ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ANTONIO MOURA


 

TRAVESSIA

Um dia para atravessar – sol
entre duas noites imensas,

tendo como companhia o corpo,
este pequeno animal que não

te pertence e que, sem nada
perguntar, se oferece, devotadamente,

ao tempo, deus que também é
o próprio corpo em silêncio

Um dia para transpor tendo por alimento
a poeira da estrada que se estende

branca, do nascente ao poente e
que, lentamente, transforma-se em

riacho negro que passa sob a
ponte suspensa da Via Láctea

Ir, à outra margem, de acordo
com o que a própria ida engendra

Ora com o silvo das serpentes sob o passo
Ora andando sobre as águas do poema

 

 

MARINA

Ante o mar és somente
a sombra de uma sombra

entre outras sombras, um
mmmmmmmmmmmmm

murmúrio de espuma entre
uma e outra onda - voz

carregada de sal e sereia
arfando as guelras na areia,

inflando, à beira, contra a
morte, as narinas do agora

que aqui persiste em forma
de grão, estrela, fêmea, rocha,

bosta de aves marinhas ou
imperceptível ruído de asa

brotando no silêncio da carne
apenas para decantar em alma

a lama que se amalgama ao dia

 

 

QUANDO

Quando a luz cegar o seu fio
de navalha que corta tudo em

claro e escuro, e esta sombra
já não tiver a centelha com que

dialogar alternando-se em sol
e lua, silêncio e palavra, terra

e céu refletido nas águas do rio que
arrasta a imagem das noites e dos dias,

quando por mero acaso repentino
ou ocaso lento e gradual romper-se

o fio de voz que traz o não e o sim
na mesma frase de ritmo imprevisível,

nada ao mundo faltará e nada se
abalará a este pequeno movimento

de asa, que, ao decolar, vibra,
imperceptivelmente, a folhagem

 

 

APÓS O DILÚVIO

Pela manhã, após o dilúvio, a lama nas calçadas,
os cacos de trovões no chão, o silêncio branco

do céu ensopado em gaze, as casas de lodo
e as alamedas disparando seus alarmes, os

caranguejos caindo dos ninhos das árvores
e as aves, no solo, querendo refazer o vôo

ao peso do barro e das h’eras sobre as asas,
o navio encalhado no topo de um telhado,

os animais estátuas sob a argila crosta à beira
do mar morto de sede bebendo vento nas mãos

em concha da areia, os jardins, Ó, os jardins
desabrochando em lodo, o sangue das crianças

jorrando das torneiras dos palácios e correndo
em sargetas para os esgotos, o sol lambendo

a pele das cobras que – relâmpago – agora
mudam de casca e pendem entrelaçadas

nos parapeitos dos edifícios entre as flores entre
abrindo as pálpebras de musgo para o arco-íris

refletido nos olhos do rosto sobrevivente
que aspira o ar, ainda úmido, após o dilúvio

 

 

MANCHAS

Uma pequena mancha preta ave no topo do dia.
O dia que se ergue do sono das estrelas.
Ave sobre a terra e suave se aninha
nas retinas do homem que, pequenino,
entrecerra os olhos lançados para cima.
Uma pequena mancha na terra
e uma pequena mancha no céu,
espelhando-se em suas imagens provisórias.
A mancha que flutua e
a mancha que se arrasta,
mas que também se eleva quando
a visão da ave lhe empresta asas.
Mancha presa na relva mirando
a mancha preta suspensa no azul,
vindas do ventre secreto do mundo
para a incerteza da face visível da natureza.
Mancha celeste, mancha terrena.
Entre elas apenas o rumor do vento
segreda a poeira e a nuvem da existência.
Pequenas manchas pretas sobre o branco do dia.
Ave e homem, dois pontos, à beira do silêncio:

 

 

ESCREVER

Escrever para supraviver
por um momento, ou ser

inteiramente num instante
em que passado, presente

e futuro se fundem numa
chama única e transparente.

Escrever para ver num lago
branco o lado negro de Narciso,

luz e sombra velando-se e
revelando-se nas pontas do

sorriso – anjo-monstro, que
nas águas aparece refletido.

Escrever, riscar à carvão na própria
lápide o brilho cego de diamantes.

Escrever, morrer e aspirar, eterna
mente, a poeira de uma estante

 

*


Antônio Moura nasceu em Belém (PA), em 1963. Poeta e tradutor, publicou, entre outros títulos, os livros de poesia Dez (1996), Hong Kong & Outros Poemas (1999) e Rio Silêncio (2004). Reside atualmente em Lisboa.

*

Leia também um ensaio sobre o poeta, escrito por Benedito Nunes.

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