A DANÇA DOS CORPOS NA ERA-ECRÃ
Eduardo Jorge
Para se dançar uma escrita além/aquém do papel e do ecrã.
Pensar a poesia no contexto digital é pensar no mínimo dois movimentos que o poema faz há séculos: movimentar-se como rede e trabalhar com uma certa virtualidade do gesto do corpo. Sim, articular-se como uma rede pela própria possibilidade de conectar pessoas pela sua leitura (ativar o poema) e também pela oralidade de milênios, que mesmo com sua matéria transformada resiste ao tempo. Para isso, Octavio Paz nos traz uma reflexão de um entorno, de uma artesania articulada para a matéria do poema:
Nada impede que o poeta se sirva de um computador para escolher e combinar as palavras que hão de compor os seus poemas. O computador não suprime o poeta, como não o suprimem os dicionários de rima nem os tratados de retórica. O poema do computador é o resultado de um procedimento mecânico não sem analogia com as operações mentais e verbais que um cortesão do século XVII precisava realizar para escrever um soneto, ou as de um japonês do mesmo século para compor, com um grupo de amigos, esses poemas coletivos chamados ‘haikai no renga’ (PAZ, 1991, p. 101).
Um ponto que vamos desembocar prosseguindo pela discussão do meio (media) do poema é o tão cansado suporte. As maneiras de fixar o poema no contexto uma cultura digital. E nesse contexto, onde a imagem digital e a informação são dois pontos motivadores da velocidade de consumo, a poesia ainda atua como uma potência de imagem (e aqui não se inclui apenas a poesia visual). A poesia como uma potência de imagem aberta a possibilidades de pensamento. Um pensamento outro. Quando Guattari nos diz que “a poesia, atualmente, talvez tenha mais a nos ensinar do que as ciências econômicas, as ciências humanas e a psicanálise reunidas”, podemos entender a poesia como uma abertura possível para se tencionar a relação entre meios/suportes com o que ambos têm em comum, uma memória. Esse talvez posto pelo autor de Caosmose é muito próprio. É um talvez que elimina um tipo de saber de acúmulos que não interessa à poesia, ao corpo do poema. É um saber cujas regras e formatos próprios das ciências são um peso que dificultam a dança do pensamento que o poema propõe. Ou, para lembrar a pergunta de Jacques Derrida Che cos’è la poesia? (O que é a poesia?), que longe de responder o filósofo franco-argelino propõe um movimento para enganar um “próprio do homem” que é a resposta via linguagem: “Para responder a uma tal questão – em duas palavras, não é? – Pede-se que você saiba renunciar ao saber. E que saiba disso sem jamais se esquecer: desmobilize a cultura, mas não se esqueça nunca, em sua douta ignorância, daquilo que você sacrifica no caminho, atravessando a estrada”.
Com isso, o trânsito da poesia sobrepuja até mesmo o que seria um “suporte”, ignorando se é papel, se é tela, se é corpo. Interessante que ela é assim até em relação ao “sentido”, e isso lhe permite um caráter difícil até mesmo para ser detida como um conhecimento. Como Jean-Luc Nancy, no seu ensaio Resistência da poesia, afirma: “Poesia não tem exatamente um sentido, mas antes o sentido do acesso a um sentido a cada momento ausente, e transferido para longe. O sentido de ‘poesia’ é um sentido sempre por fazer”.
Em um mundo pós-utópico, para lembrar Haroldo de Campos, esse sentido por se fazer da poesia fornece um movimento interessante ao poema. Um não-topos. Um não-lugar. Dar à poesia um lugar determinado é tentar fornecê-la um sentido. Indeterminar o poema, eis o gesto que se deseja fazer da poesia algo com um sentido sempre por se fazer. E esse lugar pode ser inclusive a língua, o corpo. O poema pode sim, para fazer menção a Jacques Derrida, sobre Antonin Artaud, enlouquecer o subjétil. Para a poesia, deixar o subjétil apenas como suporte é praticamente entregar o seu sentido. Papel, computador, muro suportam (e sem se queixar), aceitam e recebem tudo, tal qual um receptáculo universal.
Voltando ao corpo, existe um gesto que indiferencia corpo e letra: a escrita. E nesse sentido por que não pensar a escrita como uma coreografia. Ao associar a escrita à dança, colocamos em comum o gesto do desenhar a letra, ou rememorar a fundição de uma letra no trabalho manual dos tipógrafos (que não está longe do mundo da informática), virtualizado na era ecrã. Como não se lembrar de um trabalho de tal desenvoltura da composição de corpos de letras. A fundição de letras de diversos corpos, energia a qual herdamos, na linguagem que ainda usamos: o corpo do tipo.
Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra, afirmou uma vez Roland Barthes. A letra como um corpo significante contraditório, em uma aparência simples, insinua-se por toda a parte. E a poesia pode ser uma maneira de não domar esse corpo.
E é por isso que a escrita como uma coreografia de corpos, para lembrar um poeta que tanto amava a dança, Stéphane Mallarmé, que trouxe uma coreografia de tipos como uma partitura, como Un coup des dés (Um lance de dados jamais abolirá o acaso, para lembrar a transcriação de Haroldo de Campos), trazido à tona em 1897. A escrita para se firmar, prevalece ainda a lição de Mallarmé, precisa de vazios, de brancos, um silêncio em volta para mencionar a precisão do poeta quanto a sua proposta. A escrita esburaca o espaço tal como o corpo do bailarino. Um poema com o sentido para se construir é um poema com vácuos e buracos porque só assim podemos ensaiar um movimento de sentidos do poema que não cessa. Que arda em seu movimento tal como a bailarina Atiké presente do diálogo de Paul Valéry, A alma e dança. Por isso que o poeta pode se articular na escrita como em um bailarino. O bailarino esburaca o espaço comum abrindo-o até o infinito. Infinito este pertencente ao movimento dançado – não só continua para além do seu fim, como se abre para aquém do seu começo – pois, como ainda habitamos o movimento, mesmo no repouso, como se não soubéssemos quando vai iniciar o movimento. É nesse momento que ao se indiferenciar o repouso do movimento dançado que é possível se perguntar sobre uma espécie de origem do poema, tomando uma consciência de corpo: um poema começa na escrita? Quando começa o poema? Longe de querer responder, mas pensar o gesto que grafa, letra a letra, a escrita, torna-se um exercício interessante para se pensar em uma época que se discute um outro lado: a letra e não tanto o seu gesto de escrita. Porque, quando pensamos o gesto da escrita, vamos pensá-la mesmo (a escrita) como uma capacidade para além de sua fixação, seja na língua ou de outra maneira cuja matéria seja tangível. E aqui temos mais uma lição de outro bailarino/coreógrafo, Merce Cunningham, com o qual John Cage, seu maior parceiro, também aprendeu tanto com o gesto da dança. O coreógrafo Merce Cunningham, que conseguiu negar radicalmente as formas miméticas sem rejeitar a forma do movimento. Cunningham utiliza formas esvaziadas de conteúdo expressivo e significante, além do fato de que seus traços gerais coreográficos como a introdução do acaso na coreografia e a decomposição das seqüências orgânicas dos movimentos desmultiplicam as articulações tradicionais. Cunningham foi tão longe na importância concedida ao acaso que acontecia de os bailarinos não tomarem conhecimento da partitura musical a não ser no dia de estréia de um espetáculo. Uma outra questão interessante para discutirmos a partir desse ponto é o fato de Merce Cunningham pôr diversas linguagens em não-relação com a dança, criando no espaço séries divergentes. A não-relação com as coisas pode ser uma maneira interessante de se pensar o poema em seu sentido por se fazer, em uma época na qual se insiste em afirmar um discurso unívoco da convergência.
Em vias de acessar o poema
Dentro da era informacional, na verdade, pensamos que o poema não está se apropriando dos media, muito pelo contrário, são os media que se apropriam dos poemas, pois a poesia não tem uma precisão informacional do relato de um fato cujo sentido imediato possa durar segundos. Com isso, não se está simplesmente remetendo ao poema o simples crédito de uma duração na eternidade (como tantos poetas sonham), mas que ele não está entregue apenas a um tipo de consumo. É lembrando Felix Guattari, na Caosmose, que chegamos a uma subjetividade criadora do poema que, supomos, é atemporal:
Na poesia, a subjetividade criadora, para se destacar, se autonomizar, se finalizar, apossar-se-á, de preferência: 1) do lado sonoro da palavra, de seu aspecto musical; 2) de suas significações materiais com suas nuanças e variantes; 3) de seus aspectos de ligação verbal; 4) de seus aspectos entonativos emocionais e volitivos; 5) do sentimento da atividade verbal do engendramento ativo de um som significante que comporta elementos motores de articulação, de gesto, de mímica, sentimento de um movimento no qual são arrastados o organismo inteiro, a atividade e a alma da palavra em sua unidade concreta (GUATTARI, 1993, p. 26).
Seja na virtualidade da partitura mallarmaica ou na concretude de uma tela de computador, o poema possui uma qualidade de movimento inerente a seu próprio corpo e não mais apenas ao do escritor. E é esse corpo que fica para ser acessado por um sentido. E por isso, dentro de um acesso a um sentido a se construir, que o poema pode se articular como uma rede e como um espaço de memória. E, quando isso acontece, não é por outro modo senão pelo difícil, e sem querer apenas fazer um jogo de palavras, por mais fácil que pareça ser. Quando esse acesso é dificultado, torna-se mais interessante ainda tentar acessá-lo (também como constituição de jogo). É por isso que mais uma vez é interessante observar as considerações de Jean-Luc Nancy:
A poesia é assim a negatividade na qual o acesso se torna naquilo que é: isso que deve ceder, e com esse fim começar por se esquivar, por se recusar. O acesso é difícil, não é uma qualidade acidental, o que significa que a dificuldade faz o acesso. O difícil é o que não se deixa fazer, e é propriamente o que a poesia faz. Ela faz o difícil. Por ser ela a fazê-lo, parece fácil, e é por isso que, desde há muito, a poesia é vista como “coisa ligeira”. Ora não se trata unicamente de uma aparência. A poesia faz a facilidade do difícil, do absolutamente difícil. Na facilidade, a dificuldade cede. Mas isso não significa que ela seja removida (NANCY, 2005, p. 11).
Com um mundo onde a informação está de fácil acesso, a poesia vai por uma contramão, assim como sua capacidade de articular outros sentidos que não só os de aceleração informacionais. Assim, a poesia e suas construções seguem por outro sentido da informação. Ao mesmo tempo em que o acesso aos medias – ou, ampliando mais um pouco, suportes e dispositivos – se tornou mais freqüente, essas possibilidades de usos destes em relação ao poema em si. Pode até ser contraditório quando o predomínio da técnica não estabelece à poesia sua potência, gerando um descompasso entre ambos, como se as escritas não se encontrassem e uma tenta anular a outra, pela ostentação, pelo que possui de novo, no dizer tecnológico. Por exemplo, se pensarmos materialidades distintas como uma câmera de vídeo e um pedaço de papel, embora ambas se articulem como escritas. E assim, como se estivéssemos em um limite da técnica com uma subjetividade criadora, ambas ficam repercutindo uma dentro da outra, em movimento contínuo.
É muito precioso notar esse limite da técnica com uma subjetividade criadora, pois de alguma forma uma outra maneira de fazer política aí se estabelece. Uma política dentro da rede que faz repensar, inclusive, a memória. Em Poesia: uma decisão, de Silvina Rodrigues, publicado na revista Aletria (2003/2004), o argumento em torno da imagem e da memória nasce justamente do fato da memória não ser um depósito:
O facto de as imagens nascerem da memória não significa que a memória seja equivalente a um depósito, um arquivo (“o imaginário”). Pelo contrário, nascem porque a memória é a possibilidade de passar do indecifrável à significação infinita, de transportar as afecções para o campo das interpretações. Isso não se pode confundir com a recordação que nos orienta o agir cotidiano, pois esta é já a conversão da energia criadora em fórmulas que visam uma finalidade prática, fórmulas adequadas aos processos de sobrevivência como simplificação da vida. (RODRIGUES, 2003/ 2004, p. 78).
Em meio a um discurso dentro da era eletrônica, onde o “espaço” da memória é mensurado em gigabites ou até mesmo terabites, virando sinônimo até mesmo de depósito, Silvina Rodrigues entra no ponto de uma outra memória, uma memória como uma operação:
A memória-interpretação-invenção é uma memória carregada de emoção precisamente porque nela se procuram os indícios do que nunca foi vivido; ela não é um produto, mas uma operação, um engendramento de imagens sempre enigmáticas, que detém na capacidade de ilusão a verdadeira força, a força criadora. É o que acontece na “visão” poética, imagem incomensurável porque imagem-aparição, algo como um relâmpago que pelo excesso de luz fulmina, uma exclamação que não se transforma em discurso, mas é nele que persiste, em excesso, expressão do inexprimível (RODRIGUES, 2003/2004, p. 78).
E, quando falamos de memória e imagem como uma operação, essa relação, além de uma virtualidade em si, acontece no próprio corpo. Por isso, pensar nesse movimento da poesia pela rede e pela memória aciona um corpus, para mencionar mais uma vez Jean-Luc Nancy, ao qual é fundamental para o pensamento do poema na sua proposição e articulação de imagens:
O intervalo entre os corpos é o seu ter-lugar em imagens. As imagens não são aparências, ainda menos fantasmas ou alucinações. São o modo como os corpos se oferecem entre si, são a vinda ao mundo, ao bordo, à glória do limite e do fulgor. Um corpo é uma imagem oferecida a outros corpos, todo um corpus de imagens lançadas de corpo em corpo, cores, sombras locais, fragmentos, grãos, aréolas, lúnulas, unhas, pêlos, espumas, lágrimas, dentes, babas, fendas, blocos, línguas, suores, líquidos, veias, penas e alegrias, e eu, e tu (2000, p. 118).
Quando o movimento sucede no intervalo, voltando a escrita da dança e ao dança da escrita.
Com a escrita articulada com a dança em torno de uma certa noção de virtualidade, que o filósofo português José Gil também chama de ficcional, vamos ao intervalo. Ítalo Calvino, em suas Seis propostas para o próximo milênio, inicia pela leveza (entre as outras, a rapidez, a exatidão, a visibilidade e a multiplicidade), que nos ajuda aqui a pensar essa questão do peso na dança e prolongá-la pela escrita:
Se quisesse escolher um símbolo votivo para saudar o novo milênio, escolheria este: o salto ágil e imprevisto do poeta-filósofo que sobreleva o peso do mundo, demonstrando que sua gravidade detém o segredo da leveza, enquanto aquela que muitos julgam ser a vitalidade dos tempos, estrepidante e agressiva, espezinhadora e estrondosa, pertence ao reino da morte, como um cemitério de automóveis enferrujados (2000, p. 24).
A imagem da leveza trazida por Ítalo Calvino é de certa forma uma imagem do movimento dançado se incluirmos, além do poeta-filósofo, o bailarino. Seria essa ficcionalização do peso que o poeta e o bailarino são capazes de trazer consigo ou como prefere chamar José Gil: o virtual do corpo do bailarino. José Gil nos diz que “em suma, há uma multidão de bailarinos virtuais num corpo que, ao dançar, esboça os múltiplos gestos atuais”. E, no poeta, quantos poetas virtuais não existem em um só corpo, quando múltiplos movimentos de escrita podem desembocar na materialidade do poema?
É aqui que pensamos a relação do peso friccional ao ficcional (...), uma vez que o bailarino já não pesa o seu peso verdadeiro, mas alguma coisa como um peso fictício ou virtual, que depende da energia desenvolvida e consumida. Por procurar situações instáveis, desequilibrando-se a partir do equilíbrio apreendido e assim não vivendo o seu peso objetivo, é que o bailarino – com seus dois pesos, real e virtual – constitui uma condição essencial para a dança:
A arte do bailarino consiste assim em construir um máximo de instabilidade, em desarticular as articulações, em segmentar os movimentos, em separar os membros e os órgãos a fim de poder reconstruir um sistema de um equilíbrio infinitamente delicado (GIL, 2005, p. 23).
Assim, a poesia em uma não-relação com a dança e também com o ecrã, para lembrar Merce Cunningham, também constrói um máximo de instabilidade na funcionalidade do mundo. Mesmo que essa funcionalidade seja no acesso a novas tecnologias ou no consumo constituído no espaço informacional. E é entre um sentido sempre em movimento e a potência de encontros que o poema, esteja em qual matéria estiver, como potência, constrói uma alegria tanto para quem o faz como para quem o acessa. E isso, como uma imagem, ou para lembrar Georges Didi-Huberman, como um bater de asas de uma mariposa com uma intensidade fulgurante.
Referências bibliográficas:
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
DERRIDA, Jacques. Enlouquecer o subjétil. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Ateliê/Unesp/Imprensa Oficial: 1998.
_____. Che cos’è la poesia? Trad. Tatiana Rios e Marcos Siscar. In: Points de Suspension. Paris: Galilée, 1992.
GUATTARI, Felix. Caosmose. Trad. Ana Lucia de Oliveira e Lucia Claudia Leão. Rio de Janeiro: 34,1993.
GIL, José. Movimento total. O corpo e a dança. Trad. Miguel Serras Pereira. São Paulo: Iluminuras, 2005.
DIDI-HUBERMAN, Georges. La imagen mariposa. Trad. Juan José Lahuerta. Barcelona: Mudito & Co, 2007.
NANCY, Jean-Luc. Resistência da poesia. Trad. Bruno Duarte. Lisboa: Vendaval, 2005.
_____. Corpus. Trad. Tomás Maia. Lisboa: Veja, 2000.
PAZ, Octavio. Convergências. Ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
RODRIGUES, Silvina. Poesia: uma decisão. In: Aletria. Olhar cabisbaixo: trajetos da visão no século XX. Nº 10/11. p. 72-80. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2003/2004.
SASPORTES, José. Pensar a dança. A reflexão estética de Mallarmé a Cocteau.Portugal: Casa da Moeda, 1983.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. São Paulo: 34, 2005.
VALERY, Paul. A alma e a dança. Trad. Marcelo Coelho. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Notas
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