PENSAGENS:
A POESIA DE LAURA RIDING
por Rodrigo
Garcia Lopes
"Há um sentido
de vida tão real que se torna o sentido de algo mais
real que a vida.
[...] É o sentido operando no que não tem sentido;
é, em seu modo mais claro, poesia."
(Laura
Riding, Contemporaries and Snobs, 1928)
Na história
da poesia moderna anglo-americana um capítulo à
parte deveria ser escrito para o caso extraordinário
de Laura Riding. A peculiaridade de sua obra fica evidenciada
na dificuldade que os críticos têm encontrado
para definir sua poesia: "poesia da Nova Crítica",
"poesia neo-Metafísica", "epistemológica",
"pós-moderna avant-la-lettre", "pré-L=a=n=g=u=a=g=e".
Reconhecida
como um importante e influente nome da vanguarda dos anos
20 e 30 e, de forma não-reconhecida, como co-inventora,
com Robert Graves, do método de "close reading
"(1)-posteriormente "apropriado" por William
Empson e pela Nova Crítica-Laura Riding renunciou à
poesia no auge de sua carreira, pouco depois da publicação
de Collected Poems (1938), num gesto radical que tem
sido, ironicamente, mais discutido do que seus poemas. Ela
se afastou da cena literária até 1962, quando
publicou alguns ensaios nas páginas da revista Chelsea
onde refletia sobre sua decisão. Também comprou
brigas homéricas com críticos que tentavam "decifrar"
sua poesia e sua polêmica renúncia. Porém,
críticos e poetas relutaram em respeitar sua posição
e a descoberta de que "a verdade começa onde a
poesia termina"(2) , insistindo em fazer dela uma espécie
de Rimbaud ou Greta Garbo das letras americanas. O vocabulário
para caracterizá-la, vindo de figuras como Virginia
Woolf, Yeats, e Williams, deliciaria Michel Foucault: "louca",
"bizarra", "bruxa", "puta premiada",
"excêntrica", "anomalia"... Mas
Riding tinha consciência da política mesquinha
dos bastidores literários: seu tom desafiador era apenas
uma mostra de que ela se recusava a fazer parte tanto do clube
fechado dos modernistas quanto dos jogos e "negociações"
da política literária de seu tempo. Como ela
colocou num ensaio (escrito aos 85 anos!): "Ser crítica
em relação à poesia a ponto de renunciá-la,
obedecendo sua consciência, faz de você, nos quartéis
onde os poetas têm poder hierárquico, alguém
para se manter tão quieta quanto possível"(3).
O fato é
que Riding incomodou, antes e depois de sua renúncia
e crítica à poesia, que ela via como algo que
se estava se desviando cada vez mais de uma verdade humana
essencial para se transformar em big business, num teatro
de vaidades, em mais uma comodidade ou "profissão"
para alimentar um público ávido de ficções,
"estilos", "modismos", confissões
e entretenimentos. Em parte Riding estava certa: nos Estados
Unidos, pelo menos, Poesia é big business, e
este fenômeno se manifesta não só no mercado
editorial, na pletora de revistas e jornais de poesia, em
listas de endereços de poetas que mais parecem um catálogo
telefônico ou em manuais de "como-aprender-poesia-e-fazer-sucesso",
mas sobretudo na disseminação dos cursos de
"escrita criativa" das universidades norte-americanas,
em que se tenta provar que até mesmo uma pessoa sem
talento (e sem esforço) pode escrever poesia, mesmo
que seja uma poesia "média".
Difícil
acreditar como uma poeta tão incômoda, desconcertante
e original como Laura Riding continua marginalizada pelo establishment
literário em seu próprio país. A prova
de sua invisibilidade, seja no contexto da poesia modernista
norte-americana mais radical ou em seu papel seminal na elaboração
do "close reading", está no fato de sua poesia
não figurar, até pouquíssimo tempo, em
nenhuma das antologias canônicas de poesia moderna como
a Heath, a Harvard ou a Norton (4). Até dois anos atrás
havia apenas dois livros dedicados à sua obra (que
além de poesia e crítica, inclui novelas históricas,
contos, manifestos e um livro sobre linguagem): quase nada,
se compararmos com a interminável bibliografia dedicada
à Eliot, Pound, Stevens ou mesmo poetas mais recentes
como Sylvia Plath, Allen Ginsberg e Elizabeth Bishop (5).
Mas há mais problemas: não só os livros
de Riding ficaram por muito tempo esgotados como, até
há bem pouco, sua obra era vista como uma espécie
de apêndice da vida e obra de Robert Graves (6).
O termômetro
para se medir a descanonização de Laura Riding
pode ser observada na opinião de críticas influentes
como Helen Vendler-a diva da crítica de poesia norte-americana-que
escreveu recentemente: "Parece bem provável que
se Riding sobreviver, será mais como narradora (Progress
of Stories, A Trojan Ending) do que a poeta lírica
que ela queria ser"(7) . (Bem, resta perguntar a Vendler
se Riding algum dia pensou em ser uma poeta "lírica",
pelo menos nos termos neo-românticos e anti-modernistas
como os defendidos por críticos como ela e Harold Bloom).
Mesmo críticas atentas ao "make it new",
como a competente Marjorie Perloff , têm resistido a
reconhecer o mérito da obra de Riding, o que parece
ser mais uma rejeição à sua "rebeldia"-quer
dizer, em sua resistência em ser catalogada pelo establishment
literário-e em reação à sua personalidade
difícil do que boa-vontade de encarar os poemas belos
e desconcertantes que ela deixou. A própria Riding
alertava o leitor para ficar atento às mitificações
da figura do Poeta, apontando os perigos da institucionalização
e profissionalização da Poesia, no prefácio
de seus Collected Poems (1938):
O problema é
que, assim como os poetas transferiram a compulsão
da poesia para algo fora de si mesmos, os leitores têm
sido encorajados a transferir sua compulsão para
o poeta: o poeta, por sua vez, serve de musa para eles,
inspira as razões da poesia neles. E o resultado
é que os leitores se tornam mero instrumentos nos
quais o poeta toca suas belas melodias ao invés
de serem parceiros poéticos, iguais (411, italics
meus).
Antevendo a má-vontade
dos críticos em relação a seus poemas,
e numa relativização polêmica do ato criativo,
Riding escrevia com seu tom polêmico habitual a certa
altura de Anarchism is not Enough (1928):
O que é um
poema? Um poema é nada. Por persistência
o poema pode se tornar alguma coisa; mas então
passa a ser alguma coisa, não um poema.[...] Aonde
quer que este vácuo, o poema, ocorra, há
agitação de todos os lados para destruí-lo,
para convertê-lo em alguma coisa. A conversão
de coisa alguma em alguma coisa é tarefa da crítica".(18)
Mais recentemente, escritores
do calibre de um Paul Auster, Charles Bernstein e John Ashbery
têm sido capazes de identificar a originalidade de sua
poesia e bem mais dispostos a pensar seu ambicioso projeto
poético, que almejava revelar os bastidores da experiência
cognitiva. (Interessante, levando-se em conta que eles estão
entre os mais significativos escritores em atividade hoje
nos EUA). Ashbery dedicou uma conferência inteira a
sua poesia na Universidade de Harvard. Auster, um dos mais
perspicazes leitores da poesia de Riding, afirma que ela é
"a primeira poeta norte-americana a dar ao poema o valor
e a dignidade de uma luta. Voltado para dentro de si mesmo,
desafiando seu próprio direito de existir, o poema,
nas mãos dela, torna-se ato em vez de objeto, transparência
em vez de coisa" (8). Bernstein, na introdução
de um dos últimos livros de Riding, afirma que "nenhum
poeta norte-americano ou europeu deste século criou
uma obra que reflita mais sobre os conflitos entre a expressão
da verdade e o inevitável artifício da poesia"
(9). A verdade é, aceitando ou não argumentos
de sua contra-poética posterior, os poemas de
Riding tiveram impacto definitivo nas obras de Robert Graves,
W. H. Auden, Sylvia Plath, Ted Hughes, e Robert Duncan. Mais
recentemente, sua poesia e prosa têm estimulado poetas
como John Ashbery, bem como os chamados "Language poets".
Todos, diga-se de passagem, reconheceram a influência
de Riding.
POESIA
DO PENSAMENTO
Poucos poetas
neste século levaram a tal extremo as relações
entre poesia, linguagem e verdade do que Laura Riding. São
as relações conflituosas e tensas entre estes
três termos o que caracteriza sua poética, presente
tanto em sua atitude em relação à poesia
(antes e depois de 1938) quanto em seus poemas. Como sugere
Auster, pode-se dizer que a futura renúncia de Riding
já está de certo modo implícita nos poemas
que escreveu, na carne de linguagem de poemas como "O
Mundo e Eu" e "Poeta: Palavra Mentirosa" (traduzido
aqui), estando na base da poética rigorosa e inflexível
que estabeleceu como meta: fazer de cada poema "uma revelação
da verdade e de uma espécie tão geral que nome
nenhum a não ser poesia é adequado exceto verdade.
(10)" (407) A utopia de Riding implica, portanto, que
um poema digno de nota é incapaz de mentir.
Explorando
novas abordagens para a escrita e interpretação
da poesia, para além do "impersonalismo"
de Eliot ou do Imagismo de Pound, sua poética epistemológica
(por tratar das questões do conhecimento e da natureza
da realidade) representa, fundamentalmente, um desvio do paradigma
da Imagem para a Linguagem, enquanto se reconecta, de maneira
radical, com a tradição subversiva e introspectiva
de Gertrude Stein e Emily Dickinson. Como escreve Susan Howe
a respeito das duas últimas, Riding também foi
"ignorada por sua própria geração
devido à natureza radical de seu trabalho.(11)"
Poucas poetas como ela exploraram com tal persistência
os limites inerentes à linguagem humana.
A poesia
de Riding, radicalmente humanista, incomoda ao recusar elementos
que nos acostumamos a ver como intrínsecos ao ato de
escrever e ler poesia: seria possível imaginar uma
poética que fosse progressivamente se despindo de metáforas,
da linguagem figurada, de ambiguidades, de ênfase nas
convenções? Riding achava que sim. Esta recusa
também é uma resposta de uma modernista à
uma tradição poética "masculinista"
ainda presente no modernismo canônico de Eliot e Pound-que
transformava o Poeta em máscaras "impessoais"
e elegia a Imagem concreta como novo Símbolo, e que
tomava História, Mito, Religião e Política
como novas 'musas". Só sua crítica violenta
ao Imagismo-à idéia de poesia = imagem (e
que adquire uma significado ainda maior em nossa "sociedade
do espetáculo")-já seria o bastante para
situar Riding num modernismo de resistência, ou mesmo
num pós-modernismo avant-la-lettre, se a contrastarmos
com os parâmetros do poderoso cânone modernista
que estava sendo forjado então.
O desvio
do paradigma proposto pela poética anti-simbolista,
anti-mítica e anti-imagista de Riding é um fênomeno
único na história da poesia contemporânea,
se levarmos em consideração que, como nos lembra
Perloff, "de Blake a Hölderlin aos surrealistas
e mesmo depois, a imagem, em suas várias encarnações
enquanto representação pictórica, metáfora,
símbolo, ou ideograma Poundiano, tem sido entendida
como a própria essência do poético
(12). Que Perloff tenha sido incapaz de perceber esta característica
tão visivelmente implícita nos poemas de Riding
não deixa de ser surpreendente. Este contra-modernismo
aparece na poética da americana como uma rejeição
e um progressivo afastamento de convenções poéticas
presentes até mesmo no modernismo. É o que vai
levar sua poesia, paradoxalmente, a um beco-sem-saída:
progressivamente, sua poesia sofre um processo de des-metaforização
radical. É como se Riding forçasse a linguagem
a ser cada vez mais literal e menos literária;
reduzindo-a a seu "osso", despindo-a de metáforas,
imagens, símbolos e outros "implementos hostis
de sentido", de modo que cada poema dissesse apenas a
"verdade" essencial que ela buscava. Ao contrário
do que argumenta Dennis Rasmussen em Poetry and Truth
(The Hague: Mouton, 1974)-de que a natureza da poesia da verdade
são incompatíveis-Riding buscava em sua poesia
a "claridade intensiva" mais comum no discurso filosófico
e abstrato.
O que Riding
se recusou a perceber, creio, é que poesia, antes de
ser sinônimo de "verdade", seja lá
o que isso signifique, é uma arte, uma atividade lúdica
e, como tal, está sujeita a todos os erros e excessos
típicos desta arte da linguagem: o fascínio
pelos poderes polissêmicos e sensuais da linguagem poética,
além de qualquer Verdade ou Lógica, se tornavam
experiências que os limites rigorosos que impôs
a si mesma e à poesia não permitiriam. Primeiro
ela elegeu a poesia como igual à verdade. Depois, recusou
a poesia como não sendo mais o meio ideal para atingí-la,
dispensando-a completamente. Riding retomava assim, no século
20, a crítica platônica de que a poesia, por
ser fundamentalmente artificial e onde o sentido é
sempre potencialmente "outro", seria capaz apenas
de apresentar simulacros de verdade. Seu erro, creio, foi
forçar a definição de poesia como verdade,
pois a natureza da poesia não precisa, necessariamente,
ser correspondente à natureza da verdade. Ou, como
escreve Rasmussen:
Talvez a generalização
mais segura que se pode fazer com relação
à verdade proposicional na poesia é que
a poesia pode fazer uso da verdade proposicional enquanto
material, mas parece que não podemos esperar que
a poesia sempre vá oferecer, ou mesmo tentar
oferecer, proposições verdadeiras. Um poema
pode conter qualquer combinação de proposições
verdadeiras e falsas, dependendo do propósito
artístico do poeta.(13)"
Não se pode querer
simplesmente culpar os poetas e a poesia por não conseguirem
atingir o que não é, necessariamente, responsabilidade
da poesia. Riding parece ter esquecido as lições
preciosas lições que aprendeu com Philip Sidney
em Defesa da Poesia: a de que qualquer meio está
sujeito à usos e abusos. Quando isso ocorrer, não
será justo dizer que a Poesia é que terá
abusado da virtude humana, e sim que a virtude humana é
que terá abusado da Poesia.
Em termos formais, o que
primeiro chama a atenção nos poemas de Riding
é seu anti-romantismo (a recusa em ser "sentimental"),
uma persistente recusa à imagem aliada a uma persistente
problematização da linguagem, além de
uma preferência à abstrações ou
à idéia blakeana de "Pensamento é
Ação", em linha radicalmente oposta, portanto,
ao postulado do primeiro Pound ("evite abstrações,
elas obscurecem a imagem"). Como Riding não estava
interessada em imagens, ela se sente à vontade para
construir seus poemas como "mindscapes", ou pensagens:
paisagens do pensamento. Não surrealismo, mas algo
como um realismo da consciência em seu estado mais alerta.
Com sua linguagem freqüentemente abstrata, a experiência
de ler os poemas de Riding é a de estarmos acompanhando
o pensamento de "alguém" (da poeta?, da própria
linguagem?). A linguagem é quase sempre abstrata, e
os poemas se desenrolam de forma a apresentar e desenvolver
as implicações de um argumento ou uma proposição.
Os temas costumam ser a natureza da realidade, do ser humano
e da representação.
Na sua poesia, portanto,
o que ressalta é a palavra pensada, ou de como ela
se articula no processo de criação poética.
É uma poesia imprevisível e que força
o leitor a pensar, não apenas a apreciar, se deleitar
e bater palmas no fim. Como aponta Auster: "a voz está
menos se expressando alto do que pensando, seguindo o processo
complexo do pensamento e de tal forma que é quase imediatamente
internalizada por nós". Se sua poesia parece difícil,
é no sentido de que os poemas freqüentemente rompem
com nossas expectativas através de paradoxos e ironias
verbais: o "sentido", se existe, é algo que,
paradoxalmente, está e não está no poema;
é algo que não é obtido sem esforço,
e que deve ser reconstruído pelo leitor no ato de ler.
Só no transe da linguagem a verdade poética
pode ser comunicada. Em seus poemas, o sentido e os sentidos
são colocados num ringue: a luta entre silêncio
e significação atinge dimensões trágicas.
O risco da poesia fracassar reside em cada palavra. Ou como
ela mesma escreve no início de "O Mundo e Eu":
"Isto não é bem o que quero dizer, não
é só,/ Nada mais do que o sol é o sol./
Mas como dizer de modo mais certo/ Se o sol brilha tudo menos
perto?".
Na terminologia de um
de seus desafetos, Ezra Pound, poderíamos definir sua
poesia como logopéia: a dança sensual
da inteligência entre as palavras. Na poesia do pensamento
produzida por Riding há um esforço sobre-humano
para que as palavras sejam a mais perfeita tradução
dos pensamentos que originam e constituem a carne do poema.
A mente enquanto pensa, portanto, se torna a força
ativa do poema. O que importa, em Riding, não é
só o que ela diz mas como: sua dicção
(que foi imitada por vários poetas, de Auden a Ashbery),
sua maneira peculiar de apresentar seus temas e problemas.
A linguagem quase sempre é clara, mas repleta de "giros"
verbais e sintáticos, neologismos, paradoxos, contradições
e conflitos que afastam qualquer certeza de um sentido único.
Seus poemas sim mereceriam a designação de "poemas-idéias",
simplesmente porque eles sempre têm algo realmente interessante
e inusitado para dizer.
O que mais chama a atenção
nos poemas de Riding é essa consciência da arte
da linguagem e seu poder de criar novas realidades.
Ela definia sua poética já em seu primeiro ensaio
publicado (1925). Em "Uma Profecia ou um Apelo",
ela defende uma poesia menos como "insight" (introvisão)
e mais como "outsight" (ou "mindsight").
O conceito de "mindsight" evoca o poder que a poesia,
como forma de conhecimento visionário, tem de afetar
o mundo exterior do que meramente ser afetado por ele.
O poema surge, então, como um organismo ou criatura
em seu pleno direito de existir. Pode-se dizer, portanto,
que sua poética prega uma poesia do pensamento cujo
poder maior é retirar e dar ao mundo um sentido mais
humano, mais profundo. Mesmo os objetos naturais, quando aparecem
em seus poemas, deixam bem claro que estão sendo mediados
pela linguagem da mente que, como ela escreveu em "Por
uma Tosca Rotação" "não tem
como parar". (É isso que nos distingue dos outros
animais: nossas mentes estão em funcionamento 24 horas
por dia, sendo errônea, portanto, a idéia da
mente como algo separado do corpo (14)). No entanto, ao invés
de simplesmente se satisfazer em registrar as impressões
deixadas pelo mundo e a realidade em nós e traduzí-la
em forma de imagens e "iluminações"
epifânicas, para Riding o poeta tem a obrigação
de fazer o oposto: de pressionar sentido sobre a realidade
até seu limite, de mostrá-la como ela é
percebida pela linguagem durante o fenômeno poético.
É menos a idéia do poema como um filme a que
se assiste e mais a percepção do filme interior
de nossas mentes em funcionamento. É menos o registro
de um sonho ou delírio (como no surrealismo) e mais
um super-realismo da mente ativa, em ação, produzindo
linguagem e em seu estado mais alerta. Pode-se aplicar para
os poemas e a linguagem de Riding o que diz Charles Bernstein
em seu ensaio "Thought's Measure": nos poemas de
Laura Riding há "a idéia da linguagem não
como algo que acompanha mas sim que constitui o mundo.(15)"
Como dissemos, o nível
de abstração na poesia de Riding-o privilégio
do pensar sobre a visualização-está no
oposto do modernismo de Eliot e Pound, com a rejeição
imagista da retórica e da abstração.
Riding carrega em seus poemas, progressivamente, uma crítica
à representação, à idéia
da linguagem como descrição visual, como algo
transparente que nos conduz a imagens de coisas e experiências,
e não a experiência em si mesma (a experiência
humana por excelência, poderíamos dizer). É
uma situação exposta em poemas como "Abrir
de Olhos". Nos acostumamos a pensar sobre tudo, sobre
tudo o que está fora, mas nossa mente é "cega-de-si":
quando decide fazer sentido de si mesma, a mente enfrenta
um desafio: "o debate da consciência humana consigo
mesma sobre o que é possível e o que é
impossível" (Riding).
Como percebeu corretamente
Paul Auster,
De início é
difícil apreender toda a dimensão desses
poemas, entender os tipos de problemas com que estão
tentando lidar. Laura Riding não nos dá
quase nada para ver e essa ausência de imagens e
de detalhes sensórios, de qualquer superfície
real, é inicialmente desconcertante. Sentimo-nos
como se nos tivessem cegado. Mas isso é intencional
e desempenha um papel importante nos temas por ela desenvolvidos.
Seu desejo de ver é menor do que o de apreciar
a noção de visível.
Isto é plenamente
atingido num dos últimos poemas escritos por Riding,
o longo poema em prosa "Poeta: Palavra Mentirosa",
onde o texto se apresenta, literalmente, como um muro de palavras
a encarar e desafiar o leitor. O leitor é apresentado
não a belas paisagens, imagens, confissões,
"viagens", e sim confrontado com a própria
experiência de leitura, a este "agora" da
consciência. Além de ser um manifesto sobre a
"impossibilidade da poesia" e de prenunciar a atitude
posterior de Riding em relação à poesia,
o poema articula uma crítica ao discurso poético
do Romantismo, Simbolismo, e Imagismo. Em seus parágrafos,
o poema destrói expectativas e questiona a natureza
da representação da realidade bem como a necessidade
da poesia em ser "agradável" e "palatável".
O próprio texto (ou "poeta-muro") avisa ao
leitor o risco que ele corre ao insistir em sua posição
de consumidor passivo de imagens e de "imagens de experiências".
Ou, na linha de Wittgenstein, podemos dizer que há,
em seus poemas, a consciência inescapável de
que os limites da linguagem se constituem nos limites deste
mesmo mundo.
*
Notas:
___ (1) O termo pode ser
traduzido tanto como leitura "próxima", "fechada",
como "densa", cerrada, centrada no texto. Trata-se
de um método rigoroso de análise literária
intrínseca que teve, no Brasil, praticantes como Afrânio
Coutinho, Antonio Candido e mesmo jakobsonianos como Haroldo
de Campos, e que se detém em todos os aspectos formais
do poema. Seu auge, nos Estados Unidos, ocorreu nas décadas
de 40 e 50, embora seja hoje parte indispensável da
leitura de um poema.
___ (2) Em "Preface", Selected Poems in Five Sets.
New York: Persea Books, p. 15. 94 pp.
___ (3) Em "What, If Not a Poem, Poems?" The Denver
Quarterly, Summer 1986, v. 31, n. 1.
___ (4) O tratamento de Riding como uma espécie de
nota de rodapé da poesia modernista é flagrante
em livros como a Norton Anthology of Modern Poetry, onde ela
aparece pela primeira vez em 1973, com 6 poemas, para simplesmente
desaparecer nas edições posteriores. Riding
ressurge na Norton só em 1997, e ainda assim com apenas
dois poemas. David Perkins, nos dois grossos volumes que constituem
seu estudo A History of Modern Poetry, dedica apenas uma página
e meia para sua poesia. No Brasil, nem é preciso dizer,
Riding é totalmente desconhecida, não sendo
sequer citada pelos poetas concretos, por exemplo.
___ (5) Há uma biografia não-autorizada escrita
por Deborah Baker, In Extremis (New York: Grove Press, 1993).
Desde sua morte, em 1991, o interesse por sua obra vem crescendo
a cada ano, nos Estados Unidos e na Inglaterra. A biógrafa
oficial de Riding, Elizabeth Friedmann, informa que este ano
a Random House publicará sua biografia autorizada,
uma coletânea de seus ensaios críticos mais importantes
(The Laura (Riding) Jackson Reader), bem como a importante
correspondência entre Riding e Gertrude Stein. O poeta
e crítico britânico Mark Jacobs também
acaba de lançar um livro sobre sua poesia. No ano retrasado
foi publicado uma reedição de Anarchism is not
Enough, organizada pela poeta e crítica Lisa Samuels,
além de seu estudo Poetic Arrest: Laura Riding, Wallace
Stevens, and the Modernist Afterlife.
___ (6) Riding and Graves mantiveram uma parceria intelectual
e emocional por 14 anos (alguns críticos apontam Riding
como a "musa inspiradora" de Graves para seu clássico
estudo sobre a Deusa Branca, The White Goddess, de 1948).
___ (7) Em "The White Goddess!", New York Review
of Books, 18 de novembro de 1993, p. 12.
___ (8) Em The Art of Hunger,
___ (9) In "Itinerary," Chelsea 33. September 1974.
p. 169-170
___ (10) Em "To the Reader", prefácio a Collected
Poems, 1938
___ (11) Em My Emily Dickinson, Berkeley: North Atlantic Books,
1985. p. 14
___ (12) Em Radical Arifice: Writing in the Age of Media (,
(Chicago: The University of Chicago Press, 1991) p. 57. Italics
meus.
___ (13) The Hague: Mouton. 1974. p. 15. 123 pp. Italics meus.
___ (14) George Lakoff e Mark Johnson exploram de modo fascinante
a noção de mente corporal em Philosophy in the
Flesh, (New York: Basic Bosks, 1999) a descoberta de que "[a]
razão humana é uma forma de razão animal,
uma razão inextricavelmente ligada a nossos corpos
e às peculiaridades de nossos cérebros."
p. 17
___ (15) Em Content's Dream. Los Angeles: Sun & Moon Press,
1982. p. 62
*
Rodrigo Garcia Lopes,
poeta, jornalista e tradutor, nasceu em Londrina (PR), em
1965. É autor de Solarium (1994), visibilia
(1997), Polivox: poemas 1997-2001 (2001), Poemas
Selecionados (1984-2001) e Nômada (2004),
entre outros títulos. É um dos editores da revista
Coyote.
*
Leia um
poema de Laura Riding.
Leia também poemas
de Rodrigo Garcia Lopes e um ensaio
sobre Nômada.
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