ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A ESCRITA ALEGÓRICA DE HORÁCIO COSTA

 

Contador Borges

 

O que se espera de um poeta no trato com a língua tem por base uma ação imprescindível: tornar exuberante o uso adulterado das palavras, senão modificá-lo, renová-lo permanentemente para que a linguagem nos atinja única e certeira em sua singularidade.

A poesia de Horácio Costa, há muito atenta a isso, faz do artifício a mola de recriação crítica desses objetos comuns, as palavras do mundo, e o mundo, como se aqui houvesse outro afora o da imaginação, a pedra de toque de seu pandemônio ou algo parecido com que anima as operações idiossincrásicas da poesia.

Numa primeira distinção genérica, a propósito da especificidade do poético, dir-se-ia que o mais antigo dos gêneros se engendra com palavras, imagens e outras representações para essencialmente renegá-las por um princípio de contradição imanente. Há poéticas que contrariam as configurações do mundo, sua realidade acachapante, seus consensos e tramas, sua arrogância, sua mediocridade, em formas que jamais se cristalizam. Daí os vários procedimentos poéticos que, lúcidos de si mesmos, demovem nas operações internas da linguagem as peças simbólicas, afetivas ou ornamentais cuja empreitada irá reconfigurar nosso olhar a respeito de nós mesmos e das coisas. Para tanto, os poetas mobilizam figuras diversas (metáforas, metonímias, hipérboles, alegorias...) a serviço desse intento não raras vezes perverso, pois, segundo um preceito de René Char, "quem não vem ao mundo para perturbar não merece respeito nem paciência".

Talvez na base dessa perturbação haja um princípio que parece ter ganho visibilidade com a poesia de Rimbaud. Trata-se de um desejo de resgate de uma totalidade a qualquer custo. Georges Bataille assim o identifica e formula: "Somos seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente numa aventura ininteligível, mas temos a nostalgia da continuidade perdida". Nosso erotismo nasce desse processo angustiante. Rimbaud é aquele que para Bataille assinala o sonho da fusão entre seres descontínuos em seu célebre poema "A eternidade", no qual o enfant terrible proclama o instante de seu resgate na imagem do mar que se funde com o sol poente, imagem a um só tempo fugidia e imóvel. A poesia, diz Bataille, assim como o erotismo, nos leva à morte e, através dela, à continuidade.

Tal desejo de fusão ressurge animado numa alegoria de Quadragésimo, este livro singular de Horácio Costa, alegoria de que se falará logo mais. Momento revelador de uma poética que se propaga exatamente em nome da consciência de sua descontinuidade já perceptível em Satori e em The Very Short Stories, e que depois recorre ao fragmento em O Livro dos Fracta, para dar relevo às diversas matizes do homem contemporâneo face à linguagem e a si mesmo. Este homem que a poesia mostra descontínuo, desconexo, fracionado, efeito de sentido como tantos outros, nevoento e sem sujeito, homem sem rosto num mundo cada vez mais turvo e imerso na indistinção absoluta. Mas o que cabe ao poeta (e que o qualifica como tal) é justamente sua capacidade em acender pontos luminosos nas linhas dessa desaparição. Algo que desde o início, em 28 Poemas / 6 Contos, já se anuncia na disposição de recriar o mundo através da linguagem causando certo estranhamento no olhar que passa a enxergar tudo de viés, o mundo deformado e refeito à exorbitância, eis o modo pelo qual este autor modifica nossa maneira habitual de lidar com a matéria poética. O poema amaneirado, mais prosa que verso, seu apelo à narrativa, à história, prosa travestida de verso, estilizada ao extremo, verso de enxertos prosaicos, gênero ambivalente, promíscuo, volúvel, só para indicar seu propósito com a espada desembainhada em plena luz do dia onde a língua escancara suas intenções bizarras e operações internas, como o médico legista de Rembrandt em sua aula de anatomia a que acorremos agora mesmo junto à mesa de dissecação desse objeto intricado, sanguinolento, cheio de nervos e dobras: o poema.

Frente à questão do gênero, por sinal, Horácio Costa responde com a ironia da forma que se quebra e pluraliza. O que faz de um poema poesia? Não apenas, certamente, sua montagem versificada, seu recorte vertical em seqüência no espaço entre indefectíveis margens brancas. Nem tampouco o conjunto retórico tradicionalmente demarcado que se arrasta pelos séculos. Quem sabe a especificidade do próprio texto que se debate no confronto dos gêneros, no atrito entre as frases, na inverossimilhança, na ambivalência, no pugilismo das antíteses, enfim, na crise deflagrada no interior da língua, instigando o poeta a refazer sua voz na intransigência, para em seguida alardeá-la aos quatro ventos? É que o rasto deixado por Costa é similar ao do médico legista, pois ele remexe a carne e os ossos da linguagem até encontrar seu elemento essencial para a partir dele recompor o corpo, enfeixando-o sob novas ataduras, mas mantendo as cicatrizes e linhas de junções inesperadas à maneira de um Frankenstein inusitado que se diverte com a ciência fazendo dela seu brinquedo lúcido, perverso, remontando os elementos para, quem sabe, entendê-los melhor e expô-los à luz da lógica ambivalente do Poema.

"o ser é descontínuo", lê-se em A Mulher de Lot, este belo texto de Quadragésimo sobre a descontinuidade do ser que a poesia quer totalizante e imantado de eternidade para além dos fatos e mitos. A literatura, diz Gilles Deleuze, é um modo de interpretar os mitos que não mais compreendemos no momento em que não podemos mais sonhá-los e reproduzi-los. Não será também esse um modo de revivê-los?

O poema de Horácio Costa (ele próprio descontínuo, recortado sobre o branco) versa sobre a impotência humana, seus limites, mas também sobre as possibilidades irradiantes do sonho. Nele se diz que "nenhuma frase é inteira / no espaço" e que "no rio onde vivem os caranguejos / o lodo é eminentemente descontínuo"; que o ser não tem palavras" e a única contínua é a mulher de Lot, porque de certo modo coloca o olhar na direção do impossível, simplesmente porque "quer ver".

No relato bíblico, Lot, alertado pelos anjos, escapa da destruição da cidade com sua família, mas sua mulher, ignorando a ordem dos mensageiros celestes, olha para trás, tornando-se instantaneamente uma estátua de sal. Nesse olhar transgressor está a ponte que reata o ser à continuidade perdida. Só a transgressão, arrastando a lei consigo, atinge o impossível. Ela vê o que não se pode ver com olhos descontínuos, talhados pela dimensão limítrofe da existência que não tem como prosseguir. Ela vê o que ninguém vê e nesse gesto desastroso completa o ser à custa da própria vida. O que ela vê sem poder é a vontade divina cumprindo-se sobre Sodoma e Gomorra em chuva de enxofre e fogo do céu. O que ela vê, enfim, num rasgo de eternidade, é vedado aos seres de sua laia, toda a espécie humana.

Na alegoria de Horácio Costa, a mulher de Lot é a própria poesia buscando a continuidade do ser, movendo-se em espaços descontínuos, ela, a poesia, transformada no sal das palavras, o que dela fica, em grãos, em cinzas, pois "sua palavra era de sal / e era um cinzeiro". E dirigindo se ao leitor também descontínuo, o poeta finaliza : "tuas palavras são minhas / e as minhas são de sal". Resta em nossos olhos a turvação desmedida desse gesto insensato, por isso poético, pulverizado em letras salinas, cujo vislumbre primordial, como um relâmpago, não se pôde deter, clarão tornado sombra, enigma, rastro negro de linguagem.

Os seres são descontínuos e só podem aspirar à continuidade através do erotismo e da poesia. A face mais sensível da descontinuidade é a morte. É em torno dela que gira e se aproxima por meio de metáforas, metonímias, paralelismos, alegorias, o livro de Horácio Costa. A morte, dir se-ia, é o revestimento interno dos poemas e por vezes, tal como ocorre nas alegorias, seu sentido velado vem à tona.

Quadragésimo, em seu próprio título, aliás, alude à marcação do tempo, sua passagem pelo corpo, assinalando um ciclo, os quarenta anos do poeta, no ritual inexorável das calendas. Esse título emblemático, que na edição brasileira se ostenta verticalmente em coluna paralela à do nome do autor, ambas separadas por uma risca de giz (a linha da vida, se gostamos de especulações), dois marcos que rasgam o tempo e são por ele feridos. Assim, não é à toa que a primeira parte da obra se intitula Aniversários. O subtítulo em espanhol, Cumpleaños, na edição mexicana de estréia, em versão bilíngüe, ressalta com mais vigor ainda a passagem do tempo, dado a literalidade da expressão, como que a sublinhar seus efeitos. Quarenta é o dobro de vinte, que para o poeta representa muito pouco (ou muito, conforme o ângulo pelo qual se olha), pois "duas décadas não são nada". A metade da vida do poeta (pouco mais idoso que Dante "no meio da jornada dessa vida"), no entanto, "é a média de vida do homem primitivo" e "do escravo romano". É também em sua contrafação antropocêntrica "a idade de um cão muito velho", e na visão estética, de viés decadente, "é a média de glória de um artista maior", ou ainda, retomando o rastro semântico da degenerescência, "o tempo sem celulite de uma cortesã". Em suma: se vinte anos "não são nada", a soma de mais vinte fazem um poeta cismar com a morte e cair no oportunismo dos fantasmas giratórios.

Tal fantasmagoria fulgura em Quadragésimo. Evidenciam-na amiúde peças inteiras: Marat, Minos Agoniza, Musa em Cancún, Obituário, Cemitério de Tabapuã, História Natural, Morrer às Margens do Sena, além das mencionadas. Em Obituário, o poeta constata que "Morrem poucas mulheres na minha família", e que "Depois de tantos mortos, ainda a morte / me aterroriza. Por isto visto-me para ela". Ele será "o único sobrinho / a usar terno e gravata no cemitério." Isto porque vestir-se para a morte é figurar o modus operandi da criação poética. Não é o que no fundo os poetas fazem com as palavras? Cobrir a nudez dos signos para realçá-los pela singularidade?

O tom cerimonioso do texto indica o tratamento que terá o tema da morte ao longo de todo o livro. Este topos, aliás, ganha ainda relevo na poética de Costa por sua natureza imagética, sua tendência à fanopéia. Ele próprio parece dar uma explicação para isso num dos relatos relâmpagos de The Very Short Stories, intitulado Conversa na Catedral: "O problema foi ter visto tantas reproduções com tão pouca idade, repito; agora é tarde demais." Tarde demais para abandonar as imagens. É a partir delas que o universo de Horácio Costa toma forma nos jorros verbais de uma poética eminentemente icônica.

Em diversos textos de sua obra as reproduções artísticas (óleos, gravuras, afrescos, esculturas) servem de referência à descrição poética que quase sempre as adultera num jogo de estilhaçamento infinito, efeito sobre efeito, fazendo o leitor girar sobre o eixo de sucessão das imagens até quase perder de vista a referencialidade. Assim, em O Retrato de Dom Luís de Gôngora, de Satori, o bardo ressurge com "cara de vampiro, nariz boxeado pela vida". A imagem, simulacro do homem ilustre, é repintada pelo poeta, à sua moda, na medida em que " (...) Dom Luís, para mim está posando", (...) "por fora Hyde, por dentro tão menino", nesse efeito de anamorfose que atormentando a reprodução (de resto já torturada) que tem sob os olhos, deforma-a como um rosto num espelho circense, estirando o reflexo ao extremo até torná-lo outra persona, esdrúxula, horrenda, prenhe de sentidos, nesse procedimento metafórico e alegórico (a alegoria, como versam os manuais de retórica, não é mais que uma metáfora continuada): Dom Luís então se torna a imagem viva de sua própria metamorfose (o poema revelando sua técnica) num cruzamento disparatado de figuras de outras cartas literárias: "Dom Luís, para mim está posando, / pré-kafkiana barata insigne vai de ante em ante-sala". E aqui se ajusta perfeitamente o epíteto tão bem cunhado por Severo Sarduy para o poeta Horácio Costa, "um Arcimboldi Textual". Sim, porque estamos diante de procedimentos similares aos do grande pintor alegórico, Giuseppe Arcimboldi (ou Arcimboldo), nas montagens verbais dos poemas em que referentes distintos se agrupam em ornamentos não raras vezes maneiristas para reforçar a figura compósita central do texto, alegoria adensada por hipertrofia no agenciamento das imagens. A alegoria, definida como "a coerção exercida sobre o leitor para que ele não se atenha ao sentido primeiro das palavras que lê, mas que lhes procure uma significação segunda" (Tzvetan Todorov, Os gêneros do discurso. Tradução de Elisa Angotti Kossovitch. São Paulo, Martins Fontes, 1980, p. 110.)

A alegoria é a metáfora que se teatraliza, que vive de sua cena, de seu jogo de simulação interna. Daí o encantamento do olhar com o sentido que se revela por trás de outro, que no entanto se conserva subjacente à maneira de um corpo que se mostra ainda mais sedutor sob o véu diáfano.

Foi dito que o caráter icônico da poesia de Horácio Costa hiperboliza o sentido da morte. É como se esse sentido de uma forma ou de outra acabasse sempre ressaltado por um pincel luminoso. O leitor depara em Marat com uma minuciosa descrição da cena em que o revolucionário francês jaz assassinado (ou pouco antes disso, em seqüência cinematográfica de cortantes fotogramas verbais) na qual "O grande espelho ajustável / reflete de frente a banheira de esmalte, / feita sob medida para o corpo que a ocupa; /seus pés torneados e a cabeceira / que se inclina numa curva suave / imitam a ondulação da silhueta / de aristocráticos cisnes degolados. / Afunda-o nela banha-se Marat."

Mestre do intertexto, Horácio Costa permuta referências diversas e desse entrelaçamento, cujo resultado é sempre gramaticalmente suntuoso, extrai belos efeitos, por vezes cômicos, grotescos, mas com freqüência radiantes, tal o uso da metonímia em Ela novela, onde "o fogão branco groelândia emoldura a peruca castanha", e "o voluntarioso ríctus de boca de quem deixou cair o saco do / supermercado Colonial Poultry Farms". Tais figuras são seres disformes que escancaram ao máximo o sentido cuja flexibilidade aumenta no agenciamento de outros elementos em curso no texto. A metonímia, por sua natureza contígua, é apropriadamente a figura da continuidade. Mas, de certo modo, todos os tropos dependem da continuidade para exercitar suas naturezas levando a expressão ao limite.

Dizer que a morte ronda Quadragésimo (e seu autor quadragenário), não parece um bom termo. O fato lingüístico considerável é que ela é a base de um enxerto como a terra remexida entre ossos e farrapos. A morte é a razão endógena dos poemas, despontando em imagens que no fundo constituem sua máscara alegórica: "Aquela senhora sorridente / com chapéu de plumas de avestruz / é a morte." ("México, 1978").

Se a mulher de Lot é aquela que diz "quero ver" e com esse olhar transgressor restabelece a continuidade do ser, sendo por isso transmudada em estátua de sal, o sujeito poético de Musa em Cancún é aquele que clama: "Quero olhar o sol e não posso". Ele encontra-se em Cancún, "Estendido sobre a manhã absoluta / Entre hotel e mar aberto, sobre a areia / Branca." Cancún, o "paraíso" do turismo internacional deslocado ironicamente para o contexto do poema. É nessa praia estilizada que ele se defronta com seu "óbvio limite": "Uma palmeira a menos / no paraíso das férias bastaria / Para atingir a perfeição e habitá-la". Uma palmeira a menos, ele diz, como quem, livre de toda carência, presencia o absoluto. Seu limite por enquanto é o sol que não pode ver sob o risco de cegar-se, quem sabe transformando-se numa atônita estátua de areia. A natureza evocada no poema vai aos poucos revelando a imobilidade do sujeito emaranhado em papos de aranha, "Aranha em sua teia art-nouveau". Ele arrisca com os olhos, pois tudo em cena se irradia a partir do sentido da visão que produz o cenário que vê ou alucina. "Eu teria / que mover-me, se quisesse olhar e ver", o que indica o quanto o ser depende da construção do poema da qual participa enquanto objeto imóvel e paradoxalmente transitório, pois constatar sua imobilidade é também deslocar-se na leitura. Ele quer ver, mas precisa mover-se. Quer ver, "E a folha impede, retícula que opaca / Plantada contra o azul, a visão pura".

Na realidade a folha da palmeira é um elemento que está a mais na cena e estorva a paisagem, como se a boa visão fosse vítima de seu próprio apetite hiperbólico. Mas a visão pura, no grau zero da percepção, revela esse desejo de ver às últimas conseqüências o instante em que as coisas se formam, correspondendo à gênese do poema, o instante em que as sombras revoltas ganham luminosidade nas artimanhas do poeta. Daí a aproximação fenomenológica dos objetos, o desejo em tocar com os olhos, o mais simbólico dos sentidos, o senso mágico: tocar com os olhos é o mesmo que recobrar a nudez essencial das coisas, flagrando seu esboço em estado bruto, de pré-coisa, para enfim conhecer "A razão dessa palmeira" e sua derivação genérica, para enfim classificá-la (e cobri-la de novo) na ficha simulada do poema exibida ao leitor como uma sentença de morte ou etiqueta colada ao corpo cadavérico: "Família: / Monocotiledônia. Origem: / Quaternário (de novo o "4", algarismo persecutório). / Sinônimo: palmácea". Isso porque o movimento do ser descontínuo se perde precisamente nesse itinerário que vai do arremedo ontológico ao impulso taxiológico com que inevitavelmente o poeta assina seu atestado de óbito. É nesse giro que o sujeito se esvai em sal ou areia. Ao criador só resta o desamparo, a constatação sombria de que algo inapreensível penetra o reino das palavras inflando-as como um vento contrário; mas assim que vibram prenhes de sentido, de entusiasmo (um Deus dentro de si), o vento as abandona e elas tombam inertes como folhas mortas. O poeta sabe que um olhar avesso, o olhar do outro (o leitor) deverá insuflar-lhes vida numa nova leitura, porque é essa a dinâmica que vivifica os poemas e talvez restabeleça o elo perdido entre seres díspares, aqui semelhantes, irmãos e cúmplices. Numa analogia simples, o leitor está para o poeta como o filho para o pai que o engendra; se a obra perde sua identidade, neutralizada pela morte do sujeito que nela se dissolve no instante da criação, cabe ao leitor reconhecer-lhe a filiação, ainda que tal gesto possa levá-lo ao assassínio do pai. Não é esse gesto ambivalente que move a leitura e a crítica?

O pior na criação é quando o castelo se desfaz e a areia informe devolve o gesto do poeta ao nada: branco rasurado. É preciso livrar-se dessa corrente, pois "Desta palmeira o vento rouba os filhos". Enfim, o poeta chama a atenção do leitor: "Observai: os nós estão cobertos de areia / E nos desafiam como uma escritura". Estamos diante de uma paisagem cifrada. Há um código no ar que se decifrado poderá libertar a visão do poeta: "Esta palmeira, / Que mensagem me reserva?" A mensagem, cuja decifração final só cabe ao leitor, encerra a morte do poeta (e o segredo do poema). A esta altura, é preciso que se diga: Musa em Cancún é um texto construído com duas cenas que correm paralelas e que se espelham como dois seres dessemelhantes cujas imagens distorcidas a princípio se chocam mas depois revelam pontos de contato. À página esquerda, em caracteres redondos, opera-se a descrição do sujeito na praia que não pode ver o sol e cuja visão sofre a interferência de uma folha de palmeira. À direita, em itálico, evoca-se uma reprodução da célebre pintura de Rembrandt, A aula de Anatomia do Doutor Tulp. O paralelismo é surpreendente, embora ofuscante. Tanto a figura do sujeito da praia, quanto os "discretos cavalheiros de escuro" do quadro estão diante de algo que pede decifração. A imagem da folha da palmeira corresponde, na cena de Rembrandt, à parte em relevo do cadáver, "cujo braço esquerdo dissecado / Como uma harpa exibe os próprios nervos". As nervuras da folha e do braço são textos que se complementam (tal um corpo e seu reflexo) ao serem decifrados. Mas, como num espelho, as imagens estão invertidas. O cadáver, porque seu estudo tem o intuito de revelar a vida e seu funcionamento: "a circulação do sangue, / A disposição dos músculos e nervos, / A transformação dos humores do corpo / Em energia vital". A palmeira, porque desobstruindo a paisagem levará o sujeito lírico a constatar sua própria morte, quer pela cegueira do sol, quer pela satisfação desse desejo de certo modo suicida de que "(...) desapareça agora / Minha atadura fina à vida humana". No extremo, esta fina atadura não será a própria pele do poema, a pele que esconde e agora nos revela, a um só tempo, a morte do poeta, a vida do poema?

O cadáver do retrato de Rembrandt é luminoso "como o açúcar / Branco" e se destaca porque inicia uma fase na produção do artista e da tradição dos retratos holandeses na qual interessa elucidar a psicologia dos personagens e não agraciar a vaidade dos retratados. Quanto mais expressividade se obtinha com as figuras melhor. Por isso estes personagens parecem tão vivos e suas figuras tão enfáticas, cada qual concentrada em sua particularidade expressiva. E como o poeta constata, nem todos fitam atentamente o cadáver nas mãos do mestre. Apenas um dos estudantes acompanha seriamente a operação, talvez o único que realmente pode "ver". Os demais, à maneira do narrador lírico na praia de Cancún, não ousam olhar. Este porque poderá cegar-se, ou porque a palmeira o impede; aqueles porque estão diante de uma "visão terrível". Por isso olham o vazio. Evidentemente as duas operações do olhar (ou sua hesitação) nos dois cenários comportam perspectivas distintas. A lógica da ciência, seguindo seu desejo imanente, é chegar ao osso das coisas, num procedimento que retalha as partes para descrevê-las à exaustão, pois o corpo deve ser despojado de si mesmo até o vazio absoluto por meio dessa dissecação que o conhecimento processa fazendo valer para todos os efeitos, no século de Rembrandt, o sonho da racionalidade empírica.

O viés do poeta é bem outro: ele retalha sim as palavras, mas o encaixe se faz à contraluz de seu gesto, impedindo-o de seguir com objetividade um plano traçado, pois ele invariavelmente acaba sendo levado pelas "exigências" do fluxo verbal que toma forma a seus olhos: "Palavra ao léu, poesia decapitada". Num certo sentido quem acaba sendo "dissecado" na operação é mais o olhar do poeta que seu texto. De nada adianta conhecer o nome "científico" da palmeira, sua "família" ou "origem", pois os obstáculos do poema são de outra ordem. Em si mesma, a palmeira, tal como as palavras, está morta "como se em formol imersa" e seu sentido essencial lhe escapa, para renascer nas entrelinhas do poema. Na mesa de dissecação do poeta, seu objeto chega a apresentar-lhe tal profusão de dobras que seu trabalho parece interminável, pois o poema, esse corpo singular que disseca, vez por outra escapa da luminosidade, refugiando-se novamente entre as sombras. "Dissecar" seu corpo, por isso, não elimina sua natureza dissimulante. Pelo contrário: o poeta recupera-lhe a fulguração oculta à deriva, num golpe brusco de sentido como um osso pontudo que viesse a perfurar-lhe os olhos. Afinal, o intento da poesia é "afirmar a incessante produção / De si mesma, com o único fim de deslocar / Para fora do cenário que domina / Aquilo que seu fluxo perturba, aquilo / Que a reduz e aniquila e a si a obriga / Contemplar-se sob um manto de ironia". Quanto mais se despe, mais roupa se acumula sobre o corpo.

Assim, o poeta despe as coisas com uma mão e as recobre com a outra: a nudez dos sentidos sob véu alegórico. Este texto notável de Horácio Costa é um poema sobre a visão e sua impossibilidade, seus sonhos e limites. É também um ensaio de desnudamento das operações secretas da linguagem e que assim fazendo amplia os horizontes da poesia, colocando o leitor diante de seu futuro. Mas qual é o futuro da poesia? Na descrição da aula de anatomia, o Doutor Tulp sabe exatamente até onde pode ir. Ele é senhor de sua visão. Ao final do poema surge na praia uma musa inesperada que finalmente faz o poeta olhar de frente. Ela personifica a beleza. Ela é a Musa, sua razão criadora. Talvez esta figura esteja querendo nos mostrar de algum modo que ao olhá-la todos nós (o sujeito do poema, o poeta e o leitor) possamos vislumbrar um efeito de fusão inesperada, como se a demonstrar que quanto mais nítida nossa percepção da morte, na literatura, maior é seu impacto de beleza. É certo que a sensação dura pouco, pois temos que mergulhar novamente em nossos afazeres cotidianos. Algo, no entanto, parece perdurar além dessa impressão mediante a qual por alguns instantes a poesia nos faz crer que o sonho da continuidade é possível. Talvez seja esse elemento insólito a melhor constatação da necessidade dos poemas e que nos anima a continuar a lê-los. De leituras assim saímos ao menos com a certeza de que o impossível é sempre um modo de olhar o mundo e a nós mesmos como possibilidades reveladoras de tudo o que de fato não possuímos, e que talvez guardem no âmago algumas respostas melhores a nossas desilusões corriqueiras.

Sabemos que a olhos nus não devemos fixar o sol. Mas o poema pode. Ou sua máscara. Somos seres descontínuos. Mas devemos contrariar as regras. E como a mulher de Lot ousar ver além de nossos limites. Talvez assim as coisas possam ser diferentes. O poeta, inspirado pela Musa, afinal, viu. "E o sol era branco, redondo, e queimava."

*

Leia também poemas de Horácio Costa.

*

Contador Borges, poeta, tradutor e ensaísta, nasceu em São Paulo (SP), em 1954. Publicou os livros de poemas Angelolatria (1997) e O Reino da Pele (2003), traduções de Sade e Char, entre outros títulos.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2005 ]