BREVES
APONTAMENTOS SOBRE A POESIA DE ABREU PAXE
Claudio
Daniel
A
Chave no Repouso da Porta,
de Abreu Paxe, é um livro que nos encanta pelo seu método
de composição e capacidade imaginativa. O artesanato consistente
com as palavras segue por uma linha distinta do discurso lírico
consolidado; o autor busca outras veredas, outras possibilidades
de construção poética, atento à estrutura e à semântica, ou
seja, à materialidade verbal.
Podemos
recordar a engenharia de João Cabral de Melo Neto, que considerava
o exercício poético como uma operação racional, e o poema
como objeto de linguagem, coisa construída, mas também a sentença
de Mallarmé sobre «o poder encantatório das palavras». Essas
duas considerações, a princípio, parecem opostas: como conciliar
o racionalismo da forma com a aparente alucinação de imagens
e sonoridades, voltadas à nossa fruição sensorial? O aparente
paradoxo encontra sua síntese na própria poesia, que em seus
momentos de invenção e epifania é capaz de conciliar o Eros
e o Logos, a sedução da forma e a forma da sedução.
Na poesia simbolista vamos encontrar
numerosos exemplos de criação rigorosa de linguagem conciliada
com uma riqueza de imaginário, e ainda em autores latino-americanos
do século XX como Lezama, Girondo ou Vallejo, para ficarmos
em poucos exemplos. Quando a linguagem é levada a extremos,
rompendo com o previsível e rotineiro, ela cria outra lógica,
outra sintaxe, outro código, como se intentasse a criação
de um universo autônomo, «com sua própria fauna e flora»,
no dizer de Huidobro. Nesses momentos de pico, em que o texto
poético se funde à música e à pintura, ele cria significados,
cria realidades, em vez de apenas retratar passivamente o
mundo das coisas.
A linguagem deixa de ser apenas referencial,
reflexo especular de objetos externos, para ser, ela mesma,
o seu sentido. Toda essa discussão, sem dúvida, merecia ser
aprofundada em texto de maior fôlego, mas isso nos afastaria
do tema principal dessa breve matéria, que é a matemática
de vertigens de Abreu Paxe.
Temos neste livro singular um conjunto
de 42 peças que dissolvem as fronteiras entre prosa e poesia
(recordando o conceito de texto de Max Bense), abdicando também
de uma sintaxe puramente gramatical, que cede vez a uma sintaxe
musical, onde as palavras são aglutinadas conforme a intenção
melódica e rítmica do poeta, desprezando a ocorrência regular
de maiúsculas ou pontuação. As palavras e linhas são tratadas
como acordes numa peça de concerto, ou como manchas coloridas
numa tela, obedecendo a um princípio construtivo exigido pela
própria obra, e não por normas exteriores a ela. Há uma ênfase
nos substantivos (novamente, a materialidade), que constroem
imagens concisas, fragmentárias, quase cubistas; há uma velocidade
na sucessão de quadros ou cenas que faz lembrar um videoclipe,
como por exemplo no poema dimensões ossificadas chaves (que
já no título apresenta a bizarria da junção de três termos
sem nexo aparente entre si): «a chave treme no repouso da
porta a janela ronda / pequeno porto tudo dispersa apesar
da ruga inglesa / as persianas estradas paredadas em negrito
partes / sufocadas voltam em gestos / confusos sem lâmpadas
dormia a criança / na inscrição falava umberto saba vivo a
um povo / de mortos possesso certamente / mal conhecido destroço
no sul da ilha». Esse fluxo verbal, que nada tem de linear
ou previsível, pode ser considerado uma antinarrativa, feita
de junções de personagens e cenários num caos ordenado, um
pouco à maneira do princípio do ideograma, definido por Pound
como «justaposição de imagens» (derivado de seu estudo da
poesia chinesa e japonesa, via os apontamentos lacunares de
Fenollosa.) Em outras peças, temos uma fúria semântica próxima
ao expressionismo, com sua ênfase em secreções, partes do
corpo e na desagregação («as veias sêmen debruçadas minúscula
incandescência», «afogava barcos sua mortal cloaca unia velha
íris» etc.).
Haveria muito mais o que dizer da poesia
de Abreu Paxe, mas, para concluirmos esta breve nota, gostaríamos
de apontar suas afinidades com a poesia da América Latina,
em sua mais recente e radical manifestação, o chamado Neobarroco,
que opera experiências similares com a linguagem, promovendo
a mescla entre prosa e poesia (como no Mar
Paraguayo, do brasileiro Wilson Bueno), a criação de uma
sintaxe mais analógica do que gramatical e a fusão de diferentes
repertórios culturais e lingüísticos, numa deliberada mescla
de signos que sintetiza a multiplicidade e o movimento dinâmico
não apenas da poesia, mas da vida.
*
Claudio
Daniel,
poeta e jornalista brasileiro, publicou, entre outros títulos,
os livros A Sombra do
Leopardo (poesia, 2001), Romanceiro
de Dona Virgo (contos, 2004), Jardim
de Camaleões, A Poesia Neobarroca na América Latina (2004)
e Figuras Metálicas
(poesia, 2005).
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