TRAVESSIA
Um dia para atravessar
sol
entre duas noites imensas,
tendo como companhia o
corpo,
este pequeno animal que não
te pertence e que, sem
nada
perguntar, se oferece, devotadamente,
ao tempo, deus que também
é
o próprio corpo em silêncio
Um dia para transpor tendo
por alimento
a poeira da estrada que se estende
branca, do nascente ao
poente e
que, lentamente, transforma-se em
riacho negro que passa
sob a
ponte suspensa da Via Láctea
Ir, à outra margem,
de acordo
com o que a própria ida engendra
Ora com o silvo das serpentes
sob o passo
Ora andando sobre as águas do poema
MARINA
Ante o mar és somente
a sombra de uma sombra
entre outras sombras,
um
mmmmmmmmmmmmm
murmúrio de espuma
entre
uma e outra onda - voz
carregada de sal e sereia
arfando as guelras na areia,
inflando, à beira,
contra a
morte, as narinas do agora
que aqui persiste em forma
de grão, estrela, fêmea, rocha,
bosta de aves marinhas
ou
imperceptível ruído de asa
brotando no silêncio
da carne
apenas para decantar em alma
a lama que se amalgama
ao dia
QUANDO
Quando a luz cegar o seu
fio
de navalha que corta tudo em
claro e escuro, e esta
sombra
já não tiver a centelha com que
dialogar alternando-se
em sol
e lua, silêncio e palavra, terra
e céu refletido
nas águas do rio que
arrasta a imagem das noites e dos dias,
quando por mero acaso
repentino
ou ocaso lento e gradual romper-se
o fio de voz que traz
o não e o sim
na mesma frase de ritmo imprevisível,
nada ao mundo faltará
e nada se
abalará a este pequeno movimento
de asa, que, ao decolar,
vibra,
imperceptivelmente, a folhagem
APÓS O DILÚVIO
Pela manhã, após
o dilúvio, a lama nas calçadas,
os cacos de trovões no chão, o silêncio
branco
do céu ensopado
em gaze, as casas de lodo
e as alamedas disparando seus alarmes, os
caranguejos caindo dos
ninhos das árvores
e as aves, no solo, querendo refazer o vôo
ao peso do barro e das heras sobre as asas,
o navio encalhado no topo de um telhado,
os animais estátuas
sob a argila crosta à beira
do mar morto de sede bebendo vento nas mãos
em concha da areia, os
jardins, Ó, os jardins
desabrochando em lodo, o sangue das crianças
jorrando das torneiras
dos palácios e correndo
em sargetas para os esgotos, o sol lambendo
a pele das cobras que
relâmpago agora
mudam de casca e pendem entrelaçadas
nos parapeitos dos edifícios
entre as flores entre
abrindo as pálpebras de musgo para o arco-íris
refletido nos olhos do
rosto sobrevivente
que aspira o ar, ainda úmido, após o dilúvio
MANCHAS
Uma pequena mancha preta
ave no topo do dia.
O dia que se ergue do sono das estrelas.
Ave sobre a terra e suave se aninha
nas retinas do homem que, pequenino,
entrecerra os olhos lançados para cima.
Uma pequena mancha na terra
e uma pequena mancha no céu,
espelhando-se em suas imagens provisórias.
A mancha que flutua e
a mancha que se arrasta,
mas que também se eleva quando
a visão da ave lhe empresta asas.
Mancha presa na relva mirando
a mancha preta suspensa no azul,
vindas do ventre secreto do mundo
para a incerteza da face visível da natureza.
Mancha celeste, mancha terrena.
Entre elas apenas o rumor do vento
segreda a poeira e a nuvem da existência.
Pequenas manchas pretas sobre o branco do dia.
Ave e homem, dois pontos, à beira do silêncio:
ESCREVER
Escrever para supraviver
por um momento, ou ser
inteiramente num instante
em que passado, presente
e futuro se fundem numa
chama única e transparente.
Escrever para ver num
lago
branco o lado negro de Narciso,
luz e sombra velando-se
e
revelando-se nas pontas do
sorriso anjo-monstro,
que
nas águas aparece refletido.
Escrever, riscar à
carvão na própria
lápide o brilho cego de diamantes.
Escrever, morrer e aspirar,
eterna
mente, a poeira de uma estante