ESTE TEXTO PODIA CONTINUAR ASSIM:
DERIVAS A PARTIR DE ONDE VAIS, DRAMA-POESIA?,
DE MARIA GABRIELA LLANSOL
Érica Zíngano
“Só nos aproximamos desviando”
Maurice Blanchot
“É a minha própria casa, mas creio que vim fazer uma visita a alguém”
Maria Gabriela Llansol
marco zero,
Este texto podia começar assim, como uma repetição, uma marcação rítmica – foi a primeira ideia que despontou, como um lampejo, e me fez partir para tentar elaborar um desenho de pensamento, de procedimento de composição, a partir de Maria Gabriela Llansol: um texto que pudesse começar e recomeçar, para desenhar no espaço vários começos possíveis, através de enumerações repetitivas, mas sempre diferentes, outros pontos de partida, eternos retornos em diferença, onde, assim, o texto ganharia fôlego para partir outra vez, à deriva, porque a textualidade[i] llansoliana permite uma infinitude de aproximações:
(…) nesta ordem de ler, ler é nunca chegar ao fim de um livro respeitando-lhe a sequência coercitiva das frases, e das páginas. Uma frase, lida destacadamente, aproximada de outra que talvez já lhe correspondesse em silêncio, é uma alma crescendo. Eu não consigo abranger a infinitude do número e da harmonia das almas, nem texto de um verdadeiro livro,
nem a terra de um jardim que se mantém há gerações. (LLANSOL, 2000a, p. 45).
Por conta de outra leitura, o pensamento construindo-se sempre com o pensamento de outrem, a vontade de estabelecer variados começos tropeçou sobre si mesma e não seguiu adiante, porque, “antes de termos começado, já recomeçamos, antes de termos realizado, cismamos”, aponta Maurice Blanchot:
(…) on n’y va jamais d’un point à un autre, on ne part pas d’ici pour aller là; nul point de départ, et nul commencement à la marche. Avant d’avoir commencé, déjà on recommence, avant d’avoir accompli, on ressasse, et cette sorte d’absurdité consistant à revenir sans être jamais parti, ou à commencer par recommencer (BLANCHOT, 2003, p. 131).
Paralelamente à leitura de Blanchot, outra leitura se interpôs ao pensamento – o texto surge do encontro entre dois corpos, corpos inclusive, de escrita, como um efeito, uma reação, desse encontro – lembra Deleuze, a propósito de Espinosa:
Quando um corpo “encontra” outro corpo, uma idéia, outra idéia, tanto acontece que as duas relações se compõem para formar um todo mais potente, quanto que decompõe o outro e destrói a coesão das suas partes. (…) A ordem das causas é então uma ordem de composição e de decomposição de relações que afeta infinitamente toda a natureza. Mas nós, como seres conscientes, recolhemos apenas os efeitos dessas composições e decomposições: sentimos alegria quando um corpo se encontra com o nosso e com ele se compõe; inversamente, sentimos tristeza quando um corpo ou uma idéia ameaçam nossa própria coerência. Encontramo-nos numa tal situação que recolhemos apenas “o que acontece” ao nosso corpo, “o que acontece” à nossa alma, quer dizer, o efeito de um corpo sobre o nosso, o efeito de uma idéia sobre a nossa. (DELEUZE, 2002, p. 25).
Para pensar então o texto como efeito, voltei à textualidade llansoliana, procurando me deixar afetar por ela. Abri Um falcão no punho – Diário I, onde me deparei com a frase: “este texto podia continuar assim:” (LLANSOL, 1998, p. 27). Pensei, em seguida, que não se tratava mais de começar, mas de continuar, e continuar a partir de uma apropriação, uma incorporação. Re-aciono: este texto podia continuar assim: imaginando reações a partir do livro Onde vais, drama-poesia?, publicado em 2000, onde cada nova continuidade, como um novo deslocamento possível, tornaria mais evidente o paradoxo: “se sou, por natureza, um nómada, por que planto árvores e arbustos mal chego a um lugar, e depois desejo levantá-los do jardim, para levar comigo quem tem raízes?” (LLANSOL, 1998, p. 105).
Trópico de capricórnio, latitude 23,439444° Sul
(23° 26 22 de latitude sul)
Este texto podia continuar assim: ao longo do século XX, o romance experienciou – aqui, esta palavra não é empregada à toa, porque, impregnada de sentido, remete ao conceito de experiência, erfahrung, pensado por Walter Benjamin, um conceito que circunscreve sua própria falência ou o esvaziamento de seu sentido: há uma impossibilidade em se continuar a narrar nos tempos de uma reprodutibilidade técnica, uma impossibilidade que culmina na crise das narrativas, já que algum século XX está mais preocupado com a impossibilidade do que com a possibilidade, ou seja, está mais interessado em ressaltar a crise, ao invés de procurar saídas para ela.
Mais uma vez, retomando, deixando subentendida a explicação sobre o conceito benjaminiano: ao longo do século XX, o romance experienciou inúmeras mudanças que foram decisivas para a transformação de diversos paradigmas narrativos. A partir dessas mudanças, que prescindem uma enumeração, já que não serão aprofundadas no texto, é compreensível a ênfase dada ao autor e, por extensão, ao narrador, como também problematizou Adorno.[ii]
Porque este texto continua assim, como “um grande esforço” para compreender uma das questões fundamentais, no âmbito das narrativas, desse retomado e reiterando século XX, o contraponto mais imediato para esse novíssimo século XXI, é que este texto também podia continuar assim:
_______ escrevo,
para que o romance não morra.
Escrevo, para que continue,
mesmo se, para tal, tenha de mudar de forma,
mesmo que se chegue a duvidar se ainda é ele,
mesmo que o faça atravessar territórios desconhecidos,
mesmo que o leve a contemplar paisagens que lhe são tão
difíceis de nomear. (LLANSOL, 1994, p. 116).
Esse trecho de Maria Gabriela Llansol, publicado junto com outros “textos-poética”, interrompendo[iii] a narrativa do livro Lisboaleipzig 1: O encontro inesperado do diverso (1994), foi lido por ela em 1991, na cerimônia de entrega do Grande Prêmio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE), atribuído ao Um beijo dado mais tarde. Mesmo não lhe tendo sido feita pergunta alguma, esse texto parece tentar responder sobre as desavenças do gênero romanesco, já desde muito debatidas, que circunscrevem a crise das narrativas no século passado e que remanescem, em latência, no gesto decisivo de cada novo exercício de escrita. É como se Llansol estivesse ensaiando uma resposta para uma pergunta que não lhe foi feita: – Por que ainda insistes em escrever, se…? Há aqui, nessa pergunta não pronunciada, todo o peso de um século que insiste em não passar. Há aqui, nessa resposta ensaiada em texto, uma tomada de posição para abrir lugar a diferentes paisagens, difíceis de nomear, dando continuidade ao gênero, no novo século que já chegou.
Ao invés de encararmos a crise das narrativas sob a ótica da impossibilidade, talvez seja mais interessante repensá-la pelo seu reverso, apostando em uma continuidade no gesto da escrita, sempre um gesto de decisão, como o faz Llansol, ainda que esse gesto abra para a possibilidade de um risco. É mais interessante reescrever aquela pergunta que não lhe foi feita – por que ainda insistes em escrever, se…? –, apagando-lhe a idéia de uma justificativa, implícita no por que, para assim alargar seu âmbito – já diria Llansol, “escrever é amplificar pouco a pouco” (LLANSOL, 1998, p. 37) – e retomá-la de outra forma, retomá-la como uma pergunta que aposta em um modo de fazer, em um como: – Como narrar sempre, ainda e depois? Uma pergunta sempre em aberto, porque uma inquietação constante, capaz de movimentar e de continuar a escrita, de deslocá-la e de reposicioná-la, mesmo quando a escrita não sabe exatamente para onde vai, porque não interessa mais tanto o fim, mas o processo, também como dúvida, como indagação: Onde vais, drama-poesia?, uma pergunta buscando um lugar, apontando uma direção em que “escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir” (DELEUZE, GUATTARI, 2006, p. 13); porque a pergunta, que possibilita um lugar, movimenta-se como dúvida, procurando, na verdade, uma escrita diferente, apostando em uma outra escrita: “Que escrita quer?, perguntava a rua. Quer esta? E o rosto da jovem metia-nos nos olhos, parecia uma escrita preferível à que praticávamos. Mais louca, mais desprevenida, menos preocupada com o sentido e mais centrada no movimento” (LLANSOL, 2000, p. 31).
O trecho de Llansol, “_______ escrevo, para que o romance não morra”, lido para os intelectuais portugueses, também para o senhor presidente daquela república, há muito incluído em diversos estudos sobre sua Obra, introduz uma das suas principais preocupações – talvez não seja exatamente uma preocupação, mas uma das suas atenções, afinal, os autores não deveriam estar, como disse Sophia de Mello Breiner Andresen, sempre atentos como antenas?[iv] – a questão da textualidade:
É minha convicção que, se puder deslocar o centro nevrálgico do romance, descentrá-lo do humano consumidor de social e de poder, operar uma mutação da narratividade e fazê-la deslizar para a textualidade
um acesso ao novo, ao vivo, ao fulgor,
nos é possível.
Mas que nos pode dar a textualidade que a narratividade já não nos dá (e, a bem dizer, nunca nos deu?).
A textualidade pode dar-nos acesso ao dom poético, de que o exemplo longínquo foi a prática mística. Porque, hoje, o problema não é fundar a liberdade, mas alargar seu âmbito, levá-la até o vivo,
fazer de nós vivos no meio do vivo. (LLANSOL, 1994, p. 120).
Se repito esses trechos, é apenas para sublinhar que Llansol manteve-se muito atenta para várias das questões que perpassaram o século XX – questões que ainda insistem em não passar: ao mudarmos o olhar, encarando a crise das narrativas por um viés positivo, como um momento que pode vir a ser “revelador”, no sentido mesmo de potencializar reviravoltas, presenciar metamorfoses e instaurar mudanças, um momento em que paradigmas são modificados e outros, novos e diferentes, são (re)inventados, somos tentados a ler esse texto de Llansol como uma resposta solta, reflexões sobre a escrita e suas potencialidades – uma tomada de decisão. E sua escrita, consciente e atenta, é marcada por uma vontade em continuar, em ultrapassar impossibilidades. Essa vontade exige, naturalmente, que transformações ocorram, “para que o romance não morra, […] mesmo se, para tal, tenha de mudar de forma”, exige abrir caminho para uma textualidade, exige pôr em xeque a narratividade. Sua escrita identifica os nós, os enlaces deixados por outros autores, também da literatura portuguesa, e a sua vontade é a de remexer nesses lugares amarrados, partir deles para pensar em um como continuar, mas um como que não está ligado somente a uma forma, a uma metamorfose de uma fórmula, mas a um fundo, a questões de fundação e de imaginário: “Queria desfazer o nó que liga, na literatura portuguesa, a água e os seus maiores textos. Mas esse nó é muito forte, um paradigma frontalmente inatacável” (LLANSOL, 1998, p. 32), – a água é, na literatura portuguesa, um leitmotiv que a movimenta por séculos e Llansol parece perceber que é apenas por desvios, e não de frente, que pode atravessar esses nós. Pensando a partir desse desejo de abrir caminhos, de mudar formas e de transformar fórmulas, é que devemos entender o gesto de escrita de Llansol – e há tanta beleza nele quanto em observar metamorfoses.
LESTE-OESTE, EIXO HORIZONTAL
O desejo de mudança não nasce como um aspecto negativo, porque, mesmo que seja uma empreitada forçosa e pesada, essa de rever e de continuar, de escrever para pensar saídas, é possível fazer nascer desse desejo uma escrita em fragmento do lado positivo da vontade, já que o poema, em Onde vais, drama-poesia?, toma corpo em suas mãos assim:
não nasce de uma falta
ou de uma carência,
nem da falta de uma carência. [O poema] Passa como expressão de uma
alegria pura, como um colar que se quebra,
e vê as suas pérolas tilintando a rolar pelo chão da voz,
velozes por partir do lugar onde estavam ligadas por uma força unitiva de grande posse. (LLANSOL, 2000, pp. 17-18).
Espinosa menciona, quando o leio em Daniel Lins, “(…) a alegria é uma arte que extrai toda a idéia de posse e torna-nos, assim, capazes de amar” (ESPINOSA citado porLINS, 2008, p. 57) – aqui, este texto podia continuar de novo, assim: ele iria continuar pensando sobre a forma como a alegria é reescrita, uma alegria muito perto do desejo, mas não do desejo herdado de uma tradição que o entende como o preenchimento de uma falta, porque o poema que Llansol apresenta “não nasce de uma falta”, nasce de um desejo próximo da alegria que é capaz de esvaziar o sujeito para o amor, sem posse, “porque libertar-se da posse é o seu movimento” (LLANSOL, 2000, p. 18). A alegria desejada por Llansol aproxima-se da que escreveu Clarice Lispector, em Água viva, que surge metamorfoseando essa tradição da falta: “(…) é com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica” (LISPECTOR, 1990, p. 13).
Para chegar à despossessão, “um colar que se quebra”, pela alegria, sem deixar de lembrar o ensaio “Teoria da des-possessão”,[v] de Silvina Rodrigues Lopes, e também para “fugir à mediocridade da autobiografia” (LLANSOL, 2000, p. 18) é que Llansol escreve de forma tão não convencional – já que é preciso mudar a forma, para que não morra – uma espécie de “autobiografia às avessas”, uma desconstrução por dentro do gênero autobiográfico para se desvencilhar da voz unívoca e uníssona da autora/leitora Maria Gabriela Llansol.
Chamo de “autobiografia às avessas” seu drama-poesia, porque há, nesse livro, um flerte com a estrutura do gênero encarregado de contar a história da vida daquele que narra a si próprio – e me pergunto: esse flerte, não seria também para transformar o gênero, por dentro, em alguma outra coisa diferente do que já estamos habituados? Philippe Lejeune propôs uma definição para o gênero autobiográfico, contemplando qualquer “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade.” (LEJEUNE, 2008, p. 14). Essa definição, concebida a partir de relações estabelecidas entre o romance, a biografia e a autobiografia, concerne a um corpus literário restrito e pré-estabelecido, “(…) um período de dois séculos (desde 1770) e só diz respeito à literatura européia” (LEJEUNE, 2008, p. 13). Apesar de possuir deficiências teóricas,[vi] por exemplo, a não inclusão de textos poéticos como possíveis autobiografias, essa definição apresentou-se como um marco para os estudos da escrita de si, ao tentar sistematizar uma importante discussão, indicando a necessidade de se elaborar um instrumental teórico específico para a análise da produção literária de textos de caráter autobiográfico.
Logo no começo de Onde vais, drama-poesia?, lemos a voz da narradora – Maria Gabriela Llansol – autobiografando-se: “_______eu nasci em 1931, no decurso da leitura silenciosa de um poema” (LLANSOL, 2000, p. 11), já que realmente 1931 é o ano em que nasceu. Esse nascimento em escrita grafa a passagem de Llansol, como linguagem, para o mundo fulgural das palavras, e uma linguagem que, mesmo nova, que está nascendo, nasce antecedida por outras, porque se dá durante a leitura silenciosa de um poema, enquanto acontece uma ação de ler – antes, o mundo já existia. Quer dizer, o nascer em escrita não se estabelece como um começo, mas uma continuidade, justamente por acontecer durante uma leitura seu nascimento em linguagem continuaria então uma ideia de linhagem, que se enlaça em uma comunidade dos afetos de leitura de Llansol, já que a legência,[vii] o ato da leitura na textualidade, está ligada pelo afeto, mais uma ligação, além da alegria, que amplifica Espinosa.[viii] Nesse nascimento, Llansol transforma-se em figura[ix] da sua própria paisagem textual, passando a ser um ser de escrita.
Se, logo no início, há uma identificação imediata entre a narradora e a matéria narrativa, essa identificação começa a ser desvencilhada pela própria narradora, ao elaborar um interessante jogo em que o foco narrativo varia da 1ª pessoa do singular (EU) para a 3ª pessoa do singular (ELA) – uma tentativa de se grafar como um OUTRO pelo distanciamento:
Tenho esse foco de luz libidinal aceso sobre o lugar onde estou a escrever. Os lençóis enrodilharam-se, e ouço a cabeceira da cama batendo, na trepidação com que escrevo sobre o caderno. A imagem que me deixa a mulher que está a escrever é a de um traço amplo e veloz a captar o poema que passa rápido. Impossível dizer-lhe que espere, que não consigo escrever à sua velocidade, que se repita ou volte a dizer (quando, de facto, nada diz) o que estava a dizer. Passa é o seu facto fundamental.
Mergulho em quem não me espera. Ignoro se me vê a escrever, deixo-me inundar de puro luar libidinal. (LLANSOL, 2000, p. 17).
E depois, oscilando entre criança e rapariga, a narradora põe em dúvida, nem afirmando, tampouco negando, o elo que a ligaria ao narrado:
ia o poema por um caminho
e uma criança apanhou um balão que era o seu espaço mental. Era eu? Era outra criança? O quarto onde eu vivia era, de facto, permeável ao jardim, à floresta e aos aspectos técnicos da nostalgia. A nostalgia escolhe, de preferência, os crepúsculos matinais, os instantes em que se conclui o trabalho e os passeios vespertinos por jardins que ainda não nos conhecem.
A criança tinha na mão um copo
onde brilhavam os reflexos e os raios deitados pela gravidade da cabeça. Ria constantemente, e o seu riso era o percurso iluminativo do poema. Eu não temia.
Queria traçar uma vida que fosse minha (LLANSOL, 2000, p. 20).
A rapariga recuou
e, durante muito tempo, tive a nostalgia do poema
imaginando que, por imaturidade minha, o perdera para não perder a voz sabendo, todavia, que, sem ele, a voz não teria companhia. (LLANSOL, 2000, p. 23).
As tentativas de distanciamento que perpassam essa “autobiografia às avessas”, provocando uma transformação por dentro da estrutura do gênero, justamente para “fugir à mediocridade da autobiografia” (LLANSOL, 2000, p. 18), começam a assinalar que, se alguma autobiografia é escrita em Onde vais, drama-poesia?, se há alguém que nasce de fato, esse alguém é a grafia da bios do poema, da própria vida de um poema sem-eu:
Se vim para acompanhar a voz,
irei procurá-la em qualquer lugar que fale,
montanha,
campo raso,
praça da cidade,
prega do céu _____ conhecer o Drama-Poesia desta arte. Sentir como bate, num latido, na minha mão fechada. Como ao entardecer, solta, tantas vezes, um grito súbito: – Poema […] me deixe absorver, me deixe evoluir para pobre e me torne, ao seu lado, uma espécie de poema sem-eu.
Em silêncio e cega,
deixo que me dispa da claridade penetrante,
da claridade nova,
da claridade sem falha,
da claridade densa,
da claridade pensada,
me torne um fragmento completo e sem resto
para que passem a clorofila e a sombra da árvore. Assim, rea-
lizando eu própria um texto (LLANSOL, 2000, p. 13).
O que seria aparentemente a autobiografia de Llansol transforma-se numa autobiografia para a autora “despossuir-se” de si mesma, com o nascimento de uma escrita poética que abdica de uma noção de autoria ensimesmada, já que é o nascimento de um poema sem-eu que passa a ser grafado pelas mãos de Llansol e de outros autores, os seus afetos de leituras de uma vida, convidados por ela para participarem da cena de criação em escrita do poema sem-eu, do nascimento da imagem do poema, no Aestheticum Convivium.
Essas outras pulsões de escrita, que são chamadas e reunidas por Llansol para conviverem juntas no Aestheticum Convivium, fazem parte da sua biblioteca de leituras íntimas: Emily Dickinson, Robert Musil, Fernando Pessoa, como Aossê,[x] Rainer Maria Rilke, Friedrich Hölderlin e Arthur Rimbaud são os autores, figuras que passam a conviver na textualidade do drama-poesia. Muitos desses autores,[xi] e tantos outros também, já estiveram presentes em outros livros da imensa paisagem de escrita de Maria Gabriela Llansol: Fernando Pessoa, como Aossê, em Um falcão no punho (LLANSOL, 1998) e em Lisboaliepzig 1 e 2 (LLANSOL, 1994, respectivamente), onde se encontra com Johann Sebastian Bach; Hölderlin em Hölder, de Hölderlin (LLANSOL, 1993); além de Rilke, Rimbaud e Dickinson integrarem o rol dos autores traduzidos por Llansol[xii] – sendo que a tradução de Dickinson é a única assinada por um pseudônimo, o de Ana Fontes.
Afinal, poderíamos perguntar: – Como nasce um poema? E parece ser essa a questão que Llansol lança, como um desafio, desfocando da sua autobiografia, do seu nascimento como figura em escrita no decorrer de uma leitura, para alargar ou amplificar, “escrever é amplificar pouco a pouco” (LLANSOL, 1998, p. 37), a noção do gênero autobiográfico, problematizando-a e transformando-a para escapar da sua mediocridade. Maria Gabriela Llansol não grafa o que seria o curso comum dos fatos de sua vida, ao contrário de Bernardo Soares, que faz dessa ausência de fatos a matéria do Livro do desassossego, uma “autobiografia sem factos”, onde a questão autobiográfica também pode ser amplificada por se tratar de uma facetas ficcionais de Fernando Pessoa. A questão implícita que Llansol tenta responder, compartilhando-a com outras vozes poéticas é: – A partir de uma imagem erótica e fugaz, que poema nasce grafado coletivamente? Na verdade, não seria apenas como nasce um poema, mas como pode nascer um poema sem-eu.
SAÍDA PELA ESQUERDA
Novamente, este texto podia continuar assim: seguindo a vibração luminosa da cena fulgor[xiii] do poema sem-eu, contíguo à clorofila, já que ela é “a primeira matéria do poema” (LLANSOL, 2000, p. 12), uma substância primeva em que não há metáfora, pois “na clorofila não há metáfora” (LLANSOL, 2000, p. 12). É bonito perceber no gesto de Maria Gabriela Llansol o vínculo fortíssimo que finca a escrita à natureza, ao expandir o poema a partir da clorofila: seu gesto é uma tentativa permanente de suspender a hierarquia do humano, de não praticar a sua “monocultura” (LLANSOL, 2000, p. 211), ao nos fazer perceber vivos no meio do vivo. Em sua escrita, a natureza é tão viva quanto o homem e não aparece como um cenário ou um mero pano de fundo, a paisagem é um espaço penetrável e penetrante, não apenas figurativo, mas da ordem do fulgurativo, que propulsiona fulgor: a paisagem é o terceiro sexo e introduz a noção de amor ímpar. Por essa vontade de suspensão da hierarquia do humano, fazem parte da sua textualidade distintas figuras de diferentes reinos, como Prunus Triloba, uma árvore, do reino vegetal, e do reino animal o Cão Jade, dentre tantas e tantas outras figuras, por si só fulgurantes, próprias do fulgor, dispersas em sua geografia de livros.[xiv] Também fica clara a ideia de que deve ser dissociado do poema qualquer gesto que o ligue a uma representatividade, pois, se na clorofila não há metáfora, é porque a escrita de Llansol não se quer como representativa, nos fazendo lembrar do projeto poético do mestre Alberto Caeiro, que se aproxima de um grau zero, uma tentativa de esvaziamento da representatividade da linguagem.
É no Aestheticum Convivium onde “surgem as paisagens” (LLANSOL, 2000, p. 27), também paisagens de escritas, já que cada autor reunido na comunidade imaginária de Llansol aponta para um lugar possível de linguagem, cada um traz consigo seus horizontes de escrita. É nesse lugar de um Convívio Estético onde ela partilha a escrita, literalmente parte/quebra/fragmenta, ao reparti-la com os outros autores, atuantes/combatentes em seu drama-poesia, verdadeiros poetas-testemunhas. Ao reuni-los, Llansol não mimetiza/representa as grafias de seus hóspedes, mas (trans)cria[xv] como cada um deles se posicionaria diante do surgimento da vibração da escrita, da imagem poética, a partir do imaginário de cada um, no encontro possível pela grafia:
Não sabe onde pôr as mãos. Hesita em deixá-las cair na imagem. A renda até meio das pernas, e cobrindo a parte inferior do rosto, textualiza o corpo que assim se torna chispa em torno do seu sexo de ler. O animal gata
está posta a seu lado para suscitar o aberto, o redondo, o macio e o branco. Reparem nas patas levantadas. No final, Rilke tira-lhe o olhar que acha baixo e cruel. Só quero que o meu olhar a veja, diz,
quero vê-la a escorrer por entre uma possibilidade de pensamento e toque ascensional.
Descobrirá sua inocência, diz-lhe Dickinson. (LLANSOL, 2000, p. 27).
Nessa passagem que traz Rilke, por exemplo, podemos escutar o eco das Elegias de duíno, onde há a aparição do aberto na oitava elegia: “Com todos os olhos a criatura/ vê o Aberto. Só os nossos olhos,/ como que invertidos, são armadilhas postas/ à volta de sua livre saída.” (RILKE, 1993, p. 133). Essa nova linguagem, grafada no encontro de diversas autorias é, na verdade, uma possibilidade que Llansol propõe de desfocar a narração autobiográfica de um autor/leitor, ao se grafar dentro do texto, quando nasce como figura, uma continuidade de uma linhagem de vários afetos, esticando o fio, em linguagem, dos caminhos que esses autores, agora figuras da sua textualidade, deixaram abertos, chamando-os ao texto para a criação de um poema sem-eu.
Assim, Llansol reescreve a noção de autoria: a escrita de si, autobiográfica e fragmentária, passa a ser uma escrita atravessada pela escrita de outros – múltiplas vozes poéticas que passam a compor uma comunidade de afetos, e, como ela diz, “é esta a minha retribuição de escritora viva” (LLANSOL, 2000, p. 38). Este texto podia continuar assim: pensando em como Llansol (re)trabalha a herança deixada por esses autores, ligados pela sua mão em uma comunidade estética imaginária, onde eles são espécies de mensageiros da escrita, que “já vieram, e ainda não foram recebidos” pela nossa cultura (LLANSOL, 2000, p. 204), porque todos eles, cada um a seu modo, pontuaram, em suas poéticas, a questão do EU. Este texto também podia continuar assim: pensando no fio deixado por Fernando Pessoa e suas múltiplas máscaras poéticas, sua multidão solitária de vozes, já que Aossê, Fernando Pessoa ao inverso, é uma das figuras mais presentes na textualidade de Maria Gabriela Llansol.
Ao mesmo tempo em que esse jogo de escrita pela comunidade abre para uma dissipação do EU nos OUTROS, paradoxalmente ele também afirma um EU-autor, porque Llansol passa a escrever com esses autores, ao lado deles, na convivência com uma multiplicidade de vozes, quer dizer, ela abre um lugar para si mesma na linha da Literatura, já que é junto com eles que ela escreve. Esse lugar também diz de um movimento da História da Literatura: todos eles, antes da legitimação canônica, foram mal lidos, mal compreendidos e mal interpretados, todos eles precisaram do tempo para se firmarem na linha movente do cânone. Talvez, isso seja menos relevante na proposta de desaparecimento de Llansol, quando ela abre espaço na vibração de escrita para o NÓS:
Não somos nem homens, nem mulheres. [A imagem] Não sabe, aliás, o rosto que temos ou se temos rosto. Pressente, certamente, que somos a ponta precursora
de um instrumento de registo. E sorri para a objectiva na esperança de cumplicidade.
Sorrimos, e surgem três [imagens].
Em duas entramos. Numa, ficamos de fora. E nessa escolha, descobrimos as duas janelas geminadas e o lençol onde deitamos a nossa potência de existir. Com a luz que vem das janelas as cobrimos. Somos uníssonos no gesto. A cama está aberta, diz Dickinson. (LLANSOL, 2000, p. 28).
Esse NÓS, “uníssono no gesto”, aproxima-se do ser qualquer, “o ser que vem é o ser qualquer” (AGAMBEN, 1993, p. 11), da Comunidade que vem, de Giorgio Agamben, porque sem rosto, logo sem identidade; aproxima-se também do ninguém, pensando por Dickinson:
II
I’m Nobody! Who are you?
Are you – Nobody – Too?
Then there’s a pair of us?
Don’t tell! they advertise – you know!
How dreary – to be – Somebody!
How public – like a Frog –
To tell one’s name – the livelong June –
To an admiring Bog![xvi]
(c.1861) (DICKINSON, 2008, p. 40).
Essa assimilação/absorção e (trans)criação do OUTRO acontece com muita naturalidade na escrita llansoliana, revelando, na verdade, um vasto tempo de convívio entre eles e a autora/leitora Maria Gabriela Llansol, através do sexo de ler:
Há sexo envolvido? Há ____ respondo, a quem imagina a pujança sob essa forma de prazer. Mas, para o poema, não há.
Não há, então, sexo envolvido? Há. Para o poema é inconcebível não haver um corpo humano que não o suporte. Essa é, diria, a sua conjectura. (LLANSOL, 2000, p. 17).
Reescrevendo a questão já colocada por Espinosa com relação ao corpo,[xvii] “ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode o corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém, até o presente, o que, considerado apenas corporal pelas leis da Natureza, o corpo pode fazer e o que não pode fazer” (ESPINOSA, 1983, p. 178), Llansol também situa a questão do sexo de ler em Um jogo da liberdade de alma, um livro escrito em paralelo[xviii] ao Onde vais, drama-poesia?:
Ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode um Sexo de Ler,
onde começa realmente a gestação de uma visão, e como a visão mesmo
rápida, é toda ela imagens em decomposição,
algures, uma luz explodiu no Sexo de Ler,
mas quando essa luz decai,
decai-nos apenas em imagens
(não diz Spinoza que, da Natureza, sob qualquer atributo que seja considerada, se segue uma infinidade de coisas?_____ apenas acontece, meu amor, que a Natureza nunca ninguém a viu). (LLANSOL, 2003, pp. 71-72).
O vínculo com esses autores é propositadamente pensado através do corpo, de uma escrita-erótica do corpo, porque, “quase todos eles ignoraram em vida, o que era um corpo”:
Dizem-me “Não te inquietes!” e, plenos de humor irónico e benevolente pedem-me que lhes fale da invisibilidade de Parasceve, do luar libidinal
e da alegria do amor difuso. “Como é possível que o poema não toque na voz? Como é possível que esta não saia de um corpo? Como é possível que este não se vista libidinalmente para o receber?” “Libidinalmente?”,
pergunta um. E é a minha vez de sorrir porque quase todos eles ignoraram em vida, o que era um corpo.
Quase todos eles homens, perpassa entre nós um ténue colorido amoroso e sensual;
quando, na realidade, é grande o mistério da sensualidade do poema.
Como apelativo é o grão da voz;
como soberano é o corpo nas suas transparências e no seu porte. (LLANSOL, 2000, p. 26).
E uma erótica desvencilhada de tesão, mas não do desejo:
O poema é sem tesão e pleno de desejo. Mas sem o desejo de se pôr em mim ou sequer de me fazer.
Pleno de desejo? Sim, é o que mais deseja. Encontrar o corpo que, enfim, o escreva nesta voz. O texto.
[…] Um poema que procura um corpo sem-eu, e um eu que quer ser reconhecido como seu escrevente. Pelo menos. Esse o ente criado em torno do qual silenciosamente gira toda a criação. (LLANSOL, 2000, p. 18).
Aqui, este texto podia continuar de novo, assim: pensando que a comunidade imaginária de afetos está a “mover-se pela casa como num texto” (LLANSOL, 2000, p. 24), em uma Casa que também “era a gramática daquela língua” (LLANSOL, 2000, p. 22), o dialelo, o espaço de elo das ligações afetivas, o espaço onde as corpo-grafias encontram-se:
Abro-vos a Casa numa interrogação.
A Casa é esta _____________ lugar e corpo dividido, onde meu
corpo se interroga,
reunindo os fragmentos das coisas_____________coisa é
uma janela,
a noite,
a descida rápida da temperatura húmida,
um carro que parte em frente do portão,
os lugares à volta e as suas tardes de festa em dias de verão,
o momento seguinte do silêncio,
o que nasce de nós
perto, em redor e tão longe. (LLANSOL, 2000, p. 82).
Para pensar esse lugar dos encontros, muitas entradas são possíveis, desde a sugerida por Jorge Fernandes da Silveira, um colecionador de casas portuguesas, em que a Casa seria a escrita discursiva da casa-nação histórica:
Partindo do pressuposto de que a literatura, ao invés de ser um documento social, é uma forma de representação textual da sociedade, opto por uma pesquisa que investigue as reflexões em torno da casa portuguesa, entendida agora como uma construção discursiva que pensa o modo português de fixar-se na terra natal. Interesso-me, numa palavra, por casas de escrita. [...] Apuro [nesta pesquisa] o foco de leitura, já apontado para a questão da identidade nacional. Baseando-me em considerações de Eduardo Lourenço e Boaventura de Sousa Santos, entre outros, procuro saber com que linguagem o português manifesta a “vontade” de escrever a Nação. (SILVEIRA, 1999, pp. 14-15).
Até a Casa de Barthes ou a de Derrida, em que ela seria o lugar onde podem ser lidas as questões trazidas pela convivência e pelo acolhimento. Por exemplo, na de Barthes, a tônica é dada aos idiorritmos, os ritmos individuais de cada “habitante” (BARTHES, 2003). Cada autor, com sua grafia própria, compartilha seu ritmo de escrita, direciona o olhar para um ponto e focaliza questões particulares, a partir de seus próprios imaginários. Na Casa de Derrida, a tônica é dada para a hospitalidade, pensada a partir do olhar do estrangeiro:
(…) a hospitalidade absoluta exige que eu abra a minha casa e não apenas ofereça ao estrangeiro (provido de um nome de família, de um estatuto social de estrangeiro, etc.), mas ao outro absoluto, desconhecido, anônimo, que eu lhe ceda lugar, que eu o deixe vir, que o deixe chegar, e ter um lugar no lugar, que ofereço a ele, sem exigir dele nem reciprocidade (a entrada num pacto), nem mesmo seu nome. (DERRIDA, 2003, pp. 23-25).
Ou seja, na de Derrida, o importante é “ceder lugar ao lugar”, abrir espaço ao ksénos, ao estrangeiro, o outro absoluto, aquele que traz a diferença, de costumes, de língua, para construir uma “hospitalidade do amor”. É bonito perceber como Derrida coloca a questão, porque, em Llansol, a Casa é construída pelos afetos de leitura: o poema nasce do sexo de ler, onde escrevente e legente encontram-se, ao exercitarem e se excitarem na avidez da leitura, quando as escritas compartilham imaginários de desejos.
DESCAMPADO
Aqui, de novo, este texto podia continuar assim: este texto continuaria tentando prestar atenção nos movimentos do livro – para onde segues, direcionas, onde vais? –, porque, nesse drama-poesia, talvez seja mais importante observar os movimentos, as linhas de fuga, as vacilações e as respirações do livro, do que propriamente tentar seguir fatos e ações em torno dos quais o livro se organizaria. É necessário prestar atenção na noite que se abre pelas páginas e no movimento do dia que envolve as figuras, já que, como aponta Deleuze:
Num livro, como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentariedade, estratos, territorialidades, mas também há linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação. As velocidades comparadas de escoamento, conforme estas linhas, acarretam fenômenos de retardamento relativo, de viscosidade ou, ao contrário, de precipitação e ruptura. Tudo isto, as linhas e as velocidades mensuráveis, constitui um agenciamento. Um livro é um tal agenciamento, e, como tal, inatribuível. É uma multiplicidade – mas não se sabe ainda o que o múltiplo implica, quando ele deixa de ser atribuído, quer dizer, quando é elevado ao estado de substantivo. (DELEUZE, 2006, pp. 11-12).
Então, este texto podia continuar de novo, assim: tentando acompanhar, à deriva, o pensamento em movência que desliza no livro: – Qual sonho de livro é, a partir dele, por ele mesmo sonhado? Qual projeto de livro é, a partir dele, por ele mesmo projetado?
A escrita, como pensamento de escrita, vislumbra um lugar de futuro, um lugar onde o livro, como um projeto, projeta um sonho, um espaço porvir para uma comunidade imaginária, onde o EU fala sempre em conjunto com outras vozes autorais, já pronunciadas no ciclo dos tempos. Se Fernando Pessoa, Aossê, inventou, como projeto literário, uma multiplicidade de vozes onde a sua própria seria uma a mais dentre todas as outras, Llansol percebeu que:
De novo, este texto podia continuar aqui, assim, podia continuar perguntando:– Para onde vais, drama-poesia?
FORÇA DA GRAVIDADE, 10.000 pés de altitude
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NOTAS:
[i] Os termos-conceitos em negrito ao longo do texto pertencem à textualidade llansoliana e foram desenvolvidos pela autora como parte da revisão conceitual que empreende em sua Obra. O significado do termo em questão será explicitado mais adiante no texto por trechos da própria autora.
[iv] “A Poesia pede-me... que viva atenta como uma antena”. (ANDRESEN, 1996, p. 95).
[v] Neste ensaio, Silvina Rodrigues Lopes aponta para a escrita de um eu-passagem, não mais absoluto, que se inscreve no texto com “o direito de perder-se. Perder-se é devir anônimo. Perder-se do saber, das convenções. Tresmalhando-se, entrar na comunidade dos textos” (LOPES, 1988, p. 25), já que Llansol escreve, em A restante vida (1983), na “plena posse das suas faculdades de leitura” e são essas leituras que, incorporadas pela textulidade llansoliana como outras vozes, constituem o jogo da alteridade no drama-poesia.
[vi] Essas deficiências foram reelaboradas ao longo do percurso intelectual de Lejeune, em Moi aussi, “Le pacte autobiographique (bis)” (1986) e em Signes de la vie – Le pacte autobiographique 2, “Le pacte autobiographique, vingt-et-cinq ans après” (2005).
[vii] Na Obra de Llansol, a leitura configura-se como uma das questões centrais. Por conta da extensão do artigo, não me detenho nessa questão, que é desenvolvida pela crítica Maria Etelvina Santos. Cf.: SANTOS, 2008.
[viii] “Por afecções entendo as afecções do corpo, pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as idéias dessas afecções” (ESPINOSA, 1983, p. 176).
[ix] Cf.: O que é figura? – Diálogos sobre a Obra de Maria Gabriela Llansol na Casa da Saudação. Org. João Barrento. Lisboa: Mariposa Azual, 2009.
[x] É interessante perceber a metamorfose a que as figuras são submetidas na textualidade Llansol: quando Fernando Pessoa é chamado ao texto, ele passa a habitá-lo como um outro, diferente de si mesmo, já uma mutação. Essa mutação é grafada no nome, que se inverte. Muitas outras personalidades históricas, quando entram para o interior da textualidade também sofrem essas transmutações no nome, eternos retornos em diferença, como é o caso do Luís de Camões, Comuns etc.
[xi] A lista das figuras-afetos é grande, mas há uma espécie de unidade marginal que a envolve: “Este projecto de escrita, absolutamente singular no campo literário, tem tido as suas correspondências no domínio do pensamento, daquele pensamento que, até nas formas de escrita que adopta, é o mais marginal em relação aos mainstreams da racionalidade e da sistematicidade: penso nomeadamente em Nietzsche, Ernst Bloch ou Walter Benjamin. Com eles, Maria Gabriela Llansol poderia repetir o que se lê em Causa Amante: ‘Por direito, nós herdamos as margens.’” (BARRENTO, 2005, p. 14).
[xii] “Maria Gabriela Llansol, que traz à casa, não apenas da língua, mas mais do seu próprio texto, poemas de autores de língua francesa. […] Trata-se, em qualquer dos casos, daquilo que teremos de chamar de ‘poéticas de autor’ no mais exacto sentido do termo, e das práticas de escrita que se alimentam – como toda tradução, mas nestes casos com nuances particulares – da leitura de outros: num caso, para com eles testar os limites da língua, criando espaços que são ‘baldios da língua portuguesa’ (Herberto Helder), no outro para com eles alargar o leque figural do texto próprio, transformando cada poema traduzido em mais uma fala dos respectivos autores, agora figuras transplantadas para uma ampla comunidade textual (caso de Llansol, de cuja Obra muito dos autores traduzidos/ in-corporados são já figuras: Teresa de Lisieux, Rilke, Rimbaud, Dickinson).” (BARRENTO, 2005a, p. 9). Cf.: DICKINSON, 1995; RILKE, 1996 e RIMBAUD, 1998.
[xiii] O fulgor é da ordem do brilho, do resplendor, de um enorme clarão, de uma irradiação de uma grande luz. Essas cenas brilhantes são o acontecimento da escrita em Llansol e são vistas por ela como nós construtivos, onde as figuras, que não são obrigatoriamente pessoas, mas módulos, contornos, delineamentos, acontecem em escrita: uma frase, um animal ou uma quimera podem ser nós construtivos. Essas cenas também podem ser entendidas como anéis, onde há o laço, uma união. (Cf.: Llansol, 1998, p. 130). Talvez precisássemos apenas perceber que há uma luz muito intensa que atravessa o texto, que nos permite ver claro assim como a Fernando Pessoa. É possível que essa luminosidade, nos cegue à princípio, como quando saímos de um lugar muito luminoso e, de súbito, adentramos num recinto fechado.
[xiv] Muitas dessas figuras cruzaram realmente a vida de Maria Gabriela Llansol: o Cão Jade foi um cão que teve, Prunus Trilobafoi uma árvore que plantou. Outras, como personalidades históricas e/ou literárias fazem parte das leituras da autora.
[xv] O termo transcriação foi cunhado por Haroldo de Campo para dizer sobre o ato tradutório. Reutilizo-o aqui para pensar, como uma primeira hipótese, sobre a natureza desse encontro de imagens e grafias no drama-poesia. Além disso, Llansol chegou a traduzir, de fato, alguns dos poetas presentes no Aestheticum Convivium, Rilke, Rimbaud, Dickinson. Essa (trans)criação de linguagens em Llansol também pode ser compreendida como a sobreimpressão praticada por ela desde seus primeiros livros: “Leio um texto e vou-o cobrindo com o meu próprio texto que esboço no alto da página mas que projecta a sua sombra escrita sobre toda a mancha do livro. Esta sobreposição textual tem por fonte os olhos, parece-me que um fino pano flutua entre os olhos e a mão acaba cobrindo como uma rede, uma nuvem, o já escrito. O meu texto é completamente transparente e percebo a topografia das primeiras palavras. Concentro-me em São João da Cruz quando o texto fala em Friedrich N.” (LLANSOL, 1977, p. 65).
[xvi] A tradução, por Augusto de Campos: “Não sou Ninguém! Quem é você?/ Ninguém – Também?/ Então somos um par?/ Não conte! Pode espalhar!// Que triste – ser – Alguém!/ Que pública – a Fama – / Dizer seu nome – como a Rã – / Para as palmas da Lama!”(DICKINSON, 2008, p. 41).
[xvii] “Espinosa propõe aos filósofos um novo modelo: o corpo. Propõe-lhes instituir o corpo como modelo: ‘Não sabemos o que pode o corpo…’ Esta declaração de ignorância é uma provocação: falamos da consciência e de seus decretos, da vontade e de seus efeitos, dos meios de mover o corpo, de dominar o corpo e as paixões – mas nós nem sequer sabemos de que é capaz um corpo. (ÉTICA, III, 2, ESCÓLIO). Porque não sabemos, tagarelamos. Como dirá Nietzsche, espantamo-nos diante da consciência, mas ‘o que surpreende é, acima de tudo, o corpo…’.” (DELEUZE, 2002, p. 23-24).
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Érica Zíngano é poeta e mestranda em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP).
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