O que
se espera de um poeta no trato com a língua tem por
base uma ação imprescindível: tornar
exuberante o uso adulterado das palavras, senão modificá-lo,
renová-lo permanentemente para que a linguagem nos
atinja única e certeira em sua singularidade.
A poesia
de Horácio Costa, há muito atenta a isso,
faz do artifício a mola de recriação
crítica desses objetos comuns, as palavras do mundo,
e o mundo, como se aqui houvesse outro afora o da imaginação,
a pedra de toque de seu pandemônio ou algo parecido
com que anima as operações idiossincrásicas
da poesia.
Numa primeira
distinção genérica, a propósito
da especificidade do poético, dir-se-ia que o mais
antigo dos gêneros se engendra com palavras, imagens
e outras representações para essencialmente
renegá-las por um princípio de contradição
imanente. Há poéticas que contrariam as configurações
do mundo, sua realidade acachapante, seus consensos e tramas,
sua arrogância, sua mediocridade, em formas que jamais
se cristalizam. Daí os vários procedimentos
poéticos que, lúcidos de si mesmos, demovem
nas operações internas da linguagem as peças
simbólicas, afetivas ou ornamentais cuja empreitada
irá reconfigurar nosso olhar a respeito de nós
mesmos e das coisas. Para tanto, os poetas mobilizam figuras
diversas (metáforas, metonímias, hipérboles,
alegorias...) a serviço desse intento não
raras vezes perverso, pois, segundo um preceito de René
Char, "quem não vem ao mundo para perturbar
não merece respeito nem paciência".
Talvez
na base dessa perturbação haja um princípio
que parece ter ganho visibilidade com a poesia de Rimbaud.
Trata-se de um desejo de resgate de uma totalidade a qualquer
custo. Georges Bataille assim o identifica e formula: "Somos
seres descontínuos, indivíduos que morrem
isoladamente numa aventura ininteligível, mas temos
a nostalgia da continuidade perdida". Nosso erotismo
nasce desse processo angustiante. Rimbaud é aquele
que para Bataille assinala o sonho da fusão entre
seres descontínuos em seu célebre poema "A
eternidade", no qual o enfant terrible proclama o instante
de seu resgate na imagem do mar que se funde com o sol poente,
imagem a um só tempo fugidia e imóvel. A poesia,
diz Bataille, assim como o erotismo, nos leva à morte
e, através dela, à continuidade.
Tal desejo
de fusão ressurge animado numa alegoria de Quadragésimo,
este livro singular de Horácio Costa, alegoria de
que se falará logo mais. Momento revelador de uma
poética que se propaga exatamente em nome da consciência
de sua descontinuidade já perceptível em Satori
e em The Very Short Stories, e que depois recorre ao fragmento
em O Livro dos Fracta, para dar relevo às diversas
matizes do homem contemporâneo face à linguagem
e a si mesmo. Este homem que a poesia mostra descontínuo,
desconexo, fracionado, efeito de sentido como tantos outros,
nevoento e sem sujeito, homem sem rosto num mundo cada vez
mais turvo e imerso na indistinção absoluta.
Mas o que cabe ao poeta (e que o qualifica como tal) é
justamente sua capacidade em acender pontos luminosos nas
linhas dessa desaparição. Algo que desde o
início, em 28 Poemas / 6 Contos, já se anuncia
na disposição de recriar o mundo através
da linguagem causando certo estranhamento no olhar que passa
a enxergar tudo de viés, o mundo deformado e refeito
à exorbitância, eis o modo pelo qual este autor
modifica nossa maneira habitual de lidar com a matéria
poética. O poema amaneirado, mais prosa que verso,
seu apelo à narrativa, à história,
prosa travestida de verso, estilizada ao extremo, verso
de enxertos prosaicos, gênero ambivalente, promíscuo,
volúvel, só para indicar seu propósito
com a espada desembainhada em plena luz do dia onde a língua
escancara suas intenções bizarras e operações
internas, como o médico legista de Rembrandt em sua
aula de anatomia a que acorremos agora mesmo junto à
mesa de dissecação desse objeto intricado,
sanguinolento, cheio de nervos e dobras: o poema.
Frente
à questão do gênero, por sinal, Horácio
Costa responde com a ironia da forma que se quebra e pluraliza.
O que faz de um poema poesia? Não apenas, certamente,
sua montagem versificada, seu recorte vertical em seqüência
no espaço entre indefectíveis margens brancas.
Nem tampouco o conjunto retórico tradicionalmente
demarcado que se arrasta pelos séculos. Quem sabe
a especificidade do próprio texto que se debate no
confronto dos gêneros, no atrito entre as frases,
na inverossimilhança, na ambivalência, no pugilismo
das antíteses, enfim, na crise deflagrada no interior
da língua, instigando o poeta a refazer sua voz na
intransigência, para em seguida alardeá-la
aos quatro ventos? É que o rasto deixado por Costa
é similar ao do médico legista, pois ele remexe
a carne e os ossos da linguagem até encontrar seu
elemento essencial para a partir dele recompor o corpo,
enfeixando-o sob novas ataduras, mas mantendo as cicatrizes
e linhas de junções inesperadas à maneira
de um Frankenstein inusitado que se diverte com a ciência
fazendo dela seu brinquedo lúcido, perverso, remontando
os elementos para, quem sabe, entendê-los melhor e
expô-los à luz da lógica ambivalente
do Poema.
"o
ser é descontínuo", lê-se em A
Mulher de Lot, este belo texto de Quadragésimo sobre
a descontinuidade do ser que a poesia quer totalizante e
imantado de eternidade para além dos fatos e mitos.
A literatura, diz Gilles Deleuze, é um modo de interpretar
os mitos que não mais compreendemos no momento em
que não podemos mais sonhá-los e reproduzi-los.
Não será também esse um modo de revivê-los?
O poema
de Horácio Costa (ele próprio descontínuo,
recortado sobre o branco) versa sobre a impotência
humana, seus limites, mas também sobre as possibilidades
irradiantes do sonho. Nele se diz que "nenhuma frase
é inteira / no espaço" e que "no
rio onde vivem os caranguejos / o lodo é eminentemente
descontínuo"; que o ser não tem palavras"
e a única contínua é a mulher de Lot,
porque de certo modo coloca o olhar na direção
do impossível, simplesmente porque "quer ver".
No relato
bíblico, Lot, alertado pelos anjos, escapa da destruição
da cidade com sua família, mas sua mulher, ignorando
a ordem dos mensageiros celestes, olha para trás,
tornando-se instantaneamente uma estátua de sal.
Nesse olhar transgressor está a ponte que reata o
ser à continuidade perdida. Só a transgressão,
arrastando a lei consigo, atinge o impossível. Ela
vê o que não se pode ver com olhos descontínuos,
talhados pela dimensão limítrofe da existência
que não tem como prosseguir. Ela vê o que ninguém
vê e nesse gesto desastroso completa o ser à
custa da própria vida. O que ela vê sem poder
é a vontade divina cumprindo-se sobre Sodoma e Gomorra
em chuva de enxofre e fogo do céu. O que ela vê,
enfim, num rasgo de eternidade, é vedado aos seres
de sua laia, toda a espécie humana.
Na alegoria
de Horácio Costa, a mulher de Lot é a própria
poesia buscando a continuidade do ser, movendo-se em espaços
descontínuos, ela, a poesia, transformada no sal
das palavras, o que dela fica, em grãos, em cinzas,
pois "sua palavra era de sal / e era um cinzeiro".
E dirigindo se ao leitor também descontínuo,
o poeta finaliza : "tuas palavras são minhas
/ e as minhas são de sal". Resta em nossos olhos
a turvação desmedida desse gesto insensato,
por isso poético, pulverizado em letras salinas,
cujo vislumbre primordial, como um relâmpago, não
se pôde deter, clarão tornado sombra, enigma,
rastro negro de linguagem.
Os seres
são descontínuos e só podem aspirar
à continuidade através do erotismo e da poesia.
A face mais sensível da descontinuidade é
a morte. É em torno dela que gira e se aproxima por
meio de metáforas, metonímias, paralelismos,
alegorias, o livro de Horácio Costa. A morte, dir
se-ia, é o revestimento interno dos poemas e por
vezes, tal como ocorre nas alegorias, seu sentido velado
vem à tona.
Quadragésimo,
em seu próprio título, aliás, alude
à marcação do tempo, sua passagem pelo
corpo, assinalando um ciclo, os quarenta anos do poeta,
no ritual inexorável das calendas. Esse título
emblemático, que na edição brasileira
se ostenta verticalmente em coluna paralela à do
nome do autor, ambas separadas por uma risca de giz (a linha
da vida, se gostamos de especulações), dois
marcos que rasgam o tempo e são por ele feridos.
Assim, não é à toa que a primeira parte
da obra se intitula Aniversários. O subtítulo
em espanhol, Cumpleaños, na edição
mexicana de estréia, em versão bilíngüe,
ressalta com mais vigor ainda a passagem do tempo, dado
a literalidade da expressão, como que a sublinhar
seus efeitos. Quarenta é o dobro de vinte, que para
o poeta representa muito pouco (ou muito, conforme o ângulo
pelo qual se olha), pois "duas décadas não
são nada". A metade da vida do poeta (pouco
mais idoso que Dante "no meio da jornada dessa vida"),
no entanto, "é a média de vida do homem
primitivo" e "do escravo romano". É
também em sua contrafação antropocêntrica
"a idade de um cão muito velho", e na visão
estética, de viés decadente, "é
a média de glória de um artista maior",
ou ainda, retomando o rastro semântico da degenerescência,
"o tempo sem celulite de uma cortesã".
Em suma: se vinte anos "não são nada",
a soma de mais vinte fazem um poeta cismar com a morte e
cair no oportunismo dos fantasmas giratórios.
Tal fantasmagoria
fulgura em Quadragésimo. Evidenciam-na amiúde
peças inteiras: Marat, Minos Agoniza, Musa em Cancún,
Obituário, Cemitério de Tabapuã, História
Natural, Morrer às Margens do Sena, além das
mencionadas. Em Obituário, o poeta constata que "Morrem
poucas mulheres na minha família", e que "Depois
de tantos mortos, ainda a morte / me aterroriza. Por isto
visto-me para ela". Ele será "o único
sobrinho / a usar terno e gravata no cemitério."
Isto porque vestir-se para a morte é figurar o modus
operandi da criação poética. Não
é o que no fundo os poetas fazem com as palavras?
Cobrir a nudez dos signos para realçá-los
pela singularidade?
O tom
cerimonioso do texto indica o tratamento que terá
o tema da morte ao longo de todo o livro. Este topos, aliás,
ganha ainda relevo na poética de Costa por sua natureza
imagética, sua tendência à fanopéia.
Ele próprio parece dar uma explicação
para isso num dos relatos relâmpagos de The Very Short
Stories, intitulado Conversa na Catedral: "O problema
foi ter visto tantas reproduções com tão
pouca idade, repito; agora é tarde demais."
Tarde demais para abandonar as imagens. É a partir
delas que o universo de Horácio Costa toma forma
nos jorros verbais de uma poética eminentemente icônica.
Em diversos
textos de sua obra as reproduções artísticas
(óleos, gravuras, afrescos, esculturas) servem de
referência à descrição poética
que quase sempre as adultera num jogo de estilhaçamento
infinito, efeito sobre efeito, fazendo o leitor girar sobre
o eixo de sucessão das imagens até quase perder
de vista a referencialidade. Assim, em O Retrato de Dom
Luís de Gôngora, de Satori, o bardo ressurge
com "cara de vampiro, nariz boxeado pela vida".
A imagem, simulacro do homem ilustre, é repintada
pelo poeta, à sua moda, na medida em que " (...)
Dom Luís, para mim está posando", (...)
"por fora Hyde, por dentro tão menino",
nesse efeito de anamorfose que atormentando a reprodução
(de resto já torturada) que tem sob os olhos, deforma-a
como um rosto num espelho circense, estirando o reflexo
ao extremo até torná-lo outra persona, esdrúxula,
horrenda, prenhe de sentidos, nesse procedimento metafórico
e alegórico (a alegoria, como versam os manuais de
retórica, não é mais que uma metáfora
continuada): Dom Luís então se torna a imagem
viva de sua própria metamorfose (o poema revelando
sua técnica) num cruzamento disparatado de figuras
de outras cartas literárias: "Dom Luís,
para mim está posando, / pré-kafkiana barata
insigne vai de ante em ante-sala". E aqui se ajusta
perfeitamente o epíteto tão bem cunhado por
Severo Sarduy para o poeta Horácio Costa, "um
Arcimboldi Textual". Sim, porque estamos diante de
procedimentos similares aos do grande pintor alegórico,
Giuseppe Arcimboldi (ou Arcimboldo), nas montagens verbais
dos poemas em que referentes distintos se agrupam em ornamentos
não raras vezes maneiristas para reforçar
a figura compósita central do texto, alegoria adensada
por hipertrofia no agenciamento das imagens. A alegoria,
definida como "a coerção exercida sobre
o leitor para que ele não se atenha ao sentido primeiro
das palavras que lê, mas que lhes procure uma significação
segunda" (Tzvetan Todorov, Os gêneros do discurso.
Tradução de Elisa Angotti Kossovitch. São
Paulo, Martins Fontes, 1980, p. 110.)
A alegoria
é a metáfora que se teatraliza, que vive de
sua cena, de seu jogo de simulação interna.
Daí o encantamento do olhar com o sentido que se
revela por trás de outro, que no entanto se conserva
subjacente à maneira de um corpo que se mostra ainda
mais sedutor sob o véu diáfano.
Foi dito
que o caráter icônico da poesia de Horácio
Costa hiperboliza o sentido da morte. É como se esse
sentido de uma forma ou de outra acabasse sempre ressaltado
por um pincel luminoso. O leitor depara em Marat com uma
minuciosa descrição da cena em que o revolucionário
francês jaz assassinado (ou pouco antes disso, em
seqüência cinematográfica de cortantes
fotogramas verbais) na qual "O grande espelho ajustável
/ reflete de frente a banheira de esmalte, / feita sob medida
para o corpo que a ocupa; /seus pés torneados e a
cabeceira / que se inclina numa curva suave / imitam a ondulação
da silhueta / de aristocráticos cisnes degolados.
/ Afunda-o nela banha-se Marat."
Mestre do intertexto, Horácio Costa permuta referências
diversas e desse entrelaçamento, cujo resultado é
sempre gramaticalmente suntuoso, extrai belos efeitos, por
vezes cômicos, grotescos, mas com freqüência
radiantes, tal o uso da metonímia em Ela novela,
onde "o fogão branco groelândia emoldura
a peruca castanha", e "o voluntarioso ríctus
de boca de quem deixou cair o saco do / supermercado Colonial
Poultry Farms". Tais figuras são seres disformes
que escancaram ao máximo o sentido cuja flexibilidade
aumenta no agenciamento de outros elementos em curso no
texto. A metonímia, por sua natureza contígua,
é apropriadamente a figura da continuidade. Mas,
de certo modo, todos os tropos dependem da continuidade
para exercitar suas naturezas levando a expressão
ao limite.
Dizer
que a morte ronda Quadragésimo (e seu autor quadragenário),
não parece um bom termo. O fato lingüístico
considerável é que ela é a base de
um enxerto como a terra remexida entre ossos e farrapos.
A morte é a razão endógena dos poemas,
despontando em imagens que no fundo constituem sua máscara
alegórica: "Aquela senhora sorridente / com
chapéu de plumas de avestruz / é a morte."
("México, 1978").
Se a mulher
de Lot é aquela que diz "quero ver" e com
esse olhar transgressor restabelece a continuidade do ser,
sendo por isso transmudada em estátua de sal, o sujeito
poético de Musa em Cancún é aquele
que clama: "Quero olhar o sol e não posso".
Ele encontra-se em Cancún, "Estendido sobre
a manhã absoluta / Entre hotel e mar aberto, sobre
a areia / Branca." Cancún, o "paraíso"
do turismo internacional deslocado ironicamente para o contexto
do poema. É nessa praia estilizada que ele se defronta
com seu "óbvio limite": "Uma palmeira
a menos / no paraíso das férias bastaria /
Para atingir a perfeição e habitá-la".
Uma palmeira a menos, ele diz, como quem, livre de toda
carência, presencia o absoluto. Seu limite por enquanto
é o sol que não pode ver sob o risco de cegar-se,
quem sabe transformando-se numa atônita estátua
de areia. A natureza evocada no poema vai aos poucos revelando
a imobilidade do sujeito emaranhado em papos de aranha,
"Aranha em sua teia art-nouveau". Ele arrisca
com os olhos, pois tudo em cena se irradia a partir do sentido
da visão que produz o cenário que vê
ou alucina. "Eu teria / que mover-me, se quisesse olhar
e ver", o que indica o quanto o ser depende da construção
do poema da qual participa enquanto objeto imóvel
e paradoxalmente transitório, pois constatar sua
imobilidade é também deslocar-se na leitura.
Ele quer ver, mas precisa mover-se. Quer ver, "E a
folha impede, retícula que opaca / Plantada contra
o azul, a visão pura".
Na realidade
a folha da palmeira é um elemento que está
a mais na cena e estorva a paisagem, como se a boa visão
fosse vítima de seu próprio apetite hiperbólico.
Mas a visão pura, no grau zero da percepção,
revela esse desejo de ver às últimas conseqüências
o instante em que as coisas se formam, correspondendo à
gênese do poema, o instante em que as sombras revoltas
ganham luminosidade nas artimanhas do poeta. Daí
a aproximação fenomenológica dos objetos,
o desejo em tocar com os olhos, o mais simbólico
dos sentidos, o senso mágico: tocar com os olhos
é o mesmo que recobrar a nudez essencial das coisas,
flagrando seu esboço em estado bruto, de pré-coisa,
para enfim conhecer "A razão dessa palmeira"
e sua derivação genérica, para enfim
classificá-la (e cobri-la de novo) na ficha simulada
do poema exibida ao leitor como uma sentença de morte
ou etiqueta colada ao corpo cadavérico: "Família:
/ Monocotiledônia. Origem: / Quaternário (de
novo o "4", algarismo persecutório). /
Sinônimo: palmácea". Isso porque o movimento
do ser descontínuo se perde precisamente nesse itinerário
que vai do arremedo ontológico ao impulso taxiológico
com que inevitavelmente o poeta assina seu atestado de óbito.
É nesse giro que o sujeito se esvai em sal ou areia.
Ao criador só resta o desamparo, a constatação
sombria de que algo inapreensível penetra o reino
das palavras inflando-as como um vento contrário;
mas assim que vibram prenhes de sentido, de entusiasmo (um
Deus dentro de si), o vento as abandona e elas tombam inertes
como folhas mortas. O poeta sabe que um olhar avesso, o
olhar do outro (o leitor) deverá insuflar-lhes vida
numa nova leitura, porque é essa a dinâmica
que vivifica os poemas e talvez restabeleça o elo
perdido entre seres díspares, aqui semelhantes, irmãos
e cúmplices. Numa analogia simples, o leitor está
para o poeta como o filho para o pai que o engendra; se
a obra perde sua identidade, neutralizada pela morte do
sujeito que nela se dissolve no instante da criação,
cabe ao leitor reconhecer-lhe a filiação,
ainda que tal gesto possa levá-lo ao assassínio
do pai. Não é esse gesto ambivalente que move
a leitura e a crítica?
O pior
na criação é quando o castelo se desfaz
e a areia informe devolve o gesto do poeta ao nada: branco
rasurado. É preciso livrar-se dessa corrente, pois
"Desta palmeira o vento rouba os filhos". Enfim,
o poeta chama a atenção do leitor: "Observai:
os nós estão cobertos de areia / E nos desafiam
como uma escritura". Estamos diante de uma paisagem
cifrada. Há um código no ar que se decifrado
poderá libertar a visão do poeta: "Esta
palmeira, / Que mensagem me reserva?" A mensagem, cuja
decifração final só cabe ao leitor,
encerra a morte do poeta (e o segredo do poema). A esta
altura, é preciso que se diga: Musa em Cancún
é um texto construído com duas cenas que correm
paralelas e que se espelham como dois seres dessemelhantes
cujas imagens distorcidas a princípio se chocam mas
depois revelam pontos de contato. À página
esquerda, em caracteres redondos, opera-se a descrição
do sujeito na praia que não pode ver o sol e cuja
visão sofre a interferência de uma folha de
palmeira. À direita, em itálico, evoca-se
uma reprodução da célebre pintura de
Rembrandt, A aula de Anatomia do Doutor Tulp. O paralelismo
é surpreendente, embora ofuscante. Tanto a figura
do sujeito da praia, quanto os "discretos cavalheiros
de escuro" do quadro estão diante de algo que
pede decifração. A imagem da folha da palmeira
corresponde, na cena de Rembrandt, à parte em relevo
do cadáver, "cujo braço esquerdo dissecado
/ Como uma harpa exibe os próprios nervos".
As nervuras da folha e do braço são textos
que se complementam (tal um corpo e seu reflexo) ao serem
decifrados. Mas, como num espelho, as imagens estão
invertidas. O cadáver, porque seu estudo tem o intuito
de revelar a vida e seu funcionamento: "a circulação
do sangue, / A disposição dos músculos
e nervos, / A transformação dos humores do
corpo / Em energia vital". A palmeira, porque desobstruindo
a paisagem levará o sujeito lírico a constatar
sua própria morte, quer pela cegueira do sol, quer
pela satisfação desse desejo de certo modo
suicida de que "(...) desapareça agora / Minha
atadura fina à vida humana". No extremo, esta
fina atadura não será a própria pele
do poema, a pele que esconde e agora nos revela, a um só
tempo, a morte do poeta, a vida do poema?
O cadáver
do retrato de Rembrandt é luminoso "como o açúcar
/ Branco" e se destaca porque inicia uma fase na produção
do artista e da tradição dos retratos holandeses
na qual interessa elucidar a psicologia dos personagens
e não agraciar a vaidade dos retratados. Quanto mais
expressividade se obtinha com as figuras melhor. Por isso
estes personagens parecem tão vivos e suas figuras
tão enfáticas, cada qual concentrada em sua
particularidade expressiva. E como o poeta constata, nem
todos fitam atentamente o cadáver nas mãos
do mestre. Apenas um dos estudantes acompanha seriamente
a operação, talvez o único que realmente
pode "ver". Os demais, à maneira do narrador
lírico na praia de Cancún, não ousam
olhar. Este porque poderá cegar-se, ou porque a palmeira
o impede; aqueles porque estão diante de uma "visão
terrível". Por isso olham o vazio. Evidentemente
as duas operações do olhar (ou sua hesitação)
nos dois cenários comportam perspectivas distintas.
A lógica da ciência, seguindo seu desejo imanente,
é chegar ao osso das coisas, num procedimento que
retalha as partes para descrevê-las à exaustão,
pois o corpo deve ser despojado de si mesmo até o
vazio absoluto por meio dessa dissecação que
o conhecimento processa fazendo valer para todos os efeitos,
no século de Rembrandt, o sonho da racionalidade
empírica.
O viés
do poeta é bem outro: ele retalha sim as palavras,
mas o encaixe se faz à contraluz de seu gesto, impedindo-o
de seguir com objetividade um plano traçado, pois
ele invariavelmente acaba sendo levado pelas "exigências"
do fluxo verbal que toma forma a seus olhos: "Palavra
ao léu, poesia decapitada". Num certo sentido
quem acaba sendo "dissecado" na operação
é mais o olhar do poeta que seu texto. De nada adianta
conhecer o nome "científico" da palmeira,
sua "família" ou "origem", pois
os obstáculos do poema são de outra ordem.
Em si mesma, a palmeira, tal como as palavras, está
morta "como se em formol imersa" e seu sentido
essencial lhe escapa, para renascer nas entrelinhas do poema.
Na mesa de dissecação do poeta, seu objeto
chega a apresentar-lhe tal profusão de dobras que
seu trabalho parece interminável, pois o poema, esse
corpo singular que disseca, vez por outra escapa da luminosidade,
refugiando-se novamente entre as sombras. "Dissecar"
seu corpo, por isso, não elimina sua natureza dissimulante.
Pelo contrário: o poeta recupera-lhe a fulguração
oculta à deriva, num golpe brusco de sentido como
um osso pontudo que viesse a perfurar-lhe os olhos. Afinal,
o intento da poesia é "afirmar a incessante
produção / De si mesma, com o único
fim de deslocar / Para fora do cenário que domina
/ Aquilo que seu fluxo perturba, aquilo / Que a reduz e
aniquila e a si a obriga / Contemplar-se sob um manto de
ironia". Quanto mais se despe, mais roupa se acumula
sobre o corpo.
Assim,
o poeta despe as coisas com uma mão e as recobre
com a outra: a nudez dos sentidos sob véu alegórico.
Este texto notável de Horácio Costa é
um poema sobre a visão e sua impossibilidade, seus
sonhos e limites. É também um ensaio de desnudamento
das operações secretas da linguagem e que
assim fazendo amplia os horizontes da poesia, colocando
o leitor diante de seu futuro. Mas qual é o futuro
da poesia? Na descrição da aula de anatomia,
o Doutor Tulp sabe exatamente até onde pode ir. Ele
é senhor de sua visão. Ao final do poema surge
na praia uma musa inesperada que finalmente faz o poeta
olhar de frente. Ela personifica a beleza. Ela é
a Musa, sua razão criadora. Talvez esta figura esteja
querendo nos mostrar de algum modo que ao olhá-la
todos nós (o sujeito do poema, o poeta e o leitor)
possamos vislumbrar um efeito de fusão inesperada,
como se a demonstrar que quanto mais nítida nossa
percepção da morte, na literatura, maior é
seu impacto de beleza. É certo que a sensação
dura pouco, pois temos que mergulhar novamente em nossos
afazeres cotidianos. Algo, no entanto, parece perdurar além
dessa impressão mediante a qual por alguns instantes
a poesia nos faz crer que o sonho da continuidade é
possível. Talvez seja esse elemento insólito
a melhor constatação da necessidade dos poemas
e que nos anima a continuar a lê-los. De leituras
assim saímos ao menos com a certeza de que o impossível
é sempre um modo de olhar o mundo e a nós
mesmos como possibilidades reveladoras de tudo o que de
fato não possuímos, e que talvez guardem no
âmago algumas respostas melhores a nossas desilusões
corriqueiras.
Sabemos
que a olhos nus não devemos fixar o sol. Mas o poema
pode. Ou sua máscara. Somos seres descontínuos.
Mas devemos contrariar as regras. E como a mulher de Lot
ousar ver além de nossos limites. Talvez assim as
coisas possam ser diferentes. O poeta, inspirado pela Musa,
afinal, viu. "E o sol era branco, redondo, e queimava."
*
Leia também
poemas
de Horácio Costa.
*
Contador Borges,
poeta, tradutor e ensaísta, nasceu em São Paulo (SP), em
1954. Publicou os livros de poemas Angelolatria
(1997) e O Reino da Pele (2003), traduções de Sade
e Char, entre outros títulos.