YGUARANI OU O “INTELECTO EM ACTO DE CRIAR LÍNGUA”
Jorge Melícias
A escrita é uma maneira de pensar a literatura, não de a difundir.
Roland Barthes
“O poema é o lugar onde a língua suga potencialidade para produzir realidade”.
A poética de Wilmar Silva inscreve-se como poucas nesta máxima do filósofo checo Vilém Flusser, exposta de uma forma brilhante no seu livro Língua e Realidade. Para Flusser poesia é “o esforço do intelecto em acto de criar língua”. A poesia constitui-se assim como uma nova espécie de língua ou como a língua superada pelo intelecto. O seu pensamento fenomologista distingue, sob esta perspectiva, duas realidades completamente antagónicas (ainda que intrinsecamente ligadas): a poesia e a conversação. A primeira propõe. A segunda compõe. A conversação é, segundo o filósofo, “a cerração poética dissipada, apreendida e compreendida.” Enquanto que a actividade da conversação radica no prosaico (de prorsus, plano), i.e., espalha a realidade num plano, a actividade poética é, stricto sensu, produtiva, arrancando sempre algo às profundezas do indizível. George Elliot dizia, a este respeito, que “a língua não passa de luz rompida sobre as profundezas do inarticulado”. Se a poesia se afirma como a produção de língua (produzir vem de producere, e significa trazer para a superfície), o poeta assume-se como “uma boca aberta em admiração”, o lugar onde a língua inspira o nada e o transforma em nova língua. Jean Luc Nancy no seu ensaio Resistance de la Poésie diz-nos que a poesia “faz na dificuldade”. Nessa perspectiva fala não de um acesso ao sentido mas de um acesso de sentido. Não se trata assim de procurar, a todo o custo, uma via de acesso ao sentido mas de admiti-lo como uma presença invasora e totalizante. Para ler e cabalmente mergulhar na poesia de Wilmar Silva é primeiro preciso aceitar este pressuposto como uma realidade axiomática.
Flusser tenta resumir: “filogeneticamente a poesia surge da conversação, recolhendo-a, encolhendo-a, impermeabilizando-a e superando-a. Funcionalmente a poesia é a criação de uma nova língua a partir do nada que cerca a língua por todos os lados, língua essa em si incompreensível intelectualmente, mas tornada compreensível após a sua diluição na conversação”.
Ao abordar esta questão Flusser liga-a a um conceito tão caro quanto perigoso: o conceito de originalidade. Se a actividade normal da conversação reside na composição de elementos já existentes, a novidade da poesia deverá residir na imposição de novas regras, de acordo com as quais os elementos serão doravante compostos, e na criação de novos elementos da língua. Vladimir Maiakovski tinha, já anteriormente, abordado esta questão sob um prisma similar ao afirmar: “Em geral as regras em poesia não existem. Chama-se poeta justamente ao homem que cria essas regras”. Assim, a actividade poética decompor-se-á, ainda segundo Flusser, numa dupla vertente, impondo, a um tempo, novas regras e novas palavras (conceitos). Os seus pensamentos (versos) são novos porque contêm elementos novos (conceitos novos) ou novas regras (uma nova gramática). A partir desta definição podemos facilmente chegar a uma compreensão mais nítida do conceito de liberdade que está na base de todo o processo poético. Através da criação de novas regras a liberdade de criação (a única liberdade inequívoca), longe de ficar reduzida, torna-se mais ampla. As novas regras possibilitam novas composições de elementos e ampliam o território da livre escolha. Por conseguinte a actividade produtiva da poesia, impondo novos conceitos e novas regras sobre a língua, organiza-se como uma actividade criadora de liberdade. E os intelectos em conversação tornam-se, eles mesmos, progressivamente mais livres, à medida que absorvem as regras e os novos conceitos que lhes são veiculados pela poesia, num constante e imarcescível work in progress. O isolamento no qual o poeta se encontra (e do qual romanticamente se alimenta) é tão falso quanto a sua aparente perda de liberdade. Ele estabelece-se antes “como a ponta da cunha que a conversação” (ou seja vós, todos nós) “força para dentro do indizível”. Os poetas são, ainda nas magníficas palavras de Flusser, “os bandeirantes que, se expõem, tanto em nosso como em seu benefício, ao perigo da aniquilação pelo indizível. Neste sentido Wilmar Silva, como poeta, é tanto uma criação sua como vossa (Bernstein lembra-nos que é sempre a margem que define o centro, ainda que o centro seja sempre, ab initio, o móbil dessa definição). Longe de estar isolado o poeta constitui-se, precisamente por ter tido a coragem de se recolher, como o condutor da conversação. Mas o perigo da exposição desse mesmo poeta ao influxo imediato do nada é constante e eminente. Enquanto que o perigo do intelecto em conversação é a caída na conversa fiada, o perigo do poeta radica numa queda mais abrupta (e não deixo de citar Flusser) numa “salada de palavras”, tão próxima da loucura. O próprio pensador de Le Monde Codifié exemplifica: Thomas Mann, no seu romance Dr. Faustus (na cena do discurso junto do piano) ilustra essa queda abrupta de forma genial. Também as cartas de Nietzsche, datadas do início da sua loucura, e onde ele assinava Christus Imperator, são um exemplo extremo dessa realidade.
Toda a poética de Wilmar Silva é, na verdadeira acepção da palavra, uma experiência de limite. O carácter extremamente inovador desta proposta (e aqui convocamos todos os movimentos desconstrutivistas de vanguarda que preencheram a história da literatura do último século e, em particular, essa aventura que foi a estética zaum*, avançada por Alexéi Jruchenvj) pode, em última instância, conduzir à incompreensão e aosolipsismo. Mas esse é o derradeiro risco que todo o poeta corre. Um risco assente numa verdadeira e feroz dialéctica, onde a ideia wittgensteiniana de a língua e a realidade serem como dois espelhos pendurados em paredes opostas num quarto vazio foi, sabiamente, treslida.
*Abro aqui um breve parêntese para me referir à língua zaum. Estes desconstrutivistas russos, ao defenderem que a linguagem comum escraviza, propuseram uma língua mais conceptual que real, vazia de um sentido racional, explorando as potencialidades de uma linguagem a que chamaram de “transmental”. O zaum constituía-se assim como uma linguagem transignificativa (por oposição à não-significativa do dadaísmo). Aliás todo o futurismo russo laborava sobre três fases da escrita: a verbocriação, a fonoescritura e o alfabeto mental. Estas fases estavam baseadas na construção de uma nova materialidade sonora, contribuindo para romper com o regulamento retórico da poesia tradicional e criar uma desautomatização da linguagem e do sentido comum das palavras. Estes poetas compunham os seus poemas sem adjectivos, advérbios, versos ou sinais de pontuação e utilizavam colagens de substantivos que evocavam uma sucessão contínua de imagens, tendo por suporte as bases mais primitivas do idioma, i.e, a onomatopeia e o ruído.
Em última analise voltamos sempre ao inicio: Se a língua cria a realidade e a poesia cria a língua, quem cria a poesia? Como Charles Bernstein defende: “À igualdade quando a diferença nos descrimina prefiro sempre a diferença quando a igualdade nos anula.” A poesia de Wilmar Silva leva essa utopia às últimas consequências. Soube ler, talvez com a coragem de poucos, essa máxima de Maiakovski, “a arte não é um espelho que reflecte a realidade, mas um martelo que a forja”, lutando, na feliz expressão de Graça Capinha, “contra o corpo da linguagem por uma linguagem que há-de, por força, ser outro corpo”.
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Jorge Melícias, poeta português, nasceu em 1970. Publicou, entre outros títulos, os livros de poesia Ahagahe (1994), A um deus de olhos de graça (1995), Iniciação ao remorso (1998) e Incubus (2004). Traduziu Elogios, de Saint-John Perse, Cartas de Isidore Ducasse, de Lautréamont, Conselhos aos jovens literatos, de Charles Baudelaire, entre outros.
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