ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

FETICHE É CELEBRAÇÃO DE SIGNOS

 

Fabrício Marques

Declaração 1

Eu nunca quis o fácil/ busco além do difícil/ o dificílimo
A. Risério



Em Auto Retrato, um dos poemas de Fetiche (Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, Copene, 1996), estão algumas pistas para se entrar na poesia de Antonio Risério. Nele, elegem-se alguns temas -a própria poesia, as vanguardas estéticas (o dadaísmo, no caso), a antropologia, as culturas ameríndia e africana- que, reunidos no mesmo espaçotempo do poema, constroem uma nova realidade.

Tudo se passa a partir da montagem de patterns geométricos de flautas dos índios assuriní da Amazônia, trecho de um dos manifestos dadaístas de Tristan Tzara e fragmento de um oriki de Omolu, o Grande médico da mitologia Nagô, como informa o poeta (há notas explicativas no final do livro, importante para contextualizar os poemas).

Esses registros de diferentes culturas e expressões vêm assinalados por jogos tipográficos (caixas alta e baixa, fonte da letra em um tamanho padrão e outro, menor) estrategicamente colocados entre dois retângulos com a mesma figura geométrica em vermelho e negro.

Toda essa profusão de temas e formas (um potencializando o outro) só realça o primeiro e mais importante dos sinais espalhados no livro: uma diversidade que integra à medida em que marca diferenças, uma mistura desierarquizada, marcas de uma poesia multinacional, intercontinental.

Para reunir essa soma de referências, Risério finca pés e mãos, coração e mente na encruzilhada poética-antropológica de um território inespecífico, mas, só para existir um ponto de partida, que ele seja o Brasil.

Aliás, como está relatado no texto historiográfico Uma História da Cidade da Bahia (Salvador: Omar G., 2000), Risério foi preso com 16 anos, como subversivo, pela ditadura militar. E ao fazer uma visita vespertina, na cadeia da Marinha, na Cidade Baixa, levando de presente um exemplar do "Grande Sertão: Veredas", seu pai (o advogado e jornalista Antonio Risério Leite) lhe disse: "você pode estudar as correntes de pensamento que bem entender. Mas, se você quer mesmo entender o Brasil vai ter que ler e reler Euclides da Cunha, Gilberto Freyre e Guimarães Rosa".

Na verdade, o que está em jogo nos textos de Fetiche também é o país, com toda a complexidade de sua grandeza e miséria, um país de muitos consumidores e poucos cidadãos.
Duas cidades-signos comparecem nas páginas de Fetiche: Brasília e Salvador. A primeira, em Brazylya 20; e a segunda, em Saudade do Salvador. Ambos os poemas falam de características parecidas dessas personagens. Sobre a capital federal: "Esta cidade que aqui está/ com suas asas abertas/ em vôo e no mesmo/ lugar"; e a respeito da capital baiana: "Esta cidade tem asas".

Mas há mais sobre essas cidades. Em uma entrevista de 1998, Risério comentava, entre outras coisas, sobre Uma História da Cidade da Bahia. Em seu ponto de vista, havia um fato fascinante: a cidade da Bahia, primeira capital do Brasil, nasceu para o mundo como o avesso mesmo da cidade medieval européia. Em vez de se formar a partir da agregação mais ou menos espontânea de pessoas, juntando-se ao longo dos tempos num determinado sítio, ela nasceu de uma decisão intelectual, de discussões sobre o destino do Brasil, no âmbito do poder português. "Ou seja: antes que produto de um passado, Salvador nasceu como projeto de um futuro. E foi uma cidade planejada, desenhada em prancheta lisboeta. Uma espécie de Brasília do século 16".

Portanto, nada melhor do que fazer a devassa das realidades brasileiras entrincheirado num "padê" (vamos viajando com o poeta: termo da língua iorubana, significando encontro, melting pot), cujo mote poderia ser: "assim como a antropologia é uma poética das sociedades, a poesia é uma antropologia do indivíduo".

No ensaio Brasil, Bahia -sem brasileirismos, nem baianismos (Mais Poesia Hoje, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000), este baiano que completará meio século de vida em novembro deste ano, declara-se distante de qualquer compromisso regional. A Bahia que a ele interessa é a que joga com signos múltiplos, "a que mistura cana-de-açúcar e Góngora, Corisco e Eisenstein, samba-de-roda e Godard".
Esse desapego a um centro, e a eleição de um espaçotempo em que tudo pode acontecer (e acontece), em poemas que vêm das mais diversas direções -de um provérbio chinês, dos nomes de rios brasileiros, de casos amorosos, de reflexões sobre a própria poesia, de deuses africanos, de ditos indígenas, de visões de certas cidades, de outros poemas- dão conta do título do livro, como explica Risério: "sempre me fascinou a semântica dessa palavra; a gama de sentidos que ela assumiu; a sua trajetória no tempo, viajando de um sistema lingüístico para outro, e retornando, transfigurada, ao seu sistema original. Como não há quem ignore, o vocábulo francês fetiche vem da palavra portuguesa feitiço. Num dicionário da língua portuguesa, temos: fetiche, do francês fétiche, do português feitiço. E Marx falando do fetiche da mercadoria. E Freud, de delírios objetais. E ainda, auto-ironia, a crença do poeta no poder mágico da palavra. Celebração, portanto, de todo um jogo verbal".

Por isso, também, cada criação poética presente no livro pode ser vista, ela mesma, como um fetiche (como em Conjugal: "ensaio mais um feitiço"), em que esplende o entusiasmo, a alegria com que o poeta compôs cada poema.

Risério poderia dizer, e diz: "rio de todos rio de tudo rio de mim". Risos que estalam sisos. Riso que a razão rasura. Que se aproxima daqueles que não esperam póstumos o riso amarelo da crítica. Tanto quanto morres, de rir. Depois, ir, pirar, rir. Entre risos, sim, passar a vida em prantos limpos. Este Risério, sem riso sério.

Passeiem, por exemplo, pelo intenso lirismo de Via Papua, criado depois da leitura de Argonautas do Pacífico Ocidental, publicado em 1922 pelo antropólogo Bronislaw Malinowski. Do relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia, Risério extrai poesia dos encantamentos do sistema de magia de uma certa canoa voadora, como se ele [Risério] passasse, magicamente, a conviver de perto e rotineiramente com as palavras e os códigos extra-verbais, fazendo uma espécie de observação participante (método reconhecido como a grande inovação de Malinowski no trabalho de campo) transposta para o plano da linguagem.

O antropólogo nascido na Polônia detectou a enorme diferença entre o relacionar-se esporadicamente com os nativos e estar efetivamente em contato com eles. "Que significa estar em contato? Para o etnógrafo significa que sua vida na aldeia, no começo uma estranha aventura por vezes desagradável, por vezes interessantíssima, logo assume um caráter natural em plena harmonia com o ambiente que o rodeia."

Pois é assim, em contato direto com as palavras e com as culturas -alvos de seu interesse permanente, movimentando-se livremente por códigos diversos, por técnicas variadas, por recursos vários, da caligrafia à computação gráfica, que Risério põe em funcionamento seu projeto de samplear diversidades e misturas.

Comecemos pelo campo lingüístico: pelos poemas passeiam palavras e versos em alemão, latim, japonês, iorubá, espanhol, inglês, francês, o italiano do monge calabrês Campanella e um refrão rabínico. Palavras e versos que entrechocam-se, interpenetram-se, roçam umas nas outras, em poemas "bimultipolicunilíngues".

Tudo se passa como sugere uma passagem do poema Dêuteros Hélios, que se refere a Epimênides, o xamã de Creta. Depois de sua morte, descobriram que o seu corpo estava coberto de tatuagens. Como lembra Risério, a pele de Epimênides é uma pele-pergaminho, pele-texto.

Outro poema em que é forte a encruzilhada de reuniões distintas (visitem o poema Passaporte: "Filho de lusos nagôs ítalos tupis") é Abaité Ya, que concentra uma mescla de particularidades da Europa, da África e dos índios tupinambás. Haiku, ikebana, budismo zen, teatro nô, mitologia ameríndia e orixás, compasso a compasso com semelhanças sônicas entre a língua iorubana e a japonesa.

Fetiche também reúne, dispersos no livro, poemas chamados de "vias", em seu duplo sentido, tanto um "caminho" quanto "um meio de se chegar a algum lugar". São as "vias" Papua, Bambara, [Santo] Agostinho, Campanella, Heráclito, Caiapó, Ennius, Abaluya, Marcial, Pagu e Vico.

O pensador napolitano Giambattista Vico, para quem "o mais sublime ofício da poesia é o de conferir sentido e paixão às coisas insensatas", aparece com o tapa-olho de James Joyce. As relações entre Vico e Joyce estendem-se principalmente para o Finnegans Wake, em que é evidente o tema do "ricorso" de Vico, em círculo vicioso -a commodius vicus of recirculation- vicus significando "rua", mas ao mesmo tempo evocando o filósofo setecentista e a Vico Road, de Dublin, como anotam os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, no Panaroma do Finnegans Wake. Risério vai dialogar com a escrita inventiva de Joyce sobretudo nos poemas Estreito de Behring, Dêuteros Hélios, Nusquama Pindorama e Numanoite.

Pode-se, agora, viajar por outros caminhos. Os poemas de Fetiche foram escritos em duas fases distintas. A primeira delas vai entre 1974 e 1982, excetuando-se os anos de 1978 e 1981, nos quais Risério ficou longe da máquina de escrever e do computador para escrever poemas. A segunda etapa é aquela entre 1990 e 1995. No livro, os textos não seguem uma ordem linear, e estão numa seqüência aparentemente aleatória.

Dos 65 poemas, 32 podem ser definidos como tipográficos, e 33 como intersemióticos, ou "visuais". E já que o caráter de mistura foi tão acentuado, nem poderia ser diferente: Risério optou por não agrupar as duas formas em seções diferentes, mas preferiu dispô-las, misturadamente.

Ou, para falar da "tecnologia das tecnologias" (dixit Décio Pignatari), a linguagem, Risério põe em ação as tecnologias tipográfica e infográfica, postulando seu direito de criar por qualquer meio que seja. E investe nos poemas nascidos por meio do computador, em que não podem ser negligenciados a escolha dos tipos, as imagens, a relação entre o texto verbal e o visual. É por esse motivo que Octavio Paz dizia que um poema na página é só meio poema. E é por desconhecer esses elementos que acontecem muitas leituras equivocadas. De resto, um maior aprofundamento sobre as relações entre a criação poética e as novas tecnologias da informação está no excelente ensaio do poeta, Sobre o Texto Poético em Contexto Digital (Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, Copene, 1998).

Um último ponto que deve ser destacado é a postura ética que a poesia de Antonio Risério implica. Ela está diretamente relacionada ao nosso tempo, ou à história caótica, a última fase da história universal, dividida em um ciclo quadripartido, na visão de Vico (as outras fases são a teocrática, a aristocrática e a democrática). A nossa própria época é caracterizada, então, por "cidade estrela de sangue/ cidade fratura exposta", pelo individualismo, pela opressão selvagem, pela proporção monstruosa da miséria e da fome, pela destruição da natureza e pela banalização da vida.

Depois de constatar o estado de coisas e o causador de todos os males no poema Aviso à Praça -"O homem é um engano do humano/ o homem é o homem do homem"; Millôr Fernandes afirmaria: "o homem é o lobby do homem"-, Risério receita o que é necessário para combater a decadência progressiva da humanidade: "Morder a ordem/ riscar as regras/ rasgar as rugas". Ou, ainda mais importante: "sacralizar/ a vida/ para salvá-la;/ não colaborar/ com a obra/ de extermínio."

Afinal, está em Poema da Catequese:

"Trocando símbolos em miúdos,
Tudo é possível.
Do bicho morubixaba
Convertido à cruz de pau
Ao tupinambá colorido
Em danças de amante canibal"

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Leia também poemas de Antonio Risério e uma entrevista com o autor.

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