A
VIAGEM COMO LIVRO, O LIVRO COMO VIAGEM*
André
Dick
A obra de Haroldo
de Campos (1929-2003), como poeta, tradutor ou ensaísta, revela
que ele foi um dos poucos autores que se preocuparam, de forma
decisiva, com a desterritorialização da dita literatura brasileira,
nunca respeitando, no bom sentido, territórios ou línguas.
Em 2000, enquanto terminava sua tradução direta do grego para
a Ilíada, o escritor
publicou A máquina do
mundo repensada, poema extenso, em que utilizava a terza rima. O objetivo de
Haroldo era realizar uma crítica poética de grandes poetas
(Camões, Drummond, Dante, Mallarmé etc.) e da física através
do seu olhar de "cosmonauta do significante", expressão com
a qual João Alexandre Barbosa o definiu. Sua grande máquina
do mundo, no entanto, voltou às livrarias no ano passado,
numa edição luxuosa da editora 34. Ela vem acompanhada do
CD Isto não é um livro de viagem, com produção de Arnaldo Antunes e lançado
pela primeira vez em 1992, no qual Haroldo faz a leitura de
16 fragmentos. Seu título: Galáxias,
um dos exemplos bem acabados de escritura (no sentido que
Barthes dava a esse termo) de risco no Brasil, um referencial
importante para a retomada do Barroco na América Latina a
partir dos anos 1960, servindo de inspiração direta, por exemplo,
a Catatau, de Paulo
Leminski.
"Esta
sua prosa é o demo!", disse Guimarães Rosa a Haroldo quando
este lhe mostrou trechos dela. "Prosa minada", registrou Andrés
Sánchez Robayna. "Fosforescências semânticas entre o branco
do papel e o negro das letras", conforme Octavio Paz. Redundante,
superficial, monótona: também há muitos adjetivos negativos
dados ao livro Galáxias desde seu lançamento, sobretudo por parte do coro de questionadores
de Haroldo, que se assemelham, pela fidelidade, a um fã-clube.
O principal detalhe é que suas páginas foram lidas por poucos,
mesmo porque sua primeira edição, da Ex Libris, era bastante
rara. Obra feita entre 1963 e 1976 (mas só lançada em 1984),
dividida em 50 "rapsódias" ou "cantos" - como falava Haroldo
-, e cuja primeira seleção maior de fragmentos foi publicada
em Xadrez de estrelas
(1976), ela é composta por um discurso quase ininterrupto,
sem pontuação e com letra sempre minúscula, interrompido apenas
pelo branco do verso de cada página. Esse discurso é aberto
a qualquer idéia - de origem poética ou não - que se encaixe
na experimentação pretendida. A obra aberta (que Haroldo via
como "neobarroca"), na realidade, desestabiliza a linguagem
corrente e rompe limites, sendo assim muito difícil de ser
aceita. Mesmo Leminski, admirador da obra, apontou que em
Galáxias caberia
tudo. Por isso, Galáxias
é um exemplo de livro que não pode ser entendido à luz da
sociologia e da política, de teorias sobre como o subdesenvolvimento
econômico interfere no plano literário - e isso, de certo
modo, evidencia sua inutilidade. Trata-se de uma escritura
(a escrita literária, para Barthes), não importando se de
vanguarda, mas de um tempo, não tão distante, mas já nostálgico,
em que se experimentava por vontade de recriar e não para
somente reciclar ou posar de vanguardista. Mas por quê?
OBRA UNIVERSAL
- Mais do que partir do ponto de origem da escritura (a obra
se abre com a sonoridade de "e começo aqui e meço aqui este
começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando
se vive sob a espécie da viagem", que faria jus aos experimentos
bíblicos de Haroldo) -, Galáxias
se diferencia por trabalhar com o precário, o indefinido.
Por isso aponta para o vazio. A ele se dirige Haroldo, através
de um fluxo barroco de vocábulos, expressões raras ou reles
(o plurilingüismo de que falava Bakhtin está todo ali), caracterizando
uma polifonia poética capaz de dar a noção exata do que ele
queria como projeto de vida: Galáxias
representa a convergência entre a literatura que se diz brasileira
com a literatura universal. O trabalho criativo de Haroldo
é universal, como era seu trabalho teórico-crítico (A
operação do texto, O
arco-íris branco, Metalinguagem
& outras metas, O
seqüestro do Barroco da Formação da literatura brasileira,
para citar alguns de seus livros mais importantes nessa área)
e de tradução (que abrange autores como Dante e Mallarmé).
Daí ser necessário que relancem também alguns de seus outros
livros, a exemplo de Xadrez
de estrelas, que reúne sua poesia de 1949 a 1974, e A
educação dos cinco sentidos,
hoje só encontrados em sebos ou bibliotecas. O público, sobretudo
o mais jovem, poderá conhecer melhor, assim, um autor capaz
de mesclar erudição com uma paixão incomum - cada vez mais
rara - pela poesia.
As leituras de
parte da vida de Haroldo estão inseridas em Galáxias,
razão pela qual essa obra também pode ser vista como uma cartografia
de suas ausências. Haroldo ilumina e, ao mesmo tempo, elimina
passagens de sua vida e de leituras através da escrita; onde
ele se mostra presente, possivelmente é onde esteja mais ausente.
A lembrança de Haroldo, num conhecido ensaio seu, de Gothe
vendo o arco-íris branco como um sinal de uma nova puberdade,
além de caracterizá-lo como fenômeno meteorológico, movimenta
a escritura que se desprende de Galáxias.
Trata-se de uma mesma revitalização: Goethe buscava descanso
em Frankfurt, enquanto Haroldo vai tentar desaparecer junto
com as palavras no papel em branco. O fluxo (de linguagem,
de pensamento, de vida) de Galáxias
não pertence nem à mão que o escreve nem à representação da
realidade que reflete essas experiências. Pertence, sim, ao
sentido de dispersão do Texto (com letra maiúscula, como Barthes
empregava), sua convergência para a morte literária, na qual
a subjetividade do sujeito se mescla à leituras, sempre textuais,
que ele realizou vida afora. Leituras, por exemplo, de Bashô
("o senhor bananeira bashô para quem uma peônia florindo podia
ser um gato de prata ou um gato de ouro uma peônia florindo
na luz", em "poeta sem lira"); de Hölderlin ("aquela fala
tinta de vermelho do senhor hölderlin", em "neckarstrasse");
de João Cabral ("a febre é tanta e fezes que a escrita agora
se reescreve", em "hier liegt"); de Ezra Pound ("o velho poeta
via ainda ou queria ver os punti luminosi mas sabia não saber
nada", em "mármore ístrio"); de Gertrude Stein ("neste fio
de linguagem há um fio de linguagem que uma rosa é uma rosa
como uma prosa é uma prosa há um fio de viagem há um vis de
mensagem e nesta margem da margem há pelo menos margem", em
cadvrescrito"); de Homero ("a primeira tinta da aurora agora
o rosício roçar rosa da dedirrósea agora aurora", em "multidudinous"),
além das referências à literatura greco-latina em geral espalhadas
em muitos fragmentos e ao Le
livre inacabado de Mallarmé. O sujeito, sendo o próprio
fluxo da linguagem, transforma-se em constelação de outras
galáxias, imagem que possivelmente agradasse a Haroldo, que
foi um estudioso de Macunaíma, cujo fim, aliás, é estelar.
A pergunta que
o possível (porque indefinido) autor, nesse caminho, se faz
constantemente é: "O que é o Texto?". Nesse sentido, Barthes
dizia: "O Texto não é a coexistência de sentidos, mas passagem,
travessia: não pode, pois, depender de uma interpretação,
ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação"
(O rumor da língua).
Haroldo persegue a resposta por páginas e páginas, sem conseguir
encontrá-la, pois ela inexiste. Nesse sentido, sua obra revitaliza
uma escritura essencialmente dialógica, voltada para aquela
enunciação ininterrupta de imagens e situações, vividas real
ou literariamente, solucionadas nos espaços da linguagem e
do imaginário. Haroldo tem consciência sobre o que escreve,
pois foi um aluno (tardio) de Stéphane Mallarmé. Foi ele quem
traduziu, no final dos anos 1950, a obra Un
coup de dés para Um lance de dados (para "lance" se reproduzir em "lançado"). A epígrafe
mallarmeana de Galáxias
("La fiction affleurera et se dissipera, vite, d'après la
mobilité de l'écrit") mostra isso muito bem: a vida se movimenta
também na "mobilidade da escrita". Como tem essa consciência,
Haroldo sabe que a modernidade é um projeto que destrói para
renovar. Lembre-se que Um
lance de dados é um dos poemas mais importantes da modernidade,
revolucionário a ponto de influenciar toda a crítica literária
moderna. Nele, como observa Octavio Paz, Mallarmé ainda é
simbolista, mas também já é moderno. Além disso, o poema mallarmeano
também caracteriza a dissolução de territórios: através de
sua linguagem ainda simbolista, já há um salto para o universo
da música, apenas imaginado por Baudelaire em As
flores do mal, mas não consumado.
FRONTEIRAS DISSOLVIDAS
- Em Galáxias, Haroldo
faz algumas dissoluções. Não me parece importante decidir
sobre se a obra é prosa ou poesia, talvez a primeira pergunta
que surja quando o leitor pegar o volume - e é a pergunta
mais repetida ao longo desses 20 anos de seu primeiro lançamento
pelos seus interessados. Paulo Leminski escreveu em "Prosa
estelar" (Anseios
crípticos 2) que entre "a força centrífuga da prosa e
a centrípeta da poesia", o livro de Haroldo "representa uma
síntese, uma espécie de momento de repouso entre dois ímpetos
que seguem em direções opostas", mas afirma que nele "a prosa
parece sair ganhando por pouco", a prosa que Guimarães Rosa
viu como "do demo" (muito sob influência de seu Grande
sertão: veredas). Já Haroldo propôs que se trata de "um
poema longo, uma gesta em escritura", em certa entrevista
recolhida em Metalinguagem & outras metas; no texto que acompanha a presente
edição de Galáxias,
escreve que é um "Audiovideotexto, videotextogame", situando-se
na fronteira entre a prosa e a poesia. O propósito de Haroldo
talvez seja mais o de anular os gêneros, por meio da rarefação
de sentidos, da desautomatização lingüística e sintática,
ele que foi um estudioso das teorias de Jakobson, Kristeva
e Barthes. Um objeto híbrido, em transformação, indeterminado,
pois o espaço do qual trata é sem fronteiras. A viagem se
passa dentro da escritura, e dentro da escritura pode acontecer
tudo - até mesmo nada acontecer ("como quem escreve um livro
como quem faz uma viagem"). E, sob tal aspecto, sua aproximação
é com o Texto digamos neutro, o grau zero da escritura que
Barthes propunha. Galáxias
não é nem uma coisa nem outra. Ela é tudo (poesia, prosa,
relato, diário, carta) ao mesmo tempo.
O CD que acompanha
essa nova edição mostra que ele também tentava reunir o projeto
da poesia concreta de ser "verbivocovisual" e o programa de
Mallarmé: o salto para a música. "Sem o ouvido sutil de Mallarmé"
(como Drummond diria em relação ao mestre francês), Haroldo
no entanto se aplica como poucos na busca dessa sutileza musical,
para transformar as palavras em música, como tentou, e conseguiu
Caetano Veloso, em "Circuladô de fulô", apropriando-se de
trechos galácticos num de seus últimos momentos de recriação
da MPB (é importante lembrar que, ao visitar Gil e Caetano
no exílio, Haroldo lia a eles trechos de Galáxias). Daí a redundância proposital: o seu sentido é invisível,
transcende o olhar do leitor, que se perde no acaso legível
da escritura: abstrato como a música. O texto de Haroldo,
como uma peça ao mesmo tempo harmônica e caótica, recorre
a si mesmo diversas vezes. Não por acaso (imagem cara a Mallarmé),
ele escreve no texto "ora, direis, ouvir galáxias", texto
que havia sido elaborado para acompanhar o CD Isto
não é um livro de viagem: "[...] cada fragmento isolado
introduz sua 'diferença', mas contém em si mesmo, como em
linha d'água, a imagem do livro inteiro [...]". Não há dúvida
de que Haroldo, aqui, relembra as "subdivisões prismáticas
da Idéia", do prefácio de Um
lance de dados. A própria apresentação gráfica de Galáxias, sem parágrafos e pontuação, representa que há uma linha
fina tênue, musical, conduzida do início ao fim. Ele não rompe
seu texto (apesar do branco do verso de cada página), como
não é possível resguardar o branco da página da ausência e
da morte. Nesse sentido, ele adota, como bem percebeu João
Alexandre Barbosa, uma "circularidade". Seu ímpeto verbal
também é feito de saques, do povo "inventalínguas", convertidos
imediatamente em linguagem: "a vida é também matéria de vida
de lida de lido matéria delida deslida treslida tresvivida
nessa via de vida que passa pelo livrovida livro ivro de vida
bebida batida mexida" (em "neckarstrasse"). Essa conversão
em linguagem tem um sentido visual muito apurado, tanto que
Galáxias rendeu também um filme de Júlio Bressane, Galáxia
albina.
OBRA
CENTRAL - A reedição de Galáxias
traz a opinião de alguns leitores do livro na orelha e uma
breve nota de Trajano Vieira, além de elucidativos comentários
de Haroldo sobre os poemas lidos no CD, também em anexo. Não
há, contudo, um estudo sobre a obra em si. Para isso, o leitor
pode recorrer a um texto de Andrés Sánchez Robayna aproveitado
em Signantia: quasi
coelum, onde o autor avalia que Galáxias
dialogaria com todas as obras de Haroldo, sobretudo a
partir de O â mago do ô mega (1951). Em Lacunae,
seleção de poemas de 1971-1972, representa bem a página como
galáxia: palavras espalhadas, como estrelas, sobre o vazio
da página. Esse traço apenas se amplia em Signantia
quasi coelum, como se o leitor avistasse a obra de um
caleidoscópio. Embora se utilize da alegoria de uma jornada
dantesca (como em Finismundo
há uma alegoria da jornada de Ulisses), Signantia
trata implicitamente da própria essência da escritura, ligando
sua seleção à composição de Galáxias.
Esta criação seminal de Haroldo também encontrará eco em sua
tradução de Blanco,
o poema mais ousado de Octavio Paz, e suas recriações bíblicas
(A cena de origem
é o exemplo mais direto, também por sua concepção gráfica)
nos anos derradeiros de vida. E vai se proliferar nos poemas
de A educação dos cinco
sentidos, de Crisantempo
e em alguns mais recentes, dispersos em revistas e ainda não
reunidos num livro póstumo. Cabe destacar ainda, nessa bela
reedição de Galáxias,
a longa bibliografia revisada do autor, que acompanha o livro,
surpreendente pela multiplicidade.
Se havia alguma
obsessão na obra de Haroldo, é que ele traduziu a morte para
a página em branco da maneira mais completa, pois deixava
se apagar, fazia com que sua origem proposta - a da escritura
- fosse também a origem do Outro, da palavra que cerca a linguagem.
Não havia "fora do texto": havia "dentro do texto". Ele se
deixava falar apenas em sua linguagem. Se sua voz fica, em
seu CD que acompanha Galáxias,
é da própria ausência de que é feita seu texto. Ele, porém,
não era um autor que privilegiava a fala em detrimento da
escrita (característica contra a qual seu amigo e admirador
Jacques Derrida se manifestava). Haroldo se anulava em sua
voz pessoal, tanto inscrita quanto distante do papel. O que
ele escreve, fala, se faz independente da sua figura humana,
pelo espaço da escrita ou da música. Como Kafka, Haroldo sabia
que era apenas literatura e não poderia nem queria ser outra
coisa, ou seja, um "personagem" da melhor espécie, pois não
apenas fictício. Em meio a essa busca, seu grande feito foi
- e Galáxias demonstra
isso - aproximar o rigor da síntese com a multiplicidade do
barroco e do épico. Diminuiu a distância entre extremos,
trabalhando com a solidão da página em branco, da ausência
de qualquer exagero. Quando lê trechos de seu livro, Haroldo
transforma-se em pó do cosmos (para utilizar a imagem de um
poema de seu irmão Augusto), tornando-se, como a própria literatura,
invisível. E quando lemos Galáxias
sabemos que nós também podemos desaparecer junto com a sua
textualidade. O êxito da obra talvez esteja em mostrar que
o pai do texto - como queriam os estruturalistas - não está
ali, mas os leitores podem procurá-lo e encontrar ainda um
ponto de azul entre as estrelas, na linha de um espaço curvo.
Ali ele deve permanecer esperando a chegada de outras galáxias,
pois "o branco é uma linguagem que se estrutura como a linguagem
seus signos acenam com senhas e desígnios são sinas estes
signos que se desenham num fluxo contínuo".
*
André Dick, poeta e ensaísta, é autor dos livros
de poesia Grafias
(2001) e Papéis de parede
(2003). Em colaboração com Fabiano Calixto, organizou A
linha que nunca termina (2004), com ensaios, poemas e
depoimentos sobre o poeta Paulo Leminski.
Leia também poemas
do autor e seus ensaios sobre Augusto
de Campos e Paulo
Leminski.
* Resenha
publicada originalmente no Correio
das Artes (Jornal A
União, Paraíba, 22-23 de janeiro de 2005)
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