RIO
SILÊNCIO:
POESIA E FILOSOFIA EM ESTREITO DIÁLOCO
Benedito Nunes
Se
em paralelo com o conceito, firmado por Göethe, de literatura
universal, é admissível a existência de uma poesia universal,
esta só pode ser um universo de vozes confluentes e até conflitantes
a falar-nos sempre das mesmas coisas, sob a tônica de sentimentos
fundamentais distintos e na perspectiva histórica de uma determinada
leitura da tradição poética.
A
poesia como escrita se produz agora, neste ou naquele momento
do tempo presente; mas o processo dessa escrita nunca vem
de perto; ele se faz no largo movimento temporal de recuo
ao passado e antecipação do futuro. Só assim a poesia é recordação
e pensamento ou "o fervor pensante da recordação", segundo
a qualificou certo filósofo contemporâneo. A poesia moderna
concretizaria este estado que é mais do que expressão, porque
também pensamento, unindo, em sua universalidade, vozes de
diferentes poetas.
Ao
apreciarmos Hong Kong
& outros poemas, dizíamos que
neste livro Antônio Moura incoporara as vozes de Rimbaud,
Laforgue, João Cabral de Melo Neto e Mário Faustino.
Antônio Moura nunca anda sozinho; é uma mônada que contém
outras mônadas, abrangendo-se todas elas no desenrolar de
um drama cósmico, metafísico. Nisso consiste a capacidade
dramática de despersonalização do poeta, dialogando desde
o seu primeiro livro, Dez,
com seus outros, seus alter-egos mitológicos e literários.
Poderíamos dizer que nos poemas reunidos neste terceiro livro
não só aumenta esta capacidade - aumentando conseqüentemente
a pluralidade de vozes concorrentes - como também se amplifica
o espectro delas. A despersonalização atinge igualmente as
vozes; já não são apenas mitológicas e literárias, mas também
filosóficas. Não nos admiremos do ingresso dessas últimas.
Jamais
como em nosso tempo deu-se proximidade maior entre poesia
e filosofia. Em Rio
Silêncio poesia e filosofia dialogam
estreitamente, mas em surdina, falando por imagens extremadas,
isto é, imagens que são limiares de uma tópica do pensamento.
Não falo só da imagem Gallileana e/ou Shakespeariana do
livro mundo, nem só da marcante oposição corpo e alma
que pontua os versos. Aqui o invisível tem seu lugar certo,
seja como riacho ou rio - "o invisível riacho ao encontro
de outro" a lembrar o "bas ruissau calonié, la mort" de Mallarmé
- seja como a sombra da sombra que o homem é. "(.)considerando
isso e lembrando que o dia/ é um punhado de pó de estrelas/
que a noite, com sua pá, atira/ sobre as pálpebras de sono,/
que o céu tem som violeta sobre os/ cabelos deste homem que
trafega no poente/com cheiro de pólvora nas mãos/ e que este
mesmo homem, quando penetra/ em sua amada, quer, talvez, voltar/Que
o sol é a solidão às claras/ Que a lua é um búzio numa toalha
gralhazul/ gargalhando o destino em crateras/ Que a sombra
que nasceu comigo/ espera
de meu corpo um gesto que/ ela possa, com amor, repeti-lo
(.)"
Nesse
trecho de um poema interrompido, sem ponto final, levando
ao refinamento a arte do emjambement, e que tem a altiva dignidade
dos grandes poemas elegíacos de Carlos Drummond de Andrade,
é quase impossível separar o poético e o filosófico. Não deixe
de lado, caro leitor, o poema Onde, um dos melhores deste belo e consistente livro, e que tem tanto
de Cabralino quanto de Pascaliano: "Onde a voz é tão soprana
que/sua ponta de diamante trinca/o céu de vidro, e onde a
luz/ é treva, de tão intenso o brilho/(...) Onde a beleza
é medonha de/tão radiosa, rosto, rosa, que/nos interroga no
silêncio dos/espaços infinitos que apavora (...)". Quem terá
esquecido o pensamento de Pascal "Eu vejo estes terríveis
espaços do universo que me encerram... Eu só vejo infinidades
por toda parte que me devoram"? Pascal não se dizia poeta,
nem João Cabral se considerava filosófo. Mas neste texto de
Antônio Moura a filosofia de um e a poesia de outro se intercruzam.
O
que chamei de invisível linhas atrás, é o místico-religioso,
nessa poesia, confirmado pelo poema final - Num livro de San
Juan de La Cruz - que ratifica a densidade espiritual da imagem
do livro mundo na epígrafe. Em resumidas contas, as mais pujantes
imagens desse livro, tal como escrito por Antônio Moura, são
platônicas. Assim, por um modo transverso, irônico, a filosofia
platônica acaba sendo o recheio da poesia que ela condenou.
*
Benedito Nunes,
professor, ensaísta, filósofo e crítico literário brasileiro
(Belém, 1929). Foi um dos fundadores da Faculdade de Filosofia
do Pará. Publicou, entre outros títulos, O drama da linguagem - uma leitura de
Clarice Lispector, Oswald Canibal, João Cabral de Melo Neto
e Introdução
à Filosofia da Arte.
Este
texto foi publicado originalmente como prefácio do livro Rio Silêncio, de Antônio
Moura.
|