HERZOG
: EM DEFESA DA DESRAZÃO PURA
Francisco
Lopes
A
velha história do "bom selvagem", com toques sombrios, foi
revivida por Werner Herzong em O enigma de Kaspar Hauser.
Poucas vezes na minha vida vi um filme com uma abertura tão
bonita: um campo de feno que ondula como um oceano vegetal
ao vento e uma pergunta inquietante: "Todos esses ruídos em
torno de nós não poderão também significar - Silêncio?". Herzog
se aproveita de uma história alemã (que parece tão controvertida
como uma lenda), já abordada pelo escritor Jacob Wassermann
em A preguiça do coração, para transmitir sua noção
pessimista de Cultura e Civilização. Volta-se para o fenômeno
de um homem criado feito bicho, no fundo de uma adega, com
um olhar cru e poético, duro e compassivo, como quem buscasse
obstinadamente as verdades assustadoras que podem jazer sob
o tecido social, as regras de convívio e bom senso dos "civilizados".
Para começar, uma civilização que deixa um homem ser abandonado
como Kaspar o foi já é uma anormalidade. É ela que tem ser
contestada, não seus desgarrados. O cineasta aí se inscreve
numa alta linhagem de pensamento alemão, herdeiro de um romantismo
que vem de Novalis, se opõe, feroz, aos freios da Razão, e
resvala numa pieguice à Rousseau, conseguindo escapar mais
ou menos ileso ao sentimentalismo. O tema era, sem dúvida,
ingrato, propício e tentador demais à melodramatização, mas
uma certa frieza - ela também germânica - o reabilita.
O
romantismo intempestivo de Herzog é patente. A escolha de
seus personagens o denota: são desajustados, derrotados ou
párias absolutos, gente em desacordo com o mundo não por esclarecimento
culto e racional, mas por uma espécie de desajustamento inato,
orgânico. Kaspar é um extremo de incomunicabilidade e inadaptação.
Em desamparo completo, é tirado do fundo da adega por um sujeito
misterioso que põe-no em contato com os homens e depois, tão
misteriosamente como o trouxera à luz, ressurge para lhe dar
fim. Não explica nada: age. Se interrogássemos quem nos criou,
que silêncio mais hostil! Na verdade, esse agente da Cultura
e da Civilização é um símbolo rico. Parece uma encarnação
de nossa ambigüidade, da maneira contraditória com que acabamos
por trucidar aquilo que cultivamos. É o Pai Assassino, e Kaspar
é mero joguete tanto de sua proteção quanto de sua truculência.
Herzog,
como alemão romântico, endereça à sociedade a mesma interrogação
que ia de Novalis a Freud, contestando com aspereza e lirismo
teutônicos essa cultura que relegou a vida real, instintiva,
emocional, a uma condição de pesadelo. É também o mal-estar
do expressionismo avançado, que parece provir tanto deste
mundo quanto do Além, cotidiano e transcendência se confundindo
em nítida perplexidade.
Kaspar
é deixado no centro de uma aldeia, na madrugada, segurando
um livro de orações e uma patética carta de apresentação.
É uma cena de grande força e beleza. Depois, veremos uma coisa
em que o filme é pródigo: o mal-entendido como traço fundamental
de nossa cultura. Um funcionário de justiça indaga a procedência
de Kaspar e, ante a mudez deste, sugere um nome de cidade
que o infeliz, capaz apenas de imitar, repete. O eco é lavrado
como verdade documental por um anão-burocrata que, com sua
meticulosidade estúpida, parece um símbolo da aridez mecânica
da ordem e da legalidade. Preocupado obsessivamente com seus
relatórios, ele representa a eficiência bitolada, essa que
sempre se ateve não à verdade, mas à conveniência da forma.
Uma pergunta se impõe: não serão todas as coisas documentadas
e relatadas uma grande distorção dos fatos ou tão somente
uma interpretação de coisas cuja verdade original fica totalmente
nublada, perdida? De pergunta em pergunta, podemos chegar
à perplexidade máxima de não sabermos em que mundo estamos
e indagarmos se todo o nosso entendimento não passará de um
erro grosseiro de premissa. Nietzche bem o dizia: "Não conhecemos
fatos, mas interpretações."
Evidentemente, Kaspar se torna objeto da curiosidade popular
e, como um louco de aldeia, sofre tanto com a estupidez e
a crueldade quanto com a compaixão geral. Amorfo, passivo,
ignorante dos jogos consensuais de crueldade, é um objeto
sobre o qual cada um pode projetar suas fantasias e temores.
Há cenas perfeitas: garotos gozadores entram em sua cela e
amedrontam-no com uma simples galinha; encostam-lhe uma vela
ao rosto e ele não reage - fascinado pela chama, quer pegá-la,
e, ao fazê-lo, a queimadura provoca-lhe lágrimas silenciosas.
Acaba num circo, exibido como uma aberração, ao lado de outros
infelizes, anunciado como um dos quatro enigmas do mundo (os
outros três são o pequeno Mozart, garoto-prodígio que vive
em busca de uma cavidade no solo para fugir, um índio dos
Andes e um rei-anão de um reinado imaginário). Os quatro enigmas
fogem do circo, e então vemos o que se dará ao longo do filme:
Kaspar quer lugares fechados, cubículos, cantinhos onde possa
reencontrar o conforto primitivo da adega, o útero insalubre
de onde fora abruptamente tirado.
Com
um protetor mais humano, aprende a falar, tocar música, ter
maneiras. Mas a bondade desse protetor é equívoca - não por
ser inautêntica, mas por ser parte da ordem cultural para
a qual Kaspar Hausers são incômodos pelo simples fato de existirem.
É o que acontece: ele faz perguntas que ninguém pode responder,
pois não são perguntas que se faça, já que desorganizam o
mundo conhecido, contestam a lógica trivial, desafiam a ciência
e destoam dos costumes com sua pureza, sua radicalidade simples.
De que vale a boa vontade comum de seu protetor diante do
excepcional? A regra verdadeira é a solidão absoluta, o desconsolo,
a comunicação como fonte de mal-entendido. As "boas almas"
não sabem a que forças destrutivas podem, com excelentes intenções,
servir obedientemente.
Um
homossexual pedante tenta apresentá-lo à sociedade mais refinada
como um prodígio. Ele, que aprendera a tocar piano, falha
na execução de uma valsa de Mozart porque não pode tocá-la
como um virtuose e sim apenas como um apreciador apaixonado,
um tímido amador. O afetado culto se irrita, e o rejeita.
Falta a Kaspar uma capacidade de fingir que é a pedra de toque
de todas as relações humanas. A cultura existe, afinal de
contas, para contornar a crueza das coisas ou para nomeá-la
e tentar domá-la. E também a tão decantada Natureza é fria
para com esse herói: ele planta seu nome com folhas de agrião
e uma garça o come. Herzog nos dá, então, a visão da garça
engolindo, pacífica e impessoalmente, uma rã. A Natureza é
isso - impessoalidade, crueza, a sobrevivência do mais forte
acima de tudo, nenhuma ilusão é permitida.
"Tenho
a impressão de que a minha entrada no mundo de vocês foi como
uma queda brusca", diz ele a seu benfeitor. O homem do início,
que o tirara da adega, reaparece para eliminá-lo a pauladas.
Na agonia, ele conta um sonho enigmático, com teor de parábola
(que ninguém consegue entender). Se "Deus fala pela boca dos
inocentes", é impossível, na verdade, saber o que os inocentes
querem dizer. Mas há aí um dado interessante: sendo primitivo
e puro, Kaspar sente um dever de transparência social, não
aprendeu a guardar segredo de sua subjetividade e tem a iluminação,
a vidência natural dos que não foram ainda embotados pelo
superego, pela cultura. Conta o que pode, oferece o que sente.
Naturalmente, o inteligível - que é um cálculo - pode lhe
ser uma categoria estranha. "Não conhecemos fatos, mas interpretações".
Na autópsia de Kaspar, descobre-se que seu cérebro tinha uma
anomalia indecifrável para o saber dos doutores da época.
Portanto, o anão-burocrata lavra que o que ele tinha era loucura
e nada mais. Satisfeito com a realização de seu fanatismo
burocrático, decide dispensar uma carruagem e ir para casa
caminhando, com um andar alegre.
Rendidos
à estupidez
O
que é isso - sombras na água, fundo de espelho, imagens em
vidro no vago da névoa, o quê? Sucedem-se os créditos, cheguei
atrasado, Stroszeck já começou. Essa abertura é um
verdadeiro primor de imagem: não se consegue atinar com o
que poderia ser essa sombra móvel, flutuando em superfície
ou fundo indefiníveis. A fonte do efeito, por fim revelada,
é uma bolinha de cristal insignificante na mesa da sala do
diretor do presídio onde Stroszeck se encontra, a sombra era
a sua. Provado fica que uma ilusão cinematográfica pode ser
levada a um tal extremo que o espectador se perca num mar
de incerteza, numa miragem absoluta, abstrata, até que o diretor
revele a fonte do artifício, que pode ser o mais trivial dos
menores objetos. Que arma escapista o cinema não é!
Stroszeck
parece ser a história de Bruno S., o ator que interpretou
Kaspar Hauser. Ao sair da cadeia, esse presidiário ouve do
diretor uma arenga moralista para que não volte a beber. Mas
à saída do presídio já há, quase contígua, uma cervejaria.
No fundo, um vício é ainda um pouco de vida. Haverá razão
decente pela qual se deva preservar corpo e alma num mundo
como o nosso? Viver já não é irremediável o bastante?
Stroszeck
gosta de uma prostituta, Eva, constantemente espancada por
dois escroques que a exploram. Tenta ajudá-la, fica a seu
lado curando-lhe as feridas, querendo umas migalhas de carinho.
Herzog é muito verdadeiro: Eva é uma prostituta totalmente
crível, humana, mostrada com uma crueza em que não falta,
contudo, um certo lirismo. Mas, não é uma Cabíria - o que
mais transmite é cansaço, apatia, frieza, náusea. Na verdade,
mantém uma relação masoquista com seus espancadores e Stroszeck
lhe parece meio incômodo com sua ternura e sua dedicação de
vira-lata.
A
esse desencontrado casal "outsider" vai juntar-se um velhinho
estranho, portador de um corvo, fã de Beethoven, o mesmo ator
que fizera o anão-burocrata em Kaspar Hauser. O trio
está desiludido com a feérica e gélida Berlim, o velhinho
tem um sobrinho que "venceu" na América (é um simples dono
de uma oficina mecânica) e para lá eles resolvem se mudar.
Stroszeck não pode mais viver tocando acordeon nos pátios
de edifícios e Eva não quer mais ser espancada. O casal sofre
humilhações físicas incríveis, mostradas sem ênfase, violências
que nas mãos de outros diretores renderiam virtuosismos de
câmera, mas que com Herzog aparecem fria e objetivamente,
com a mesma displicente objetividade que permeia os atos mais
cruéis e os torna de uma gratuidade infernal. A violência
dos espancadores parece uma espécie de insaciabilidade inerente
ao tédio descomunal que a vida lhes faz sentir.
O
trio patético emigra. Vemos New York, e depois há uma viagem
silenciosa para o interior ao som de By the time I get
to Phoenix. Já na entrada, a América reservava uma surpresa
desagradável ao velhinho lunático: na alfândega, confiscam-lhe
o corvo. Mas o trio tem o otimismo ingênuo dos desbravadores
do Velho Oeste - ou uma simples vontade de viver que não é
vencida facilmente pela maré adversa - e prossegue, cheio
de esperança. Herzog é um pessimista lírico, alterna ironia
gelada e lúcida compaixão no trato de seus personagens. Mas
é muito sombrio, sua pouca poesia é ríspida, seu humor é pesado,
caracteristicamente alemão, sua filosofia é bruta e visionária.
Nossos
emigrantes conhecem então a América dos sonhos de democracia,
livre iniciativa e vida farta. Trabalhando, Stroszeck, Eva
e o velhinho compram um "trailer", com todos os confortos.
Depressa se vêem apertados para pagar as prestações e Eva
passa de garçonete a prostituta novamente, para tentar cobrir
a dívida. O "trailer" acaba sendo retomado por um banco e
leiloado com frenética indiferença por uma espécie de "cow-boy".
Stroszeck sofre novo golpe: Eva se interessa por um caminhoneiro
rumo ao Canadá, deixando-o de lado sem muita contemplação.
O caminhoneiro parece um símbolo da América vista por Herzog
- vulgar, gordão, satisfeito, arrogante e competitivo.A terra
dos sonhos do trio é um blefe em todos os sentidos.
Stroszeck
e o velhinho se desesperam. Pateticamente, para comer, fazem
um assalto, e agem como se quisessem vingar-se da desapropriação
do "trailer", o velhinho indignado com o que lhe parece uma
conspiração suja. Enquanto Stroszeck compra comida com o dinheiro
roubado, ele é preso, protestando inutilmente contra tudo.
Não são solenes, essas pequenas calamidades; têm como pano
de fundo um "muzak" irritante, histérico, que esmaga com seu
torpor idiota gestos e ações. A América zomba cruelmente de
quem acredita nela. Sua trilha sonora é esse lixo banal, repetitivo,
grotesco, impiedoso, gratuito. A estupidez, a monumentalidade
vazia, o kitsch, o tédio frenético, a violência pela
busca cega do lucro são o seu verdadeiro rosto.
Stroszeck
foge num carro velho, sem rumo, devidamente abastecido de
latas de cerveja. Acaba deixando o carro pegar fogo e passeia,
desnorteado, com um fuzil. Entra num parque de diversões,
tentando compensar seu fracasso com os entretenimentos disponíveis.
A cara é sempre a mesma - um misto de inércia, estupidez e
tristeza, os olhos fixos de estupor, embriaguez e uma como
que debilidade mental irremediável.
Poucos
filmes serão tão frios e verdadeiros como este. Não há realmente
saída para párias ingênuos como Stroszeck. Fica no parque,
idiotizado, andando de lá para cá num teleférico, o fuzil
no ombro, tomando cerveja, enquanto a polícia chega para prendê-lo,
pois fizera algumas atrações do parque funcionarem sem parar,
numa sabotagem impotente. As atrações: uma galinha que dança,
um coelho chefe de bombeiros, um pato que toca piano. A América
é infantil, infantil e cruel, ama o grotesco, o bizarro, o
brinquedo de corda, o artificialismo barato. A América é essa
doença de puerilidade congênita que se traduz em consumismo,
atrocidade displicente e mentalidade de videogame. Assim um
alemão a vê.
A
última imagem do filme ilustra tudo, "claro enigma": a galinha
dançarina, com o mecanismo em pane, não pode parar de dançar,
e haverá algo mais estúpido, condicionado e triste que uma
galinha? Lembremo-nos que uma delas é usada para assustar
o pobre Kaspar Hauser. A de Stroszeck, ironiza e emblematiza
o desespero de outro coitado tipicamente herzoguiano - romântico
e obtuso.
Essa
galinha é a própria América - inútil, de mau gosto, condicionada
à Pavlov e vazia. Retrata o próprio destino de um herói que
procura inutilmente dar sentido a uma vida desde o início
predestinada ao pane, ao gratuito, ao irrisório, de um pobre
joguete de uma mecânica cruel que não leva em mínima consideração
sua essência humana.
*
Francisco Lopes é jornalista,
crítico de cinema e escritor. Publicou Nó de sombras
(contos, IMS, SP, 2000) e traduziu A volta do parafuso,
de Henry James (edição bilíngüe Landmark, SP, 2004).
franz53@pocos-net.com.br
*
Leia também o
dossiê
sobre Herzog publicado na Zunái.
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