OS HANGARES DA
POESIA
A poesia está sempre no limite das coisas. No
limite do que pode ser dito, do que pode ser escrito, do que
pode ser visto e até do que pode ser pensado, sentido e
compreendido. Estar no limite significa muitas vezes, para o
poeta, estar para lá do que estamos preparados para aceitar
como possível (CASTRO, 1996, p. 138).
Jorge Luiz Antônio
Uma troca de e-mails foi o início de um diálogo com Luís
Serguilha, seguido do recebimento de seus livros, e continuado
por meio de uma conversa muito proveitosa por telefone e,
depois, pessoalmente, quando ele esteve em São Paulo, em
outubro/2007.
Luís Serguilha nasceu em 1966, em Vila Nova de Famalicão,
Portugal. Foi atleta (rúgbi e handebol) por vinte anos,
colaborou por muitos anos nas Jornadas de Arqueologia -
Investigação da Cultura Castreja, lecionou Educação Física por
doze anos, desenvolveu trabalhos pioneiros sobre as
"bibliotecas de jardim" e atualmente coordena uma academia de
danças urbanas e de outras atividades físicas. Recebeu o
Prêmio de Literatura Poeta Júlio Brandão. E dedica-se à poesia
(SERGUILHA, 2007).
Serguilha publicou oito livros: O périplo do cacho
(1998), O outro (1999), Entre nós (narrativa)
(2000), Lorosa´e boca de sândalo (2001), O externo
tatuado da visão (2002), O murmúrio livre do pássaro
(2003), Embarcações (2004), A singradura do
capinador (2005). Criatividade do título ao texto,
quantidade, regularidade: uma das muitas qualidades do poeta e
da pessoa. Ele também faz textos crítico-criativos, dentre os
quais um exemplo é "Sampistas apocalípticos (Cláudio Daniel,
Ademir Assunção e Ronald Polito) (SERGUILHA, 2007a),
recriações poéticas a partir dos temas dos autores, numa forma
muito singular de continuar fazendo poesia. Já existem vários
textos sobre as suas obras, com uma riqueza significativa de
interpretações: Sérgio Paulo Guimarães de Sousa (2001),
Gunvald Wahlöö (2004), Melo e Castro (2004, 2005), Micheliny
Verunschk (2007). O autor é muito comunicativo e vem
estabelecendo contatos entre portugueses e brasileiros.
Todas as obras, além de uma diagramação muito boa, contêm
reproduções gráficas de pinturas de Passos da Silva e Sara
Rodrigues. A escolha das obras pictóricas indica um gosto
apurado para não apenas ilustrar, mas ressignificar o texto
escrito. Há uma preocupação com o diálogo intersígnico (verbal
e visual), o que valoriza, ainda mais, os poemas de Serguilha.
A leitura dos livros ensejou uma série de impressões: floresta
de signos verbais, conjunto de sinestesias, uma
correspondência mais do que baudelairiana, poesia
experimental, poesia neobarroca, poesia hermética, verbalismo
plurissignificativo, uma estrutura hipertextual no meio
impresso, uma experimentação que se parece com a poesia
permutacional. Outros aspectos inovadores também foram
observados: uma continuidade expressiva que toma rumos
diferentes em cada livro publicado, sempre fiel a um projeto
que norteia toda a produção poética.
Fui presenteado recentemente com os originais de Hangares
do Vendaval, 16 hangares-poemas, em fontes de diferentes
tamanhos, quarenta e sete páginas em papel formato A4,
presente esse que veio com um convite: fazer um texto de
apresentação para o seu novo livro.
Duas questões principais surgiram da leitura dessa obra, em
comparação com outros livros: a) procurar os significados da
poesia ou deixar-se levar pela torrente de palavras e sua
musicalidade, visualidade e riqueza sinestésica
características que apresentam múltiplos significados? b)
encontrar pontos em comum com outros movimentos poéticos de um
país tão rico de poesia como Portugal, ou simplesmente
observar os procedimentos da poesia de Luís Serguilha em
Hangares do Vendaval, em particular, ou na sua obra como
um todo, de forma panorâmica? Trabalho desafiante,
considerando-se, principalmente, que um texto de apresentação
precisa ser curto, pois não deve aborrecer ou direcionar o
leitor.
O leitor de uma obra poética precisa ser atento e paciente
para apreender a estrutura poética e a polissemia que cada
poema lhe proporciona. Ele deve esperar o convite à viagem
onírica e aceitar o desafio para a produção de sentidos e para
a escolha de um significado que lhe seja especial. Nesse
exercício interativo, o universo poético se revela junto com
um convite sutil e irrecusável para continuar a leitura e para,
talvez, também sentir-se estimulado a produzir poesia. O
leitor que apenas frui a poesia guarda para si os critérios de
produção de significados ou talvez os compartilhe com os seus
amigos. O crítico literário, leitor especializado, tem a
missão de oferecer chaves de compreensão e portas de entrada
para a obra poética. É, na verdade, um recriador ou um
tradutor da linguagem poética, deve mostrar procedimentos,
estruturas, fazer metalinguagem, e deixar pistas que permitam
uma leitura que seja procura e encontro para outros leitores,
mas que não o direcionem sob uma única perspectiva.
O título Hangares do Vendaval é sonoro, agradável e
instigante. "Hangar" tem muito significados:
construção semelhante a um galpão
destinada a abrigar materiais e mercadorias diversas ou
colheitas; abrigo para aviões num navio-aeródromo. "Vendaval"
significa "vento forte e tempestuoso", "ventania", "temporal"
e, no sentido figurado, grande desordem, agitação, rebuliço,
turbilhão, sentimento forte e devastador. Conceitos opostos de
espaços: enquanto "hangar" indica abrigo, imobilidade, calma,
"vendaval" sugere movimento, fúria, agitação, inquietude.
Abrigos das palavras / poesias / experimentações poéticas.
Os abrigos das palavras-vendavais que compõem a tessitura
poética de Luís Serguilha: vários compartimentos de onde
surgem a sua comunicação poética, num projeto experimental de
poesia contemporânea. Cada compartimento-hangar-poesia abriga
vendavais compostos de grupos de palavras enfeixados em campos
semânticos que, como o título do livro, são paradoxos, um tipo
especial de metáforas.
Além do enfoque temático, é preciso lembrar-se da conversa do
poeta Mallarmé com o pintor Degas:
O
grande pintor Degas muitas vezes me contou essa frase de
Mallarmé, tão justa e tão simples. Degas às vezes fazia
versos, e deixou alguns deliciosos. Mas constantemente
encontrava grandes dificuldades nesse trabalho acessório de
sua pintura. (Aliás, era homem de introduzir em qualquer
arte a dificuldade possível.). Um dia disse a Mallarmé: "sua
profissão é infernal. Não consigo fazer o que quero e, no
entanto, estou cheio de idéias...". E Mallarmé lhe respondeu:
"Absolutamente não é com idéias, meu caro Degas, que se
fazem os versos. É com palavras." (VALÉRY, 1991, p.
207-208).
É válido adotar esse ponto de vista e focar a atenção na
linguagem poética de Luís Serguilha e observar os seus
procedimentos, pois a "poesia é uma arte da linguagem" (VALÉRY,
1991, p. 208), "um ser de linguagem. O poeta faz
linguagem, fazendo poema. Está sempre criando e recriando a
linguagem (PIGNATARI, 1991, p. 10)".
O ser de linguagem denominado Hangares do Vendaval tem
características especiais. A palavra "hangar", seguida de
numerações de um a dezesseis, passa a ser os títulos dos
poemas. A maneira particular de significar o mundo pelas
palavras passa por um tipo de metaforização que toma conta do
discurso poético e se torna um projeto poético experimental,
pois se mantém em todas as obras, ao mesmo tempo que se
modifica, tomando novos enfoques.
Um trecho de Novas cartas portuguesas ajuda a
compreender a comunicação poética de Luís Serguilha:
Pois que toda literatura é uma longa carta a um interlocutor
invisível, presente, possível ou futura paixão que
liquidamos, alimentamos ou procuramos. E já foi dito que não
interessa tanto o objecto, apenas pretexto, mas antes a
paixão; e eu acrescento que não interessa tanto a paixão,
apenas pretexto, mas antes o seu exercício (BARRENO; HORTA;
COSTA, 1974, p. 9).
Essa dialética característica da literatura portuguesa está
presente na obra do poeta de Vila Nova de Famalicão como um
exercício de uma arte poética no seu mais alto grau, como uma
carta aberta a um leitor de poesias com uma mensagem cifrada.
O procedimento que diferencia a obra de Serguilha e que a
caracteriza se mostra pela construção de significados por meio
da subversão dos processos de subordinação e coordenação.
A ausência de sinais de pontuação indica orações
coordenadas e subordinadas quase sempre sem uma conjunção
coordenada ou subordinada, sem uma oração principal, sem um
único sentido completo. Isso ocorre porque o núcleo semântico
se prende em metáforas formadas por substantivos e adjetivos,
em sua maioria. Esse tipo de construção verbal indica uma
possibilidade combinatória interminável. Não há início, meio e
fim no texto de Serguilha. Quanto ao significado, portanto, o
leitor pode começar a leitura tanto pela página que quiser,
quanto pela palavra que lhe chamar a atenção.
A observação de E. M. de Melo e Castro para A Singradura do
Capinador é válida para outras obras de Sergulha:
Para sabermos de que trata o O INTERMINÁVEL TEXTO DE LUIS
SERGUILHA devem portanto ser catalogados os substantivos e
os verbos que regem as células intervalares entre as
preposições DE e suas variações DA, DAS, DO, DOS. Estas
preposições estabelecem entre os tropos intervalares uma
relação de dependência ou de derivação, que tornam O
INTERMINÁVEL TEXTO DE LUIS SERGUILHA uma espécie de série de
caixas chinesas, encaixando sucessivamente uma nas outras
(2005, p. 12).
Um vulcão de vocábulos faz parte do projeto poético de Luís
Serguilha e, sendo o leit motiv que norteia sua
produção poética, vale recorrer ao conceito de procedimento:
E
eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os
objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se
chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto
como visão e ao como reconhecimento; o procedimento da arte
é o procedimento da singularização dos objetos e o
procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a
dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em
arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é
um meio de experimentar o devir do objeto, o que é já
"passado" não importa para a arte. (CHKLOVSKI, 1971,
45).
A singularização dos objetos, o mundo representado pelos
signos poéticos verbais de Serguilha, é um procedimento que se
manifesta pela metaforização das palavras e pela produção de
sinestesias, aumentando a dificuldade de compreensão na
primeira leitura e aumentando a duração da fruição poética,
por intermédio da necessidade de reler, repensar, rever,
ressignificar, em suma, desautomatizar. Luís Serguilha é: "Um
autor que obriga a "escreler". Que não dispensa o seu leitor,
nem o remete para qualquer liturgia da palavra feita ou do
verso aprioristicamente construído" (SOUSA, 2001, contracapa).
Isso aplica a Hangares do Vendaval, como, por exemplo,
em "Hangar 3":
As
transferências apaixonadas dos bojos dos últimos calabouços
possibilitam
o murmúrio da cura dos tecidos
inovadores dos pedreiros-livres
que
capturam as estátuas luzentes dos pássaros
nas refinarias eclécticas da madeira brava
Transferências apaixonadas dos bojos dos últimos calabouços?
Murmúrio da cura dos tecidos inovadores dos pedreiros-livres?
Estátuas luzentes dos pássaros? Refinarias eclécticas da
madeira brava? Possibilitam? Capturam?
A metáfora parece ser construída por intermédio dos adjetivos
e por meio de uma construção que se parece com a das orações
subordinadas, pois usa "como", "onde", "que", verbos no
gerúndio, "para", "e", etc. Isso se repete ao longo dos poemas
e torna o texto uma espécie de música contínua, a exemplo de
um ritmo sem rima, uma musicalidade semelhante à existente na
poesia simbolista, como o verso "Só, incessante, um som de
flauta chora", de Camilo Pessanha (1989, p. 59). É que o
"poema a leste de um Éden natural dedica-se a uma restituição
da natureza como inferível do seu léxico" (WAHLÖÖ, 2004,
contracapa). Parece-me aqui uma retomada da poesia-dança e da
poesia-movimento que caracterizou as cantigas medievais.
Considerando-se o processo sintático de subordinação, posso
afirmar que a "oração principal" fica por conta do leitor,
cujo ponto de apoio pode ser um título, como "Hangar", sinais
de pontuação como em Embarcações, poemas sem título
como em Lorosa´e Boca de Sândalo, imagens e algarismos
romanos como em O Externo
Tatuado da Visão
e A Singradura do Capinador, e raramente um título,
como ocorre em apenas um poema de A Singradura do Capinador.
Essa procura de significado toma rumos diversos, tira o chão
do leitor e o remete a uma espécie de linguagem onírica,
primitiva, inaugural, uma volta no tempo. É como se a
imprecisão caracterizasse um tempo sem marcas, uma linguagem
sem nenhuma vinculação com um tempo e um espaço datados,
determinados. É claro que sabemos ser língua portuguesa, um
português de Portugal, e não do Brasil, por exemplo, e que há
referências que indicam ser um texto do século XXI, pois os
vocábulos utilizados indicam uma temporalidade de significados.
Contudo, a metaforização experimental oferece uma
plurissignificação que nos desvincula de "amarras" de
localidade, temporalidade e espacialidade específicas.
Assim, a própria análise das poesias se torna, então, uma
outra experimentação. O poeta usa e abusa de uma verbalização
característica (há uma tendência para versos razoavelmente
longos) que oferece sempre novas releituras, novas
significações. Ele aposta nesse procedimento com todas as suas
forças, fazendo disso um projeto poético: retirar as palavras
do seu uso comum e da metáfora morta para ressignificar sempre,
num afã de dizer tudo. Os seus livros apresentam sempre essa
proposta clara e paradoxalmente tão metafórica. É preciso
experimentar significados para analisar "Hangar 4" e, então,
deixo-me levar pela sonoridade musical de um grupo de palavras,
seleciono-as mentalmente ou as escrevo e, assim, acabo
recriando um outro poema:
A
latitude viajante do fôlego
as recamaduras da gelosia urbana
diamante de respirações babilõnicas
a longevidade das aberturas
os teoremas dos pêssegos
bandos intraduzíveis a tossirem nos encaixotamentos geológicos
O agrupamento de expressões poéticas permite compreender a
construção metafórica das poesias e, simultaneamente, oferece
outras leituras. São blocos de significação, "células
intervalares" (CASTRO, 2005, p. 12), "séries de caixas
chinesas, encaixando sucessivamente uma nas outras" (idem,
ibidem), ou lexias de um texto estrelado (BARTHES, 1992, p.
47-48), ligados por operadores lingüísticos, ou seja, uma
leitura-jogo por meio de um processo hipertextual no meio
impresso.
A própria leitura e a procura de significados também se tornam
outras experimentações para o leitor e, nesse sentido, podemos
afirmar que o poema é interativo, não porque usa mecanismos
computacionais que exigem a interação do leitor-operador, mas
principalmente porque motiva o leitor a ficar atento, reler e
ressignificar de acordo com o seu quadro pessoal de
referências.
Esse processo hipertextual, que Melo e Castro (2004, p. 10)
notou em Embarcações, também se aplica a Hangares,
pois oferece ao leitor uma leitura-jogo: ele tem a liberdade
de se ater a um grupo de palavras e entusiasmar-se em
redescobrir associações ou círculos semânticos a partir daí. É
nesse sentido que o texto pode ser considerado um hipertexto,
pois a distribuição gráfico-espacial e a ausência de
pontos-finais sugerem blocos de significados ou lexias que
permitem agrupamentos de acordo com a "necessidade" ou
"procura aleatória" do leitor. Essa leitura-aventura se faz
pela escolha de palavras ou grupos de palavras ao sabor de uma
viagem do olhar, seduzida pelos balanços da sonoridade, como
se estivesse vagando sobre nuvens, ou sendo embalado por um
mundo onírico.
Serguilha oferece um projeto de leitura que é um desafio. E há
momentos em que o leitor se sente perdido numa floresta de
signos e só encontra o caminho dos significados se selecionar
e combinar palavras e dar significado pessoal a elas.
Quanto ao processo criativo, é possível estabelecer relações e
afirmar que Serguilha transforma o action painting de
Jackson Pollock em action writing, que explora a
técnica do poema automático mecânico dadaísta e a escritura
automática dos surrealistas. Em suma, faz um exercício de
ressignificação por meio da plurissignificação. Mas, como fala
o poema "Correspondências", de Charles Baudelaire, "por entre
florestas de símbolos / que o observam com olhares familiares"
(BAUDELAIRE, 1985, p. 33), é possível encontrar "uma tenebrosa
e profunda unidade" (idem, ibidem).
Ler os versos de cada hangar-poema é buscar o início de cada
poema-projeto. Para "Hangar 1", por exemplo, há três verbos
que iniciam versos - eclipsar, confidenciar, descobrimos - com
sentidos próximos ou complementares e metáforas compostas de
substantivos, adjetivos e verbos:
Eclipsar a íris-estaca do cais na rachadura rememorativa das
encaixotadoras (...)
Confidenciar a subtilidade da aridez das gôndolas sucessoras
da granulação (...)
Descobrimos os prelúdios da chiba das metamorfoses (Hangar 1)
Tirar o brilho ou a visibilidade da íris-estaca, ofuscá-la,
obscurecê-la. Dizer ou comunicar em segredo, ou em voz baixa,
a subtilidade da aridez das gôndolas. Constatar a descoberta
dos prelúdios das chibas. Propostas-metáforas geradoras de
novos significados, obscurecendo o significado comum das
palavras, aumentando a dificuldade de compreensão,
experimentando o devir do objeto.
Deixando de lado uma análise das figuras de linguagem, que
indicaria, provavelmente, apenas uma riqueza de tipos,
portanto, isso seria um propósito estilístico, parece-me
válido apostar na experimentação, pois esse é o caminho do
poeta. Os resultados dessa análise de procedimento são todos
os tipos de significados que os leitores puderem encontrar. As
combinações são muitas à semelhança de um hipertexto no meio
impresso.
Há características especiais em Hangares que não
aparecem nos livros anteriores: uso de fontes de diferentes
tamanhos, em caixa alta e em negrito; uso de pouco sinais de
pontuação como parêntesis; uso de palavras em caixa alta;
emprego de hífens estilísticos em grande quantidade. Esses
recursos tipográficos representam palavras-sínteses de um
processo metafórico experimental, uma necessidade de
comunicação poética, que passam a significar mais do que a
pontuação praticamente inexistente nas obras de Luís Serguilha.
Eles sugerem movimento e pausa, como a cadência de uma dança
ou modulação de voz durante uma leitura em voz alta ou
sussurrada.
Selecionando as palavras em caixas altas e as que estão entre
parêntesis, eis como isso se processa em "Hangar 2":
ângulo-MASTRO-musgo
orvalho PRÉ-HISTÓRICO
MINAS
MINAS
MINAS ... FERROVIA EPILEPTICA
LIMOEIRO dos bichos - MINERAIS
ALIMENTAM ... MEDULAS
(ROSÁCEAS HIDROGRÁFICAS JUSTIFICAM AS MUTAÇÕES
DO XADREZ-SUBSOLO-ANTROPÓLOS UTERINOS)
Seria possível uma leitura vertical, inclinada ou paralela
para identificar outros procedimentos conotativos, como uma
espécie de intratextualidade, que dialogam com o poema numa
leitura linear. Por vezes a palavra isolada é a tônica da
comunicação poética. É como se o poeta quisesse libertar-se da
estrutura lógica da língua portuguesa e voltasse às palavras
em liberdade dos futuristas. Em alguns aspectos, essa
estrutura se assemelha à de Oswald de Andrade em Memórias
Sentimentais
de João Miramar,
num exercício constante de plurissignificações pelas inúmeras
metáforas que se constroem com os adjetivos e substantivos e
com a inclusão de preposições exercendo as funções sintáticas
de complemento e adjunto nominais.
É possível ler Hangares, abrindo uma página qualquer,
ao acaso: a sensação de estranhamento e de curiosidade
acompanha a obra e essa unidade (metáfora sobre metáfora) é
constante. O leitor encontra, assim, o prazer de descobrir
novos sentidos ou repensar o que leu. Adentrar o entendimento
do processo poético de Luís Serguilha por este viés é escrever
uma tese de doutorado sobre a sua obra, mas este texto não tem
essa pretensão. Ele é mais uma saudação a um amigo
transatlântico do que um estudo aprofundado.
Não foi possível concluir esta apresentação e paradoxalmente
estou muito feliz com essa inquietude poética. Cada poema lido
me trouxe a angústia da exegese:
senti a necessidade de tentar esclarecê-lo ou interpretá-lo
minuciosamente. Escrevi várias páginas. Pareceu-me que esse
exercício não acabaria mais e, ao mesmo tempo, fazia com que a
leitura de Hangares ficasse cada vez mais lenta, mais
desafiadora e mais encantadora. Eu precisava terminar a
apresentação, mas, a cada trecho lido, novas idéias e novos
textos surgiam numa espécie de brainstorming, tudo isso
junto com uma necessidade de também produzir poesia. Eu
precisava ser conciso, mas a prolixidade tomava conta do meu
texto. Então, optei por avisar o leitor que continuarei a
escrever indefinidamente sobre o "interminável texto de Luís
Serguilha" (CASTRO, 2005, p. 10). Então meu texto será o
interminável texto sobre o interminável texto de Luís
Serguilha.
Durante essas elucubrações, veio-me à lembrança uma estrofe de
Camilo Pessanha:
Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais! ... (PESSANHA, 1989, p. 37)
O texto em construção de Serguilha é um procedimento que
procura significar tudo por meio do uso da palavra, o
pluridimensional da realidade no unidimensional da linguagem
poética, como disse Barthes (1995, p. 22-23). Uma inquietude
semelhante se apresenta em Hangares dos Vendavais:
Eclipsar a íris-estaca do cais na rachadura rememorativa das
encaixotadoras (Hangar 1)
Nesse afã de concluir esta apresentação, abri a
janela da minha biblioteca e vi que
As
alianças bífidas dos répteis incandescem as escarpas
das camisas das metrópoles
como bandos intraduzíveis a tossirem nos encaixotamentos
geológicos
para apaziguarem as plumas das heranças das
formigas caçadoras
de
biografias enclausuradas (Hangar 4)
e entendi tudo, tal qual aquele alívio filosófico do
personagem de Vagabundos iluminados, de Jack Kerouac.
Num canto do espaço compreendido pela janela da biblioteca,
que dá para quintais cheios de árvores e plantas, belezas
arquitetadas, regadas e adubadas, como uma janela do
Windows, o Hangar 16 iniciou assim:
O leopardo evocativo do
vendaval dobra-se na sede afiada
da
âncora debruando os trocadilhos das faíscas dos telheiros
com as sandálias redondas do equinócio
Uma outra idéia surgiu e permaneceu: um diálogo com textos não
verbais, como a poesia visual e a poesia digital. Passado
certo tempo, os infopoemas de E. M. de Melo e Castro
(1999/2000 e 2007) -
http://www.ociocriativo.com.br/guests/meloecastro/ - se
tornaram, para mim, leitor-operador ou leitor-jogador, uma
espécie de idéia-jogo, interatividade, diálogo intertextual.
Virou um projeto intertextual, em que procurei explorar a
visualidade da infopoesia e a riqueza metafórica e
experimental de ambos os poetas. Sugeri a idéia ao Luís
Serguilha e ao Melo e Castro e ela foi aceita. Ana Baptista,
editora de Intensidez, também aprovou a sugestão e soube
explorar esse diálogo no livro. Pouco tempo depois, explorei
cores e estrutura hipertextual, que publiquei em O texto
brevíssimo da Editorial 100, em Vila Nova de Gaia:
http://www.editorial100.pt/otextobrevissimodaeditorial100jlantonioh.htm.
Evocação.
Vendaval. Sandálias. Sede. Âncora. Uma formiga caçadora de
biografias enclausuradas.
É essa leitura-jogo que desejo a todos os leitores de
Hangares do Vendaval. Muitos hangares-versos. Muito
vendaval-metáfora. Muita poesia, a de todos os tempos e tipos.
Ou seja, a vida ressignificada, como sempre, pela palavra
poética.
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Vila Nova de Gaia, Portugal: Ausência, 2004, contracapa.
*
Jorge Luiz Antônio
é escritor, professor universitário, pós-doutorando em
Tecnologias da Inteligência e Design Digital (PUC SP TIDD),
autor de Almeida Junior através dos tempos (1983),
Cores, forma, luz, movimento: a poesia de Cesário Verde
(2002), Ciência, arte e metáfora na poesia de Augusto dos
Anjos (2004) e Poesia eletrônica: negociações com os
processos digitais (no prelo).
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