CONDENSAÇÃO
E ESTRANHAMENTO
NA VÔO-LIÇÃO DE EDGARD BRAGA
Beatriz
Helena Ramos Amaral
"O poema é via de acesso ao tempo puro,
imersão nas águas originais da existência."
- Octavio Paz
Feixe de
luz, tecido por onde cintilam imagens, recursos e efeitos
plenos de tactilidade: esta conjugação marca
a essência do fazer poético de Edgard Braga (1897-1985),
cuja obra, iniciada em 1933, há pouco mais de setenta
anos, viria a atingir o ápice nos anos sessenta e setenta,
quando, após fase de intensa experimentação
e espacialismo, o autor viria a aderir aos postulados do concretismo,
depois rumando à radical invenção dos
"tatoemas" (poemas tatuados no papel, escritos,
desenhados e caligrafados). Conceitos basilares da poética
e de inconteste relevância na teoria literária,
condensação e estranhamento se
constróem na poesia bragueana em conjugação
e estreita correlação. É o que se examinará
a seguir.
A produção
da linguagem, característica exclusiva do homem, traço
que o distingue de todos os outros seres vivos, não
passaria despercebida aos primeiros filósofos ocidentais.
Ao conceber a realidade como um universo abstrato e ideal
e a imitação como reprodução imperfeita
da realidade, Platão vislumbrou perigos inerentes à
arte verbal, que, diversamente das formas de conhecimento
e dos raciocínios da filosofia, poderia seduzir e subjugar
o homem, por meio de pressões irracionais, corrompendo-o
e conduzindo-o às esferas do imaginário. Mas
o pensador também detectou no fazer artístico
um sopro divino, que, aliado à habilidade e à
sabedoria na operação dos meios (techné),
seria responsável pela produção das obras
poéticas. O pensamento de Aristóteles singularizou-se
pelo reconhecimento de que a arte seria o resultado de uma
habilidade especial para o fazer, da qual resultaria o belo.
A mimese era considerada, por Aristóteles, superior
à realidade. Como assinala Lúcia Santaella (1)
"a mimese, para Aristóteles, deriva de uma necessária
relação de adequação que deve
existir entre arte e vida, arte e natureza..... Só
a arte pode ser mimética, o que significa deslocar
o conceito de mimese do sentido de cópia para o de
representação e transformação."
Séculos depois do fértil período conhecido
como Antigüidade Clássica, a concepção
estética da modernidade viria a alterar drasticamente
os primeiros estudos sobre a arte: esta não mais se
subordinaria à realidade, mas a teria posta a seu serviço.
Conforme
consigna Lucrécia D'Alessio Ferrara (2) "esta
perspectiva abriu espaço para que, no âmago do
futurismo e do formalismo russo, surgisse a teoria do estranhamento,
que tem em Chklovski seu criador e defensor, quando, em 1916,
publica o ensaio "A arte como procedimento". O estranhamento
se conecta à desautomatização, caracterizando-se-o
como uma forma desafiadora de desenvolvimento de percepção
do mundo, reclamando do leitor maior empenho mental que aquele
regularmente dispendido em se tratando de compreensão
da linguagem não literária e da automatização
que nesta se faz presente.
Por outro lado, a idéia
de condensação seria bem explicitada por Ezra
Pound, para quem a literatura é "linguagem carregada
de significado" e poesia é "a mais condensada
forma de expressão verbal", sendo demasiadamente
antiga a associação entre poesia e concentração.
Engenho, literariedade, similaridade são outros conceitos
essenciais à poética que dialogam com a condensação
e o estranhamento, sendo cabível registrar-se, ainda,
a concepção de Roman Jakobson, para quem a literatura
não é uma representação da realidade,
e sim o resultado de um trabalho realizado sobre a linguagem.
Condensação.
Dichten. Adensamento de linguagem. Estranhamento.
Lembra Ezra Pound, em
seu " ABC da Literatura", a significativa frase
do poeta inglês Basil Buting, seu contemporâneo:
Grande literatura é simplesmente linguagem carregada
de significado até o máximo grau possível."
A este autor é atribuída a descoberta, durante
consulta a um dicionário alemão-italiano, de
quão antiga é a relação entre
a idéia de poesia e a condensação. Explicita
Pound: " Dichten é o verbo alemão correspondente
ao substantivo Dichtung, que significa poesia e o lexicógrado
traduziu-o pelo verbo italiano que significa condensar".
Muitas formas de condensação e adensamento de
linguagem tem conhecido a poesia desde a antigüidade
até nossos dias, sendo importante destacar, a título
de exemplificação, como ápices dessa
experiência o haicai, forma concisa de poesia japonesa
que atingiu seu apogeu na obra de Bashô (1643-1694),
a obra do inglês E.E.Cummings sua sintaxe tipográfica,
a poesia do francês de Stéphane Mallarmé,
ambas do século XIX, e a exploração do
branco do papel, já no século XX, a poesia constelar
do suíço Eugen Gomrimger (1925), o futurismo
italiano, e a poesia concreta brasileira, de que são
criadores Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio
Pignatari e de cuja estética também participaram
Edgard Braga, José Lino Grünewald, Pedro Xisto,
José Paulo Paes, Ronald Azeredo, entre outros.
O interesse de Ezra Pound
pelos experimentos de condensação máxima
de linguagem e pela poesia japonesa partiram de seu conhecimento
do ensaio "Os caracteres da escrita chinesa como instrumento
para a poesia", do americano Ernst Fenollosa (1853-1908),
que, tendo vivido por anos no Japão, aprofundou seus
conhecimentos da arte e da poesia nipônica. O reconhecimento
da existência, na poesia japonesa e chinesa, de um princípio
de alta eficácia, manifestamente diverso da estruturação
lógica ocidental viria a influenciar sobremaneira a
poesia de Pound e suas idéias teóricas.
Escreveu Fenollosa que, neste processo de composição,
a soma de duas coisas não produz uma terceira, mas
sugere uma relação fundamental entre elas. Identifica-se
aí o princípio de montagem, presente na criação
dos ideogramas e das obras artísticas construídas
a partir desses mesmos ideogramas. Identifica-se, também
o princípio de montagem e sobreposição
de imagens cinematográficas desenvolvido por Sierguéi
Eisenstein, que tanto viria a influenciar a literatura e a
própria teoria literária. Para Fenollosa, "
a linguagem poética é sempre vibrante das
ressonâncias de sons harmônicos e de afinidades
naturais; mas, no chinês, a visibilidade da metáfora
tende a elevar tal qualidade ao ápice de sua força."
A propósito do
antológico poema "Um coup de des", de Mallarmé,
assinalou Octavio Paz, sobre o mesmo tema ora em foco:
"A poesia moderna,
como prosódia e escritura, inicia-se com o verso livre
e o poema em prosa. Un coup de des encerra esse período
e abre outro ....A escritura alcança nesse texto sua
máxima condensação e sua extrema dispersão
.....cada conjunto de frases, sem perder sua relação
com o todo, cria para si um domínio próprio
nesta ou naquela parte da página; e esses espaços
distintos fundem-se às vezes numa só superfície
sobre a qual brilham duas ou três palavras"
(grifo nosso, PAZ, 1956:331).
Também na experiência
da poesia concreta brasileira a condensação
encontrou fértil caminho, uma vez que os criadores
do movimento se propunham justamente a explorar ao máximo
camadas materiais do significante, num processo de comunicação
verbi-voco-visual, apresentando inovações nas
esferas semântica, sintática, léxica,
morfológica, fonética e tipográfica,
atomizando trechos do discurso, fazendo amplo uso da polissemia,
das rupturas sintáticas, de neologismos, desintegrando
o sintagma em seus morfemas, utilizando aliterações,
assonâncias e jogos sonoros e abolindo o verso e os
sinais de pontuação e realizando um construtivo
uso do espaço em branco.
Vejamos como exemplo
o poema "Volição", de Edgard Braga:
um
disco
uma nuvem
uma luz
um
sulco
um
vôo
uma
voz
volição
uma
vela
um
leve
vôo
(vôo)
uma
luz
(azul)
sulazul
|
Fácil perceber como se adensa a textura do poema, como
cresce sua espessura. A condensação corresponde
a uma propulsão de significados e sua construção,
evidentemente, se estriba no engenho, na habilidade, na techné
e na inventividade do poeta. Constitui marca da modernidade
o adensamento da linguagem, tendente a produzir no leitor
um efeito especial, que, muitas vezes, se assimila à
estranheza, ou ao estranhamento, tal como concebido pelos
formalistas russos.
Predominantemente melopaico,
o poema também se reveste de procedimentos de fanopéia,
e apresenta, ao lado das principais características
da estética concretista, à qual Braga se filiaria,
no início dos anos sessenta, o lirismo peculiar à
sua poética. O resultado obtido remete a conceitos
e atributos básicos do fenômeno literário:
a mimese, o engenho, o estranhamento. Volição
é um dos cinqüenta poemas de "Extralunário"
(3) - poemas incomptos, 1960, Martins Fontes Ed.- , o oitavo
livro de Edgard Braga, integrando o conjunto dos chamados
"poemas diacústicos". Lentamente, passo a
passo, desde 1933, com a publicação do poema
épico "A Senha", Edgard Braga construiu uma
poética de extrema originalidade e constante mutação,
experimentando procedimentos e recursos pré-concretos,
aderindo ampla e expressamente ao concretismo, e, posteriormente,
na década de setenta, criando os poemas-tatuagens,
a que chamou de "tatoemas", e também, se
valendo da poesia caligráfica para a construção
de uma série de textos quase tácteis. Sua obra
guarda estreitos laços com artes plásticas e
gráficas, sendo um bom exemplo da reafirmação
do maior grau de proximidade da poesia com as artes visuais,
a música, o cinema, do que com a própria literatura.
Aliás, oportuno
registrar-se aqui o fato de que, entre os dias 04 de agosto
e 10 de outubro de 2004, No Paço Imperial do Rio de
Janeiro, na exposição intitulada "TUDO
É BRASIL", sob a curadoria de Lauro Cavalcanti,
entre obras de Lygia Pape, Geraldo de Barros, Tuca Reines,
Lenora de Barros, Waldemar Cordeiro, Augusto de Campos, Arnaldo
Antunes, Lenora de Barros, Ferreira Gullar, entre muitos outros,
esteve exposto o álbum "Tatuagens", de Edgard
Braga, sendo digno de nota terem sido seus poemas visuais
expostos na mesma sala que abrigou as obras de Geraldo de
Barros, Lygia Pape, Waldemar Cordeiro, todos artistas plásticos.
A referida mostra tem inauguração em São
Paulo prevista para 08 de novembro de 2004, no Instituto Cultural
Itaú.
Retomando o exame do poema
transcrito, cumpre assinalar que, no amplo espectro de transformações
por que passaria a obra bragueana, "Volição"
integra e representa um dos mais importantes momentos de transição,
quando o poeta já fazia largo uso das experiências
concretistas e seguia a caminho de sua própria dicção
na nova estética. Os vocábulos escolhidos pelo
poeta, monossílabos ou dissílabos, distribuem-se
pela página, de modo a valorizar os espaços
em branco, e exploram ao máximo o significante, o som,
cada letra impressa, compondo o movimento, o desenho lúdico
de um texto-vôo. A seleção vocabular sugere
sempre imagens de leveza, de uma realidade volátil
que flui pelo espaço, como uma nuvem, ou gira
como um disco, instaurando imagens de brilho e tactilidade,
como uma luz, um sulco, uma vela. Evidencia-se em uma
luz, (azul) e sulazul o caráter de plasticidade,
a fanopéia, que, aliás, percorre toda a poesia
de Edgard Braga. A leveza do poema é resultante da
dilaceração do verso (procedimento concretista),
da ausência de verbos, da seleção de vocábulos
curtos, e dos recursos melopaicos.
A rica melopéia
se estrutura pelo emprego de anagramas, assonâncias,
aliterações. Exemplifica-se: há a presença
de anagrama na palavra azul, que contém a palavra
luz, e, finalmente, ambas, luz e azul,
estão contidas em sulazul, vocábulo criado
pelo engenho e pela inventividade do poeta e que condensa
a carga simólica do poema. Há a repetição
da consoante labiodental "V", em nuVem, Vôo,
Voz, Vela, leVe, favorecendo a volatilidade imagética,
que se identifica com a essência semântica de
"Volição": nuvem, luz, sulco, uma
voz, um leve vôo, elementos que convergem no ato de
construção do texto poético, em que devem
estar presentes a leveza da nuvem, o brilho e a visibilidade
da luz, da vela, da cor (azul), a audácia e a liberdade
do vôo, e a aragem resultante dos sulcos. Sulco é
um rego aberto pelo arado; em música concreta, é
a técnica utilizada por Pierre Schaeffer, que consiste
em gravar uma célula musical ou sulco circular a fim
de possibilitar ao compositor a indefinida repetição
do objeto sonoro. As seqüências de aliterações
- uma voz / uma vela / um leve / vôo, e uma luz /
(azul) / sulazul, contribuem para a sugestão do
movimento do vôo, da dança das asas. Disco, nuvem
e sulco conferem ao poema uma dimensão táctil.
As já referidas plasticidade (fanopéia) e musicalidade
(melopéia) completam a atmosfera de sinestesia. O ritmo
é marcado pela presença dos artigos indefinidos
um, uma, a anteceder cada substantivo, conferindo
ao texto uma estrutura binária, que flui suavemente
pelo caminho do poema, pelo movimento de asas que se abrem
e se fecham, em cujos intervalos fluem as pausas, num dança
de luzes e figuras sonoras, que alcançam a origem de
todos os vôos. Em volição, um bem aplicado
conjunto de signos-de representam, delicadamente, um passeio
sobre o próprio fazer poético, que é
vôo-estético, vôo-lúdico, vôo-imagético,
vôo-sinestésico e contém informações
cognitivas.
Da leitura e interpretação
do poema emerge a articulação entre o sentir
e o pensar, inerente ao fazer artístico, já
preconizada desde o pensamento aristotélico. Essa articulação
parece explicar, em certa medida, o próprio título
do poema analisado. Volição, proveniente do
vocábulo latino volitione, tem como raiz volo,
qie significa querer. A proximidade sonora de tal raiz com
a palavra vôo não é casual e sua escolha,
pelo poeta, sinaliza que a construção do texto
vedadeiramente poético também necessita do ato
volitivo, do querer, selecionar, escolher, pensar o poema
em seus vocábulos, em seus elementos, para a produção
dos efeitos desejados. O vôo poético jamais será
um vôo cego. Terá em seu traçado a decisão
racional do autor, a atuação da vontade. Pois,
como escreve Julio Cortazar (4) , "só o poeta
é aquele indivíduo qe, movido por sua condição
inspirada, vê no analógico uma força ativa,
uma aptidão que se transforma, por sua vontade, em
instrumento."
Revelando indiscutível
engenho, o instrumento poético de Braga produz efeitos
sinestésicos, trabalha o próprio conceito do
fazer poético, recria o vôo metalingüístico
e, envolvendo todos os sentidos do leitor, jamais deixa de
supreendê-lo até o estranhamento final, causado
pela palavra criada a partir de sílabas de outros vocábulos
já utilizados: sulazul, que como um espelho,
permite leitura em ambos os sentidos de orientação,
em ambas as direções, da esquerda para a direita
e da direita para a esquerda. Como "sul azul" ou
"luz a luz (s)".
Condensação
e estranhamento correlacionam-se aqui, não apenas entre
si, mas também com o conceito de literariedade, entendida
como qualidade do fazer literário, desautomatizador
e provocador de instâncias perceptivas mais alongadas
e profundas no leitor. A voz poética que condensa apaga
a clareza óbvia do sentir automatizado e inaugura,
em seu estranho escuro, a livre espessura do belo, como nova
luz a orientar os remos e leitores do futuro. Lição
de engenho e técnica, de inventividade e lirismo, de
expressividade e concisão, o poema "Volição"
é um dos muitos exemplos engenhosamente realizados
na competente e singular travessia poética de Edgard
Braga, sobre a qual, com propriedade, escreveu Haroldo de
Campos:
"a poesia sintético-imaginista
e grafo-táctil de Edgard Braga parece recapitular esse
fascinante processo de resgate da 'faculdade mimética'
- momento mágico ou de 'iluminação',
obliterado no uso meramente denotativo da língua".
"Edgard Braga é desses espíritos perseguidos
pela vertigem heurística da falésia, "uno
sperimentatore infinito, una giovinezza senza limiti",
como, ainda há pouco, o descreveu ruggero jacobbi,
apresentando-o aos leitores da revista bolognesa "segnacolo"
"para os filisteus da sensibilidade, de todas as idades,
agrupados ou não em "gerações",
um exemplo pouco tranqüilizador, a ser constantemente
relembrado" (5) pósfácio a "Soma",
1963)
*
Beatriz Helena Ramos
Amaral é poeta, escritora e mestranda em Literatura
e Crítica Literária (PUC-SP), autora dos livros
Alquimia dos círculos (2004) e Planagem
(1998), entre outros títulos.
*
Notas:
___ (1) SANTAELLA, Lúcia.
Estética de Platão a Peirce, 2000, São
Paulo, Ed. Experimento.
___ (2) FERRARA, Lucrecia D'Alessio Ferrara. O texto estranho,
1978, São Paulo, Ed. Perspectiva.
___ (3) BRAGA, Edgard. Extralunário, 1960, São
Paulo, Martins Fontes Ed.
___ (4) CORTÁZAR, Julio. Para uma poética,
in Obra Crítica - volume 2, 1999, Rio de Janeiro
___ (5) BRAGA, Edgard. Soma, 1963, São Paulo,
Ed. Invenção (pósfácio de Haroldo
de Campos)
*
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poemas
de Beatriz Helena Ramos Amaral e um ensaio
da autora sobre Rodrigo Garcia Lopes.
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