudo), era o sentido de crítica e agitação que eles exerceram no panorama poético e em alguns de seus poemas, enfim, a postura moderna. Tal admiração fica evidente no texto "Teses, tesões", que abre Anseios crípticos.

Lado a lado com essa postura dos modernistas, Leminski tomou como parâmetro o "legado heleno-latino (Horácio, Ovídio, Catulo)" - reverenciado em Catatau, em Metaformose e na seção "Am/or", entre outros poemas, de O ex-estranho -, o hai-kai e sua "síntese", aproveitando-se de movimentos de vanguarda (para adaptá-los à sua dicção), e, claro, um trio de poetas com valor inquestionável: os irmãos Campos e Décio Pignatari. Por João Cabral, nutria uma relação de amor e ódio: ao mesmo tempo que parecia desprezá-lo (escrevendo, no final dos anos 1970, que só o lia "por dever de ofício), terminou sua vida dizendo que a poesia de "aço" era a mais forte da nossa língua. Afirmar que a poesia de Leminski empalideceria se comparada à de Drummond e à de Cabral (dois dos maiores poetas da língua portuguesa de todos os tempos, o primeiro tendo escrito até os 85 anos, o segundo, até os 72, 73), como alguns críticos sugerem, é, somada a tantas outras imprecisões sobre sua obra, um equívoco: Leminski não almejou, em nenhum momento, ser Drummond ou Cabral. No caso dele, isso não implicava uma "falta de ambição poética", mas uma consciência dos mass media na aplicação da poesia, na rapidez da mensagem, não confundida com facilidade, procurando a desautomatização do vídeo e da publicidade, modelada à sua persona contemporânea. Tal caminho não indicava, como poderia se imaginar, um desvio de rigor da melhor poesia que se fez e se faz, nem implicava uma superficialidade industrial às vezes apontada (teríamos, com tal premissa, de desconsiderar a poesia de Augusto de Campos a partir de 1953). Igualmente, não era um fazedor de "apenas" provérbios, a não ser que sua melopéia, seguindo-se o termo de Ezra Pound, fosse confundida com meras quadras musicais, e se considerássemos os poemas concretos da fase ortodoxa como "expressões-clichê".

CAMINHO PRÓPRIO - Embora fosse um admirador da obra dos poetas "concretos", como vimos anteriormente, Leminski jamais teve sua imagem explorada por eles (acusação já feita em larga escala), a não ser em comentários de admiração (os de Augusto, sobretudo, publicados em O bandido que sabia latim, afirmando ser Leminski o melhor poeta de sua geração) e em poemas (os de Haroldo de Campos em Crisantempo). Também, ao contrário do que alguns dizem, não se deixou levar pela idéia de que eles apontavam sempre o caminho mais adequado para a poesia. No livro de cartas Envie meu dicionário, que Régis Bonvicino organizou para a editora 34, é interessante notar que Leminski discorda de alguns preceitos do Concretismo na carta 42 (de 1978), manifestação contrária ao seu "minifesto" de 1976, próxima de seu depoimento "Sobre poesia e conto", e de sua carta à exposição de Philadelpho Menezes (1985). Nesses textos, mostrava-se visivelmente despreocupado em ser visto como autor de vanguarda. De fato, apesar de sua postura favorável às vanguardas, Leminski nunca foi um poeta vanguardista, já que se constitui, acima de tudo, num escritor moderno (da modernidade, não do Modernismo), mesmo nunca tendo se isolado numa "Torre de Marfim". A carta revela principalmente que o poeta não queria renegar a importância (vital) do Concretismo em sua formação, e sim digeri-la, como fez Oswald em relação ao Futurismo e ao francês Blaise Cendrars, ou seja, aplicá-la aos seus modos. Leminski não se sentia um epígono do Concretismo, mas sua extensão; ele quis, à sua maneira, ser um contemporâneo dos "concretos", com sua poesia elíptica e seu ousado Catatau, escrito entre 1966 e 1975, um romance experimental na linha de Ulisses e Finnegans wake, de James Joyce, e de Galáxias, de Haroldo de Campos. Mesmo assim, buscava uma ligação com o público, ignorada, em parte, pelos "concretos", assunto principal da carta referida (recuaria um tanto nessa consideração em "Poesia: a paixão da linguagem", seminário de 1986, compilado em Os sentidos da paixão e um documento interessante).

Como o movimento concreto, Leminski possuía outro elemento básico: seu diálogo, como já foi lembrado, não era tanto com a tradição da poesia brasileira, estabelecendo um diálogo mais com autores estrangeiros, na prosa e na poesia, como Mallarmé, Joyce e Rimbaud (sem falarmos nos franceses Jules Laforgue e Tristan Corbière, por exemplo, os quais, aliás, chegou a traduzir). Mallarmé, principalmente pelo tema do acaso; Joyce, pela prosa entrecortada de Catatau e Agora é que são elas; e Rimbaud, pela recusa ao "sucesso", pela perda da vida, optando pelo "fracasso da literatura", para ele o triunfo da poesia, com delicadeza (tema de um belo poema de La vie en close). Na visão de Leminski, os simbolistas foram tão concretos quanto os "concretos", pensamento revelado em "O significado do símbolo", texto publicado em Anseios crípticos 2 - daí sua admiração por Cruz e Sousa e Dario Velozo, poetas do Simbolismo brasileiro.

FIGURA PRINCIPAL - Coloquemos à frente desses autores o poeta simbolista Stéphane Mallarmé, figura indispensável para se entender a obra de Leminski. O velho poeta simbolista, mestre de Valéry e de seus mestres, aquele que representa, mais que todos, "o silêncio lance de dados / o acaso / uma chance até o absoluto". Já em Catatau, sua presença era sentida na construção de alguns conceitos que cercam tal narrativa (ou antinarrativa), em que René Descartes enlouquece em meio à selva lingüística dos trópicos. A chave mallarmeana e a questão do livre, introduzida no Brasil por Haroldo de Campos em A arte no horizonte do provável e na própria concepção múltipla e de textos reunidos ao acaso de Galáxias, ficam visíveis em alguns momentos de Catatau. Às vezes, isso ocorre em tom jocoso ("A carne foi meu fracasso mas é que foi em latim que li quase todos os livros que com grande frescor me caíram nas mãos"), referência direta ao verso "A carne é triste e eu li todos os livros", do poema "Brisa marinha", de Mallarmé. Outras vezes, num tom mais sério ("Eu comento hipóteses. Trabalho com hipóteses. Fabrico hipóteses. Façamos uma hipótese, por exemplo, este livro" e "Aboli este mundo num dia de pensamento"), remetendo ao Le livre - trabalho que Mallarmé deixou incompleto - e ao verso que encerra Un coup de dês ("Todo pensamento emite um lance de dados"). Leminski também possuía uma utopia semelhante à de Mallarmé, que pretendia reunir todos os livros inimagináveis em seu Le livre: "No grande livro do mundo, páginas enigmáticas incólumes ao siso e à fala. Este capítulo não deslindo nem decifro: erro? Sofro, e este livro sem textos - só ilustração iluminura. Não traduzo e nem leio: giro e jazo". Leminski escreveria a Augusto de Campos, em carta de 1970 reproduzida em O bandido que sabia latim, em meio à realização de Catatau: "o livro é livre, à margem de mallarmé, viva a malacomargem, daí-me um exílio e eu vos darei um exercício". Exercício reflexivo que era o próprio Catatau e chegaria incólume ao poema "Signo ascendente", de Distraídos venceremos: "Se tudo existe / para acabar em livro, / se tudo enigma / à alma de quem ama!". Não se empreende um tom de deboche e de contrariedade como aquele apresentado pela poeta portuguesa Adília Lopes no poema de sua antologia poética recém-lançada no Brasil, em que se observa: "NÃO GOSTO tanto / de livros / como Mallarmé / parece que gostava / [...] / o mundo não é um livro / e o acaso não existe". Pelo contrário, havia uma espécie de tentativa de diálogo desafiador com o simbolista francês.

O contato com a obra de Mallarmé, por intermédio, sobretudo, de Augusto de Campos - algumas vezes, "ducha de água fria" do seu "cio poético", como releva certa carta de Envie meu dicionário -, foi profícuo, afinal, para Leminski. O confesso aluno ainda escreveu ao rigoroso mestre Augusto, na mesma carta reproduzida no Bandido que sabia latim: "minha hora vai ser nossa hora". Sua leitura do poeta francês, revelada principalmente pelo ensaio "O tema astral", publicado no já mencionado Anseios crípticos, com influência clara de Roland Barthes e Julia Kristeva, demonstra isso. Para esses poetas (Mallarmé, Augusto e Leminski), a página branca sempre foi perturbadora e atraiu o lance de dados, o acaso, imagens que, mesmo tendo virado clichês da crítica literária, são indispensáveis para entender a sua percepção a respeito da poesia, como um espaço de resíduos. Nessa linha de pensamento, em "Arte in-útil, arte livre", texto também de Anseios crípticos, Leminski escreve que a poesia moderna não existiria sem Baudelaire ou Mallarmé, responsáveis por fazer "a poesia avançar tecnicamente em termos de linguagem até os extremos limites, de que o Lance de dados é o paradigma último". À sua maneira, Leminski quis sim confrontar a obra de Mallarmé. Num poema de Caprichos & relaxos, por exemplo, escreve: "tampouco creio / que mallarmé / visse mais / que esse olho / nesse espelho / agora / nunca / me vê", sugerindo, ao final, uma não-existência (ou uma desistência?). Se sabia da impossibilidade de alcançá-lo, tampouco desejava superá-lo: "Finnegans wake à direita, / un coup de dés à esquerda, / que coisa pode ser feita / que não seja pura perda?", pergunta-se no poema "Operação de vista", de La vie en close, deixando um sentimento de desânimo, comparável a queimaduras vivas de tantos poemas finais e mesmo iniciais - a perda existencial e literária, pois, como observa Maria Esther Maciel em prefácio a Aço em flor, de Fabrício Marques, um dos mais importantes estudiosos de Leminski no Brasil, Leminski era um "poeta que, sem se furtar às exigências da construção, soube extrair uma linguagem também da experiência, do agora de sua própria realidade", preservando uma "lucidez contaminada pela impureza da experiência, da vida de cada dia". A obsessão de Leminski por Mallarmé já se fazia perceber na minibiografia sobre outro simbolista, Cruz e Sousa, no início dos anos 1980 quando, na busca de uma aproximação do blues com o Simbolismo do poeta em questão, Leminski recorda o "l'azur" insistente de Mallarmé. Ou num poema visual, de 1978, publicado originalmente na Pólo Inventiva, e que pode ser encontrado no site Kamiquase: "mallarvê / mallarouve / mallarcheira / mallargosto / MALLARMÉ", no qual Leminski recorre a todos os sentidos para tentar apreender o rosto (do retrato clássico de 1878, que fazia naquele momento cem anos de existência) e o perfume musical de Mallarmé em "subdivisões prismáticas da Idéia", idéia aqui fotográfica, coerente com os as narrativas antilineares de Catatau e Agora é que são elas. Leminski escreve ainda, num poema de não fosse isso e era menos / não fosse tanto e era quase, reunido à coletânea Caprichos & relaxos, que Mallarmé não possuía a "gaveta de um armário impossível", a gaveta das drogas de Rimbaud e Hendrix (e, implicitamente, dos artistas do Tropicalismo), figuras que o guiavam pelos meandros da contracultura, ou seja, constituía um rigor muitas vezes inalcançável, aquele promovido pela poesia concreta.

Talvez seja Mallarmé o autor que reúna características de Propp (o professor perfeccionista e estruturalista que enlouquece o aluno em Agora é que são elas), de Occam (o vírus lingüístico de Catatau) e de Narciso (à espera de um riocorrente que traga imagens mitológicas em Metaformose). Leminski, levando em conta seu bigode indefectível, parecia mesmo o próprio Mallarmé.

O ACASO E A MORTE - O tema do acaso mallarmeano - que se estende ao longo do poema Un coup de dês, na famosa Idéia (a maiúscula, aqui, é imprenscindível) "um lance de dados jamais abolirá o acaso" e foi abordado também, sob outro ponto de vista, em Aço em flor, de Fabrício Marques - perseguiu o nosso poeta em questão durante toda a vida, mesmo ele tendo escrito que não possuía "obsessões" e "temas". Não era o acaso proposto por John Cage e estudado por Augusto, mais repleto de nuances, em razão do contato direto, nesse caso, com a produção musical. Era um acaso que se encerrava junto com os sentidos da própria vida. Leminski escreveu em seu livro de poesia mais intenso, La vie en close: "atrasos do acaso / cuidados / que não quero mais / / o que era pra vir / veio tarde / e essa tarde não sabe / do que o acaso é capaz", sugerindo aquela "zona vazia" percebida por Roland Barthes na poética de Mallarmé, e a substância consistente do acaso. Na fase mais concreta evidenciada em "Sol-te", seção de Caprichos & relaxos, já experimentava o sabor da afasia: "dissabor / de prazer / eu prazo / / dessaber / de passar / acaso / / certeza / sorte / aqui / me jazo". Neste poema, Leminski estabelece um contraponto entre "acaso" (o azar) e "sorte", que representariam a "certeza", ou seja, a "morte". Daí os versos "aqui / me jazo", que ecoariam em outros de La vie en close - "vi vidas, vi mortes, / nada vi que se medisse / com o azar que tive / ao ter você, minha sorte". Esses versos também dialogam no tempo-espaço, em que se abriga o acaso, conforme o poema "O atraso pontual", de Distraídos venceremos, com dois versos de Augusto de "Ad augustum per angusta", prova de uma escolha pela transgressão do tempo: "A mim vendem a prazo / À vida e aqui jazo". (Lembre-se, ainda, que, numa gravação feita no final de 1988, por um amigo, cujos trechos se encontram ao final da biografia de Leminski, este afirmava, outra vez paradoxalmente, em relação à sua obra, que a morte, como pensava Mishima, era uma "determinação e não um acaso".) Há, claro, nesse sentido da perda, da morte inevitável, o significativo "Motim de mim (1968-1988)", de La vie en close: "XX anos de xis / XX anos de xerox / XX de xadrez / não busquei o sucesso, / não busquei o fracasso, / busquei o acaso, / esses deus que desfaço". O tempo assinalado na realização do poema é apenas uma das possíveis interpretações oferecidas por ele: os "xis" de tentativas, o "xerox", de poesia feita artesanalmente (não ao pé da letra, como a poesia marginal), e o "xadrez" dos dados de Mallarmé ou "de estrelas" de Haroldo de Campos e do Padre Antônio Vieira. No fim de duas décadas, apenas a constatação de que nada se buscou (o fracasso ou o sucesso), só o "acaso", um "deus" que é desfeito pelo poeta, o mesmo talvez do "eu te fiz / agora / / sou teu deus / poema / / ajoelha / e / me / adora", aquele que "também é o vento" e "está conosco". Está conosco porque faz parte dessa imaterialidade da qual a morte é peça fundamental. Tamanho desalento aponta para os versos "acabo como começo / canções de fracasso / não fazem mais sucesso".

Em meio a isso, o branco da folha, o papel em branco, a hipótese de Mallarmé para a poesia moderna, contra o qual o louco Leminski apaga palavras, a página, o branco da folha onde vão pousar mariposas e insetos (em "Administério"), "todas as palavras da tribo" (em "Ao pé da pena", dialogando com o mallarmeano "A tumba de Edgar Poe"), o "lugar onde / se faz / o que já foi feito" (em "Plena pausa"), para afirmar que nunca houve uma página em branco, já que "todas gritam, pálidas de tanto", sabendo que "Mallarmé era tão pálido / mais parecia uma página" (em "M, de memória"). É recorrente, portanto (por meio do acaso, da morte, do branco textual), o tema da ausência de palavras, da incapacidade de lidar com a superação do texto alheio (mesmo um possível diálogo intertextual), enquanto a polifonia emerge de modo a descentralizar a voz emitida, a que busca o sucesso e, entretanto, sem descansar, é um "afazer de afasia" (para utilizarmos uma imagem de Augusto de Campos). Isso pode ser representado pelo tombo de uma folha (no outono), pelo percurso de um inseto sobre a folha, pelo ensinamento de que o silêncio é sibilino, pela consideração de que algumas obras são mães (Mallarmé), algumas irmãs (Augusto) e outras, clima (a de Leminski), fazendo-se aqui menções visuais a poemas da seção "Sol-te" de Caprichos & relaxos, todos interligados pela característica do desaparecimento gradual dos sentidos. É agradável pensar, nesse sentido, que alguns poemas de Augusto de Campos publicados em Despoesia (1994) dialoguem, em outra estação, com a poesia de Leminski, a exemplo de "desgrafite" (que remete ao "palpite / o graffiti / é o limite"), "tvgrama I (tombeau de mallarmé)" - desalento com humour que agradaria Leminski -, "poema bomba" ("tudo / sucede / súbito / / eu não faço / expludo") e "espelho" (com as letras refletidas de "lua na água").

Numa de suas cartas a Régis Bonvicino, Leminski escreveu que Mallarmé e Augusto de Campos deixaram "meia dúzia de coisas" (de lá para cá, Augusto deixou mais meia dúzia, que vale por várias dúzias), por isso não havia "pressa". A mesma pressa que levou Leminski à morte material, deixando uma obra disposta a nos procurar para um diálogo ao pé do ouvido, ou ao pé do silêncio mais profundo, pois, como ele observa numa passagem de Catatau: "Nem todo mestre é próspero. Alguns cultivam artes sutilíssimas. Esses, às vezes, não têm apóstolos. São os últimos pioneiros". O que vale não só para Augusto de Campos, mas para o próprio Leminski, este que, depois do acaso, talvez contra sua própria vontade, permanece entre nós.

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Leia também poemas do autor e seus ensaios sobre Augusto de Campos e Haroldo de Campos.

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