COM
OLHOS DE VER:
POESIA E FOTOGRAFIA EM MANOEL DE BARROS*
por Antonio Francisco
de Andrade Jr.
(...)
a essência da imagem é estar toda fora, sem intimidade,
e no entanto mais inacessível e misteriosa do que o
pensamento do foro íntimo; sem significação,
mas invocando a profundidade de todo sentido possível;
irrevelada e todavia manifesta, tendo essa presença-ausência
que faz a atração e o fascínio das Sereias.
- Maurice Blanchot
Manoel de Barros foi cultuado
como uma das vozes mais originais da nossa poesia nos anos
80. Alguns fatores corroboraram para que essa poesia ganhasse
destaque nessa época. Dentre eles podemos citar a nostalgia
dos anos 70 - década da poesia marginal - e a grande
variedade de dicções poéticas sem uma
diretriz programática nítida. Uma e outra possibilitaram
que a poesia de Barros - uma poesia que prega certo aspecto
intuitivo do verso, marcado pela coloquialidade da frase,
em oposição à escola do rigor construtivo
- ganhasse notoriedade apenas na década de 80, apesar
de ser publicada, quase que anonimamente, desde 1937. Hoje
em dia, entretanto, "o poeta pantaneiro", como Barros
é conhecido, vem sendo bastante criticado devido à
repetição temática e formal dos seus
livros que, para muitos, não vão além
de um regionalismo neo-romântico impregnado pela herança
da prosa neológica de Guimarães Rosa. Este regionalismo
representaria o Pantanal sul-mato-grossense como um cenário
exótico, resgatando os topoi do selvagem e do primitivo
instaurados pelo romantismo - topoi esses que parte de nosso
modernismo já havia tentado erradicar, em busca de
um descentramento da tradição nacionalista da
nossa literatura.
Essas são as leituras recorrentes da poesia de Barros,
que, por tais motivos, já chegou a ser chamada de ecológica,
artificial, epigônica e fraudatária. Nós,
porém, em lugar de endossar essa recusa radical ou
aquele elogioso culto ao universo pantaneiro, propomos uma
leitura da obra manoelina sob uma nova perspectiva. Essa nova
perspectiva pode ser depreendida através da análise
do caráter visual das imagens na poesia de Manoel de
Barros, que chega inclusive a se refletir nas ilustrações
e nas referências a grandes pintores que marcam sua
obra, desmitificando o lugar-comum da poesia romântica,
que quase sempre relaciona a emoção subjetiva
à paisagem, como se o mundo exterior e o interior,
ambos igualmente naturais, fossem um a extensão do
outro. O poema "O pulo", do livro Arranjos para
assobio (1980), de Barros, é um exemplo de como essa
poesia, inversamente, sempre se preocupou em apresentar a
natureza como efeito de uma construção da imagem
visual: "Estrela foi se arrastando no chão deu
no sapo/ sapo ficou teso de flor!/ e pulou o silêncio"
(Apud BARROS, 1992, p.223). Este poema não apresenta
a primeira pessoa, construindo-se como um movimento independente
do sujeito de transfiguração dos elementos da
natureza numa linguagem simples e precisa. Desdobram-se nele
imagens que passam por diferentes ordens do natural, culminando
com a idéia de silêncio, que representa a subjetividade
lírica como uma impossibilidade de plena comunhão
compreensiva com a natureza.
No seu livro Ensaios fotográficos
(2000), podemos perceber, desde o título, como se radicaliza
essa relação de sua poesia com a visualidade
e como nessa relação se vai problematizar tanto
o visual como o subjetivo. Nesse livro, através da
idéia de fotografia, o poeta, ao mesmo tempo que demonstra
exatamente o contrário do estereótipo romântico
do subjetivismo, apresenta uma nova maneira de trabalhar as
imagens ligadas à natureza. A fotografia aí
é uma forma de explicitar o caráter complexo
e fascinante da imagem visual, ao mesmo tempo presença
e ausência, segundo a citação de Maurice
Blanchot escolhida por nós como epígrafe para
evidenciar o movimento de externalização da
poesia manoelina. No poema "O poeta", por exemplo,
o sujeito lírico explica como se deu, aos treze anos,
a sua entrada no universo da poesia, que aí ganha a
concepção de reino das imagens, a ser atingido
através de todos os poemas desse livro:
De tarde fui olhar a Cordilheira
dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.
A poesia aí nasce
da observação de uma paisagem comum, a da Cordilheira
dos Andes, distante e perdida no horizonte, capaz, no entanto,
de provocar a inspiração poética, que
não advém como uma iluminação
e sim como uma iluminura (como um pequeno ornato), o que nos
sugere a importância do detalhe na obra de Barros. Seu
olhar procura sempre o pequeno, o sem importância, e
dessa forma transgride o lugar-comum da poesia grandiloqüente.
O verso que nasce da iluminura parece representar o olhar
de um fotógrafo que enquadra a paisagem e vê
a realidade como um desenho composto por linhas. Por isso,
a imagem poética é a transgressão da
imagem perfeita: "Aquele morro bem que entorta a bunda
da paisagem". Da mesma forma, a arte fotográfica
também é menos uma forma de reprodução
mimética do visível do que uma forma de transgredir
as fronteiras do visual, e de encontrar na realidade o que
os nossos olhos não percebem. Fazendo uma leitura intertextual,
comparando esse poema a um do livro posterior a Ensaios fotográficos,
denominado Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001),
percebemos de novo o movimento de fixação no
detalhe em detrimento do grandioso. Com o título de
"Sobre importâncias", nesse poema o poeta
identifica no fotógrafo a mesma preocupação
com relação ao detalhe, dizendo que "talvez
para um/ fotógrafo, aquele pingo de sol na lata seja
mais/ importante do que o esplendor do sol nos oceanos".
E retomando, ainda nesse poema, a mesma paisagem andina:
Agora, hoje, eu vi um
sabiá pousado na Cordilheira
dos Andes.
Achei o sabiá mais importante do que a Cordilheira
dos Andes.
O pessoal falou: seu olhar é distorcido.
Mesmo utilizando um lugar-comum
do nosso romantismo nacionalista (a imagem do "sabiá"),
Manoel de Barros consegue fazer uma comparação
inusitada. Num movimento próprio da sua poética,
que alguns estudiosos conseguem ver como fruto de uma insuspeitada
influência da linguagem oswaldiana, ele transforma o
lugar-comum em poesia, através do olhar de criança,
irresponsável e transgressor, que distorce e entorta
a realidade. O final do poema "O poeta" mostra o
confronto do infantil com o convencional: "Mostrei a
obra pra minha mãe./ A mãe falou:/ Agora você
vai ter que assumir as suas/ irresponsabilidades./ Eu assumi:
entrei no mundo das imagens". Já Oswald de Andrade,
em seu poema "3 de maio", mostra a relação
entre a poesia e o olhar infantil, que é o olhar da
novidade. Aí o poeta diz: "Aprendi com meu filho
de dez anos/ Que a poesia é a descoberta/ Das coisas
que eu nunca vi" (Apud CAMARGO, 1996, p.37). Daí
depreende-se o diálogo com a obra manoelina, pois ambos
compreendem a poesia como uma forma de instaurar uma nova
realidade através da linguagem do olhar. Outros aspectos
desse diálogo são apontados por Goiandira Camargo:
A inserção
do coloquial no espaço poético, a tematização
do universo cotidiano e do imaginário infantil, a linguagem
desprendida da lógica para concentrar e elaborar as
imagens da inocência, articulam o diálogo com
Oswald, numa vertente que tece o autobiográfico, exposto
na mitologia da infância, com o viés social,
numa linguagem lúdica, às vezes prosaica, que
se ilumina aqui e ali com as imagens da "inocência
criativa" e da "surpresa". (CAMARGO, 1996,
p.31)
Essa, contudo, não é a primeira vez que a imagem
da criança aparece vinculada ao conceito de arte moderna.
Ao contrário do que se pode pensar, essa relação
não se dá através da recuperação
de uma linguagem totalmente espontaneísta e desprovida
de qualquer esforço construtivo, mas como fruto de
uma técnica consciente de feitura do verso. Num texto
do século XIX, Charles Baudelaire já havia afirmado
que tanto o homem de gênio como a criança estão
respectivamente infensos às restrições
da razão e da sensibilidade puras. O grande artista,
contudo, é aquele que usa a razão para buscar
o novo, e que mantém vivo o olhar curioso da criança.
Em "O pintor da vida moderna", Baudelaire demonstra
como essa junção entre a capacidade de ver o
novo e de analisá-lo são fundamentais para a
formação do verdadeiro gênio moderno:
Mas o gênio é
somente a infância redescoberta sem limites; a infância
agora dotada, para expressar-se, de órgãos viris
e do espírito analítico que lhe permitem ordenar
a soma de materiais involuntariamente acumulada. É
a curiosidade profunda e alegre que se deve atribuir o olhar
fixo e animalmente estático das crianças diante
do novo... (BAUDELAIRE, 1996, p.169)
No que toca a esse aspecto
lúdico da linguagem manoelina, a epígrafe da
primeira parte de Ensaios fotográficos reproduz também
uma frase de Jorge Luís Borges: "Imagens não
passam de incontinências do visual". Relacionando-a
à questão do olhar infantil, podemos dizer que
nesse livro a forte presença da relação
entre poesia e visualidade tem a ver com a multiplicidade
do visível, das inúmeras maneiras de ver o mesmo
objeto e de imaginá-lo. A imagem poética não
é a experiência comum do ver, o que interessa
em poesia são as incontinências. O desregramento,
o desrespeito à ordem comum das coisas é representado
pela visão infantil que não conhece, ou finge
não conhecer o habitual, criando situações
surpreendentes, ora sem querer, ora por molecagem... A linguagem
da poesia, que atualiza essas relações com o
visível, também se constitui como um "descomportamento
lingüístico" neológico - marca da
poesia manoelina. No poema "Comportamento", Barros
alia esta idéia ao distanciamento com relação
à experiência de ancião, e lembremos que
em 2000, quando publicou Ensaios fotográficos, o poeta
tinha 84 anos:
Mudo apenas os verbos
e às vezes nem mudo.
Mudo os substantivos e às vezes nem mudo.
Se digo ainda que é mais feliz quem descobre o que
não
presta do que quem descobre ouro -
Penso que ainda assim não serei atingido pela bobagem.
Apenas eu não tenho polimentos de ancião.
A idéia de incontinência/multiplicidade
como signo de um olhar transformador se desdobra também
na de "entortamento", que tem tradição
na literatura brasileira através da contribuição
drummondiana, o gauchismo, maldição de um "anjo
torto", que nos espia com o seu "olho torto".
Em Barros, o torto, além de ser o que nos chama a atenção
e o que paralisa os nossos olhos, é também,
conforme afirmou Marilena Chauí no texto "Janela
da alma, espelho do mundo", a representação
de um efeito do caráter dialético e criativo
do olhar, que transtorna a fronteira entre o mundo exterior
e o mundo interior (Cf. CHAUÍ, 1988, p.31-63). Ou seja,
o eu lírico ao mesmo tempo entorta e é entortado
pela paisagem, como se esse entortar contaminasse reciprocamente
o sujeito e o espaço em que ele está inserido.
Já num pequeno poema em prosa de Livro sobre nada (1996),
um pouco anterior a Ensaios fotográficos, Barros explicita
essa relação:
Prefiro as linhas tortas,
como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mais curta
(Só pra poder andar torto). Eu via o velho farmacêutico
de tarde, a subir a ladeira do beco, torto e deserto... toc
ploc toc ploc. Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de
olhar para mim: lá vai o menino torto subindo a ladeira
do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração
do Eu.
No poema "O fingidor", de Ensaios fotográficos,
a mesma imagem se repete relacionada à idéia
de olhar. "O ermo que tinha dentro do olho do menino
era um/ defeito de nascença, como ter uma perna mais
curta". Esse olhar vazio, comparado ao andar torto, é
a expressão da sensação de destaque do
sujeito com relação ao mundo. Essa idéia
alia-se ao sentimento de exílio, que, nesse mesmo livro,
aparece explicitado num outro poema - "A doença"
- que pode ser compreendido como uma forma de problematizar
o estereótipo de cenário paradisíaco
que o Pantanal representaria em sua poesia:
Era um lugar sem nome
nem vizinhos.
Diziam que ali era a unha do dedão do pé do
fim
do mundo.
A gente crescia sem ter outra casa ao lado.
No lugar só constavam pássaros, árvores,
o rio e
os seus peixes.
Havia cavalos sem freio dentro do mato cheios
de borboletas nas costas.
O resto era só distância.
A distância seria uma coisa vazia que a gente
portava no olho
E que meu pai chamava exílio.
A idéia de exílio
já carrega em si a tensão entre o cá
e o lá, assim como entre o dentro e o fora. Mas, neste
poema, há uma inversão da concepção
romântica do exílio em terra estrangeira, na
qual o poeta vive melancolicamente a sonhar com a natureza
da terra natal. Aqui o sentimento de exilado se dá
em sua própria terra, o que caracteriza toda a lírica
moderna. Os poemas de Álvaro de Campos seriam um dos
exemplos mais significativos em língua portuguesa desse
sentimento - aproximação esta incomum à
obra de Barros, que geralmente só é associada
à poesia do heterônimo pessoano Alberto Caeiro,
por ser uma poesia que reduz, segundo Óscar Lopes,
"toda a racionalidade do aquém visível
a uma tautologia conformista ('tudo é como é,
e assim é que é')" (LOPES, 1996, p.998).
O eu lírico manoelino
se sente um exilado que vê parado, ao contrário
do sujeito moderno que vê andando. A relação
entre ver e andar, na modernidade, representa, para Jacques
Rancière, "uma nova experiência política
do sensível", segundo a qual o sujeito moderno
se constituiria de acordo com o seu movimento no espaço
do visível, modificando e sendo modificado por esse
espaço (Cf. RANCIÈRE, 1995, p.108). Mas, em
Barros, a torpeza da perna e a dos olhos configuram a impossibilidade
de uma realização não imaginária.
Sendo assim, ver e andar, na poesia manoelina, invertem a
concepção moderna apontada por Rancière,
já que nessa poesia o que interessa são as coisas
paradas, que por sua vez possuem uma intensa dinâmica
interna - como, por exemplo, o "punhal em brasa"
do poema "O punhal", de Ensaios fotográficos
- e que geram o movimento imaginativo. E isso é a representação
da angústia de um sujeito cuja expressividade lírica
se dá num jogo contínuo entre imaginação
e frustração. Em outro fragmento do poema "O
fingidor", o ermo que o menino tinha nos olhos era ao
mesmo tempo responsável pelas viagens da imaginação
e pelo desfazer das suas ilusões:
Quando chegou a quadra
de fugir de casa, o menino
montava num lagarto e ia pro mato.
Mas logo o lagarto virava pedra.
Acho que o ermo que o menino herdara atrapalhava
as suas viagens.
O menino só atingia o que seu pai chamava de ilusão.
A consciência desse
sujeito lírico, analisando no presente poético,
distanciadamente, a memória de sua infância,
se respalda na lúcida lição do velho
pai, compondo o poema como um diálogo oblíquo
entre imaginação e lucidez. Embora recuse sua
experiência de ancião, cujo olhar seria desiludido,
expressão do dejà vu, do qual a poesia manoelina
se quer afastar, a visão dialética do mundo
une, no mesmo olhar, a capacidade imaginativa e o reconhecimento
da ilusão, por parte de um sujeito solitário
em meio à natureza. Desta forma, o Pantanal para Barros
não é um cenário de pacífica completude
espiritual, e sim, um espaço de tensão entre
a realidade e a perspectiva sonhadora, também focada
na visão da infância.
Desse modo, a relação
entre poesia e imaginação funcionaria de duas
formas em Barros. Primeiro coloca-se em dúvida a sinceridade
romântica atribuída ao sujeito lírico,
e que em vez de ratificada é abalada pela aproximação
ao olhar imaginativo da criança. Segundo inaugura-se
um novo entendimento do ver. Esse valor atribuído ao
olhar imaginativo já fora expresso anteriormente, num
poema também de Livro sobre nada dedicado ao pintor
boliviano Rômulo Quiroga, em que podemos perceber a
relação entre o ver e o imaginar. Nele, o poeta
diz: "O olho vê, a lembrança revê,
e a imaginação transvê./ É preciso
transver o mundo." Assim, o ver na poesia manoelina se
afasta da visão empirista da realidade, que se vincula
à crença perceptiva do olhar. Em poesia é
preciso ver com a imaginação, o que para o poeta
é uma forma de trans-ver.
Num outro fragmento desse
mesmo poema, trabalhando na fronteira entre a poesia e as
artes plásticas, vemos que a imaginação
representa aí uma técnica de ruptura com a concepção
tradicional de arte figurativa:
Deus deu a forma. Os artistas
desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer camponesa voar - como em Chagall.
Essa operação
de "des-formação" (sic) da realidade
através de um ver renovado(r), e conseqüentemente
de ruptura com as formas tradicionais do verso se ligam ao
olhar infantil de Manoel de Barros. Logo, essa idéia
de rejuvenescimento do olhar poético, que Barros chama
de "ascensão para a infância", é
menos uma forma de compreensão pueril e ingênua
do mundo do que uma maneira de buscar, através da arte,
a experiência do novo, afastando-se dos imperativos
da técnica, e/ou do legado erudito da tradição
literária.
No entanto, esse distanciamento
tanto com relação à técnica como
à tradição só podem se dar a partir
de ambas. No poema citado, Barros recorre a uma imagem de
Chagall; e referências às obras de Baudelaire,
Rimbaud, Rabelais, Shakespeare, Pe. Antônio Vieira...
(autores tradicionais), procurando neles imagens e/ou características
que façam uma intertextualidade com seu projeto estético,
são uma constante na sua poesia. Já com respeito
aos procedimentos técnicos, em Ensaios fotográficos,
observamos que a relação entre poesia e fotografia
é uma maneira de demonstrar, tal como afirmava Walter
Benjamin, que mesmo "a técnica mais exata pode
dar às suas criações um valor mágico"
(BENJAMIN, 1994, p.94). Desse modo, a fotografia, um dos marcos
revolucionários do conceito de arte na modernidade,
também representa uma nova forma de ver o mundo, diferente
da visão normal, a partir da técnica. Falando
sobre essas questões na obra benjaminiana, Celia Pedrosa
diz que "procedimentos como a ampliação
e o distanciamento do foco vão revelar virtualidades
até então desconhecidas, que [Benjamin] atribui
a um 'inconsciente ótico', semelhante ao inconsciente
pulsional freudiano" (PEDROSA, 2002, p.7). Na esteira
desta colocação, pode-se desenvolver a questão
do ilogismo do verso manoelino, que, para o poeta, é
o que lhe dá sustentação. Sua poesia,
eminentemente narrativa, joga todo o tempo com o recorte e
o comentário em torno de pequenas estórias inverossímeis.
Um exemplo seria o poema "Infantil", de Tratado
geral das grandezas do ínfimo:
O menino ia no mato
E a onça comeu ele.
Depois o caminhão passou por dentro do corpo do
menino
E ele foi contar para a mãe.
A mãe disse: Mas se a onça comeu você,
como é que
o caminhão passou por dentro do seu corpo?
É que o caminhão só passou renteando
meu corpo
E eu desviei depressa.
Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.
Eu não preciso de fazer razão.
Em sua recente dissertação
de mestrado, José López Landeira apresenta uma
interessante idéia sobre a presença e a defesa
do ilogismo na poesia manoelina. Valendo-se da etimologia,
ele afirma que a "partícula i- poderia valer não
só para indicar a ausência mas também
(...) interioridade, 'dentro de', como, por exemplo, em 'imigrar'.
Assim, ilogismo, num olhar que alarga o seu sentido, o que
é muito comum ao estilo de Manoel de Barros, supõe
aquilo que se procura dentro da lógica" (LANDEIRA,
2000, p.41). Nesse sentido, no poema "Rabelais",
de Ensaios fotográficos, Barros atribui valor à
experiência poética, marcada pelo distanciamento
da lógica burguesa, como demonstra Hugo Friedrich no
seu Estrutura da lírica moderna (Cf. FRIEDRICH, 1991,
p.190-193), e que, num processo intrínseco de afastamento
com relação ao público, acabou sendo
relegada ao rol das coisas supérfluas, inúteis
para vida prática: "Por volta de 1532 andava pelas
ruas de Paris o doido/ de Rabelais./ O doido apregoava pregos
enferrujados./ Ele sabia o valor do que não presta".
Perguntado, certa vez,
sobre o que pensava a respeito da opinião de alguns
leitores que o consideravam louco devido à poesia que
faz, Manoel de Barros explicou que ambos, poetas e loucos,
são seres "escalenos" - "desconstruídos
por suas palavras" (Apud BARROS, 1992, p.314). Assim,
ele evidenciava a consciência da cisão do sujeito
lírico, construído através de uma linguagem
poética fragmentária, que, na modernidade, é
o reflexo do processo de crise da própria linguagem.
Nos seus poemas, Barros explicita a idéia de que o
"poeta" é um "ente de sílabas",
construído, ou melhor, "desconstruído"
através da linguagem. Essa consciência de que
a subjetividade lírica não passa de uma construção,
ou, de outra forma, de uma desconstrução do
ideal unívoco de sujeito, é absolutamente anti-romântica,
e reflete o conceito psicanalítico lacaniano de aphanisis
- noção de "apagamento", ou desaparecimento
do sujeito, constituído, segundo Lacan, na e pela linguagem
(Apud BAUDRILLARD, 2001, p.65-89). A consciência moderna
de fragmentação subjetiva é oposta às
idéias de poeta demiurgo, do romantismo, e de poesia
"flagra no ego", da geração mimeógrafo.
Já em livros anteriores, o poeta se autodefinia como
um "vazadouro para contradições";
no movimento contínuo de "desejar ser", constitui-se
ele a partir do próprio estilhaçamento: "Com
pedaços de mim eu monto um ser atônito"
(In Livro sobre nada, 1996, p. 37).
Em Ensaios fotográficos,
três categorias dividem lugar, de maneira questionadora,
com a noção de a priori da expressão
lírica em primeira pessoa. São elas: a identificação,
desde o primeiro poema do livro, da atividade lírica
do sujeito com as atividades de um fotógrafo; o uso
do pronome indefinido "ninguém", como no
poema de mesmo nome, em que substitui a 1a pessoa ("eu");
e o diálogo subentendido entre o sujeito e outras figuras
ficcionalizadas. Todas elas representam a relação
dialética de distanciamento e aproximação
que a idéia de fotografia é capaz de imprimir
às imagens do eu. Concentrar-nos-emos, porém,
na análise da primeira categoria, e tomaremos como
exemplo o poema "O fotógrafo", em que o poeta
apresenta, à maneira de um relato, o modus operandi
do sujeito lírico:
Difícil fotografar
o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Numa entrecortada junção
de frases, Barros vai alinhavando pouco a pouco a descrição
da cena. Nela, misturam-se as noções de sujeito
e objeto, ou, podemos dizer que o sujeito é ao mesmo
tempo quem fotografa e quem é fotografado - no poema,
o bêbado é a representação do próprio
eu lírico na terceira pessoa. Porém, esse "objeto"
da fotografia, no poema, é um "quase-objeto".
Quase porque, em Barros, a imagem poética opta sempre
pelo figural, o não-visível, em lugar do figurativo.
O sujeito realiza a cena com o lento enquadramento de um fotógrafo,
e é ele mesmo o referente da imagem. Porém,
esse quase-objeto não logra ser retido pela imagem
fotográfica, o que é um processo questionador
do fenômeno da espetacularização das imagens
na atualidade, visto que a fotografia, técnica capaz
de transformar sujeitos em objetos, é um dos procedimentos
mais representativos desse fenômeno na nossa sociedade
- "sociedade para a qual o ser baseava-se em ter",
segundo Roland Barthes (BARTHES, 1984, p.26).
No seu estudo sobre a
fotografia, em lugar da objetivação da imagem
fotográfica, reprodução do real, Barthes
destaca o elemento subjetivo da foto, o punctum - detalhe
que punge o sujeito, capaz de atrair o olhar do espectador
numa armadilha que o leva a um instante de inquietação.
Na foto, o punctum muitas vezes é um detalhe intraduzível:
um grito silencioso (cf. BARTHES, op.cit., p.80-85). Sendo
ele a ferida que não pode ser nomeada, essa dimensão
traumática ganha correspondente, no poema, através
do "silêncio", que envolve cada gesto do fotógrafo
- ao mesmo tempo, sujeito actante e observador. Por isso,
a opção por fotografá-lo; em lugar do
bêbado/sujeito/fotógrafo que sai de uma festa
às quatro da manhã, fotografa-se o silêncio
que o carrega e que engasga a voz lírica. Da mesma
maneira, as imagens não visuais são sempre as
escolhas da lente poética, que procura a ferida pungente,
que busca no mundo exterior um detalhe que descobre os abismos
da subjetividade, reaproveitando de maneira original conceitos
abstratos como "existência" e "perdão":
"Vi uma lesma pregada na existência mais do que
na/ pedra./ Fotografei a existência dela./ Vi um azul-perdão
no olho de um mendigo./ Fotografei o perdão".
Para concluir, a busca
de uma aproximação entre poesia e fotografia
é compreensível, por serem ambas instrumentos
de imobilização do presente. A utilidade da
fotografia, como fixação do instante, pode ser
traduzida pela afirmativa benjaminiana, com respeito à
História, de que "pensar não inclui apenas
o movimento das idéias, mas também sua imobilização"
(BENJAMIN, op.cit., p.231). O poema "Bola Sete",
de Ensaios fotográficos, seria um exemplo de que através
da fixação de um instante é possível
perceber a complexa tensão temporal que envolve o presente:
"Bola Sete não botava movimento./ Era incansável
em não sair do lugar./ Igual o caranguejo de Buson
que foi encontrado/ de manhã debaixo do mesmo céu
de ontem". Essa imobilização da História,
da fotografia e do poema não deve ser entendida, portanto,
como a descoberta de uma forma definitiva e perfeita. Em Ensaios
fotográficos, a busca pela imagem "apta a foto",
como no poema "O vento", é incessante: "Queria
transformar o vento./ Dar ao vento uma forma concreta e apta
a foto./ Eu precisava pelo menos de enxergar uma parte física/
do vento: uma costela, o olho.../ Mas a forma do vento me
fugia que nem as formas/ de uma voz". Esse movimento,
empreendido pelo sujeito desejante, é o próprio
movimento da poesia.
* Este trabalho, que contou
com o apoio do CNPq, fez parte do projeto Poesia e visualidade,
que vem sendo desenvolvido na Universidade Federal Fluminense
sob a orientação da prof.a Dra. Celia Pedrosa.
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do sentido na poesia de Manoel de Barros: Estudo de elementos
expressivos fonéticos e morfossintáticos. Dissertação
de mestrado orientada pela prof.a Dra. Guaraciaba Micheletti,
USP, 2000, p. 41-44.
LOPES, Óscar. Geração de "Orpheu".
In SARAIVA, A. J. e LOPES, O. História da Literatura
Portuguesa. 17a edição. Porto Editora, 1996,
p. 993-1010.
PEDROSA, Celia. Drummond e a experiência do olhar. Texto
apresentado no VIII Congresso Internacional da ABRALIC, 2002.
RANCIÈRE, Jacques.
Transportes da liberdade. In ______. Políticas da escrita.
Trad. Raquel Ramalhete et al. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995,
p.105-190.
*
Antonio Andrade
é mestrando em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura
pela Universidade Federal Fluminense, onde desenvolve dissertação
sobre a questão do neobarroco e sobre suas implicações
na poesia brasileira e hispano-america. Vem publicando artigos
sobre poesia contemporânea em livros e revistas especializadas.
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Leia também um
ensaio do autor sobre Roberto
Echavarren e um texto de Fabrício
Carpinejar sobre Manoel de Barros.
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