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PENSAGENS: A POESIA DE LAURA RIDING

 

por Rodrigo Garcia Lopes


"Há um sentido de vida tão real que se torna o sentido de algo mais real que a vida.
[...] É o sentido operando no que não tem sentido; é, em seu modo mais claro, poesia."

(Laura Riding, Contemporaries and Snobs, 1928)

 

Na história da poesia moderna anglo-americana um capítulo à parte deveria ser escrito para o caso extraordinário de Laura Riding. A peculiaridade de sua obra fica evidenciada na dificuldade que os críticos têm encontrado para definir sua poesia: "poesia da Nova Crítica", "poesia neo-Metafísica", "epistemológica", "pós-moderna avant-la-lettre", "pré-L=a=n=g=u=a=g=e".

Reconhecida como um importante e influente nome da vanguarda dos anos 20 e 30 e, de forma não-reconhecida, como co-inventora, com Robert Graves, do método de "close reading "(1)-posteriormente "apropriado" por William Empson e pela Nova Crítica-Laura Riding renunciou à poesia no auge de sua carreira, pouco depois da publicação de Collected Poems (1938), num gesto radical que tem sido, ironicamente, mais discutido do que seus poemas. Ela se afastou da cena literária até 1962, quando publicou alguns ensaios nas páginas da revista Chelsea onde refletia sobre sua decisão. Também comprou brigas homéricas com críticos que tentavam "decifrar" sua poesia e sua polêmica renúncia. Porém, críticos e poetas relutaram em respeitar sua posição e a descoberta de que "a verdade começa onde a poesia termina"(2) , insistindo em fazer dela uma espécie de Rimbaud ou Greta Garbo das letras americanas. O vocabulário para caracterizá-la, vindo de figuras como Virginia Woolf, Yeats, e Williams, deliciaria Michel Foucault: "louca", "bizarra", "bruxa", "puta premiada", "excêntrica", "anomalia"... Mas Riding tinha consciência da política mesquinha dos bastidores literários: seu tom desafiador era apenas uma mostra de que ela se recusava a fazer parte tanto do clube fechado dos modernistas quanto dos jogos e "negociações" da política literária de seu tempo. Como ela colocou num ensaio (escrito aos 85 anos!): "Ser crítica em relação à poesia a ponto de renunciá-la, obedecendo sua consciência, faz de você, nos quartéis onde os poetas têm poder hierárquico, alguém para se manter tão quieta quanto possível"(3).

O fato é que Riding incomodou, antes e depois de sua renúncia e crítica à poesia, que ela via como algo que se estava se desviando cada vez mais de uma verdade humana essencial para se transformar em big business, num teatro de vaidades, em mais uma comodidade ou "profissão" para alimentar um público ávido de ficções, "estilos", "modismos", confissões e entretenimentos. Em parte Riding estava certa: nos Estados Unidos, pelo menos, Poesia é big business, e este fenômeno se manifesta não só no mercado editorial, na pletora de revistas e jornais de poesia, em listas de endereços de poetas que mais parecem um catálogo telefônico ou em manuais de "como-aprender-poesia-e-fazer-sucesso", mas sobretudo na disseminação dos cursos de "escrita criativa" das universidades norte-americanas, em que se tenta provar que até mesmo uma pessoa sem talento (e sem esforço) pode escrever poesia, mesmo que seja uma poesia "média".

Difícil acreditar como uma poeta tão incômoda, desconcertante e original como Laura Riding continua marginalizada pelo establishment literário em seu próprio país. A prova de sua invisibilidade, seja no contexto da poesia modernista norte-americana mais radical ou em seu papel seminal na elaboração do "close reading", está no fato de sua poesia não figurar, até pouquíssimo tempo, em nenhuma das antologias canônicas de poesia moderna como a Heath, a Harvard ou a Norton (4). Até dois anos atrás havia apenas dois livros dedicados à sua obra (que além de poesia e crítica, inclui novelas históricas, contos, manifestos e um livro sobre linguagem): quase nada, se compararmos com a interminável bibliografia dedicada à Eliot, Pound, Stevens ou mesmo poetas mais recentes como Sylvia Plath, Allen Ginsberg e Elizabeth Bishop (5). Mas há mais problemas: não só os livros de Riding ficaram por muito tempo esgotados como, até há bem pouco, sua obra era vista como uma espécie de apêndice da vida e obra de Robert Graves (6).

O termômetro para se medir a descanonização de Laura Riding pode ser observada na opinião de críticas influentes como Helen Vendler-a diva da crítica de poesia norte-americana-que escreveu recentemente: "Parece bem provável que se Riding sobreviver, será mais como narradora (Progress of Stories, A Trojan Ending) do que a poeta lírica que ela queria ser"(7) . (Bem, resta perguntar a Vendler se Riding algum dia pensou em ser uma poeta "lírica", pelo menos nos termos neo-românticos e anti-modernistas como os defendidos por críticos como ela e Harold Bloom). Mesmo críticas atentas ao "make it new", como a competente Marjorie Perloff , têm resistido a reconhecer o mérito da obra de Riding, o que parece ser mais uma rejeição à sua "rebeldia"-quer dizer, em sua resistência em ser catalogada pelo establishment literário-e em reação à sua personalidade difícil do que boa-vontade de encarar os poemas belos e desconcertantes que ela deixou. A própria Riding alertava o leitor para ficar atento às mitificações da figura do Poeta, apontando os perigos da institucionalização e profissionalização da Poesia, no prefácio de seus Collected Poems (1938):

O problema é que, assim como os poetas transferiram a compulsão da poesia para algo fora de si mesmos, os leitores têm sido encorajados a transferir sua compulsão para o poeta: o poeta, por sua vez, serve de musa para eles, inspira as razões da poesia neles. E o resultado é que os leitores se tornam mero instrumentos nos quais o poeta toca suas belas melodias ao invés de serem parceiros poéticos, iguais (411, italics meus).

Antevendo a má-vontade dos críticos em relação a seus poemas, e numa relativização polêmica do ato criativo, Riding escrevia com seu tom polêmico habitual a certa altura de Anarchism is not Enough (1928):

O que é um poema? Um poema é nada. Por persistência o poema pode se tornar alguma coisa; mas então passa a ser alguma coisa, não um poema.[...] Aonde quer que este vácuo, o poema, ocorra, há agitação de todos os lados para destruí-lo, para convertê-lo em alguma coisa. A conversão de coisa alguma em alguma coisa é tarefa da crítica".(18)

Mais recentemente, escritores do calibre de um Paul Auster, Charles Bernstein e John Ashbery têm sido capazes de identificar a originalidade de sua poesia e bem mais dispostos a pensar seu ambicioso projeto poético, que almejava revelar os bastidores da experiência cognitiva. (Interessante, levando-se em conta que eles estão entre os mais significativos escritores em atividade hoje nos EUA). Ashbery dedicou uma conferência inteira a sua poesia na Universidade de Harvard. Auster, um dos mais perspicazes leitores da poesia de Riding, afirma que ela é "a primeira poeta norte-americana a dar ao poema o valor e a dignidade de uma luta. Voltado para dentro de si mesmo, desafiando seu próprio direito de existir, o poema, nas mãos dela, torna-se ato em vez de objeto, transparência em vez de coisa" (8). Bernstein, na introdução de um dos últimos livros de Riding, afirma que "nenhum poeta norte-americano ou europeu deste século criou uma obra que reflita mais sobre os conflitos entre a expressão da verdade e o inevitável artifício da poesia" (9). A verdade é, aceitando ou não argumentos de sua contra-poética posterior, os poemas de Riding tiveram impacto definitivo nas obras de Robert Graves, W. H. Auden, Sylvia Plath, Ted Hughes, e Robert Duncan. Mais recentemente, sua poesia e prosa têm estimulado poetas como John Ashbery, bem como os chamados "Language poets". Todos, diga-se de passagem, reconheceram a influência de Riding.

 

POESIA DO PENSAMENTO

 

Poucos poetas neste século levaram a tal extremo as relações entre poesia, linguagem e verdade do que Laura Riding. São as relações conflituosas e tensas entre estes três termos o que caracteriza sua poética, presente tanto em sua atitude em relação à poesia (antes e depois de 1938) quanto em seus poemas. Como sugere Auster, pode-se dizer que a futura renúncia de Riding já está de certo modo implícita nos poemas que escreveu, na carne de linguagem de poemas como "O Mundo e Eu" e "Poeta: Palavra Mentirosa" (traduzido aqui), estando na base da poética rigorosa e inflexível que estabeleceu como meta: fazer de cada poema "uma revelação da verdade e de uma espécie tão geral que nome nenhum a não ser poesia é adequado exceto verdade. (10)" (407) A utopia de Riding implica, portanto, que um poema digno de nota é incapaz de mentir.

Explorando novas abordagens para a escrita e interpretação da poesia, para além do "impersonalismo" de Eliot ou do Imagismo de Pound, sua poética epistemológica (por tratar das questões do conhecimento e da natureza da realidade) representa, fundamentalmente, um desvio do paradigma da Imagem para a Linguagem, enquanto se reconecta, de maneira radical, com a tradição subversiva e introspectiva de Gertrude Stein e Emily Dickinson. Como escreve Susan Howe a respeito das duas últimas, Riding também foi "ignorada por sua própria geração devido à natureza radical de seu trabalho.(11)" Poucas poetas como ela exploraram com tal persistência os limites inerentes à linguagem humana.

A poesia de Riding, radicalmente humanista, incomoda ao recusar elementos que nos acostumamos a ver como intrínsecos ao ato de escrever e ler poesia: seria possível imaginar uma poética que fosse progressivamente se despindo de metáforas, da linguagem figurada, de ambiguidades, de ênfase nas convenções? Riding achava que sim. Esta recusa também é uma resposta de uma modernista à uma tradição poética "masculinista" ainda presente no modernismo canônico de Eliot e Pound-que transformava o Poeta em máscaras "impessoais" e elegia a Imagem concreta como novo Símbolo, e que tomava História, Mito, Religião e Política como novas 'musas". Só sua crítica violenta ao Imagismo-à idéia de poesia = imagem (e que adquire uma significado ainda maior em nossa "sociedade do espetáculo")-já seria o bastante para situar Riding num modernismo de resistência, ou mesmo num pós-modernismo avant-la-lettre, se a contrastarmos com os parâmetros do poderoso cânone modernista que estava sendo forjado então.

O desvio do paradigma proposto pela poética anti-simbolista, anti-mítica e anti-imagista de Riding é um fênomeno único na história da poesia contemporânea, se levarmos em consideração que, como nos lembra Perloff, "de Blake a Hölderlin aos surrealistas e mesmo depois, a imagem, em suas várias encarnações enquanto representação pictórica, metáfora, símbolo, ou ideograma Poundiano, tem sido entendida como a própria essência do poético (12). Que Perloff tenha sido incapaz de perceber esta característica tão visivelmente implícita nos poemas de Riding não deixa de ser surpreendente. Este contra-modernismo aparece na poética da americana como uma rejeição e um progressivo afastamento de convenções poéticas presentes até mesmo no modernismo. É o que vai levar sua poesia, paradoxalmente, a um beco-sem-saída: progressivamente, sua poesia sofre um processo de des-metaforização radical. É como se Riding forçasse a linguagem a ser cada vez mais literal e menos literária; reduzindo-a a seu "osso", despindo-a de metáforas, imagens, símbolos e outros "implementos hostis de sentido", de modo que cada poema dissesse apenas a "verdade" essencial que ela buscava. Ao contrário do que argumenta Dennis Rasmussen em Poetry and Truth (The Hague: Mouton, 1974)-de que a natureza da poesia da verdade são incompatíveis-Riding buscava em sua poesia a "claridade intensiva" mais comum no discurso filosófico e abstrato.

O que Riding se recusou a perceber, creio, é que poesia, antes de ser sinônimo de "verdade", seja lá o que isso signifique, é uma arte, uma atividade lúdica e, como tal, está sujeita a todos os erros e excessos típicos desta arte da linguagem: o fascínio pelos poderes polissêmicos e sensuais da linguagem poética, além de qualquer Verdade ou Lógica, se tornavam experiências que os limites rigorosos que impôs a si mesma e à poesia não permitiriam. Primeiro ela elegeu a poesia como igual à verdade. Depois, recusou a poesia como não sendo mais o meio ideal para atingí-la, dispensando-a completamente. Riding retomava assim, no século 20, a crítica platônica de que a poesia, por ser fundamentalmente artificial e onde o sentido é sempre potencialmente "outro", seria capaz apenas de apresentar simulacros de verdade. Seu erro, creio, foi forçar a definição de poesia como verdade, pois a natureza da poesia não precisa, necessariamente, ser correspondente à natureza da verdade. Ou, como escreve Rasmussen:

Talvez a generalização mais segura que se pode fazer com relação à verdade proposicional na poesia é que a poesia pode fazer uso da verdade proposicional enquanto material, mas parece que não podemos esperar que a poesia sempre vá oferecer, ou mesmo tentar oferecer, proposições verdadeiras. Um poema pode conter qualquer combinação de proposições verdadeiras e falsas, dependendo do propósito artístico do poeta.(13)"

Não se pode querer simplesmente culpar os poetas e a poesia por não conseguirem atingir o que não é, necessariamente, responsabilidade da poesia. Riding parece ter esquecido as lições preciosas lições que aprendeu com Philip Sidney em Defesa da Poesia: a de que qualquer meio está sujeito à usos e abusos. Quando isso ocorrer, não será justo dizer que a Poesia é que terá abusado da virtude humana, e sim que a virtude humana é que terá abusado da Poesia.

Em termos formais, o que primeiro chama a atenção nos poemas de Riding é seu anti-romantismo (a recusa em ser "sentimental"), uma persistente recusa à imagem aliada a uma persistente problematização da linguagem, além de uma preferência à abstrações ou à idéia blakeana de "Pensamento é Ação", em linha radicalmente oposta, portanto, ao postulado do primeiro Pound ("evite abstrações, elas obscurecem a imagem"). Como Riding não estava interessada em imagens, ela se sente à vontade para construir seus poemas como "mindscapes", ou pensagens: paisagens do pensamento. Não surrealismo, mas algo como um realismo da consciência em seu estado mais alerta. Com sua linguagem freqüentemente abstrata, a experiência de ler os poemas de Riding é a de estarmos acompanhando o pensamento de "alguém" (da poeta?, da própria linguagem?). A linguagem é quase sempre abstrata, e os poemas se desenrolam de forma a apresentar e desenvolver as implicações de um argumento ou uma proposição. Os temas costumam ser a natureza da realidade, do ser humano e da representação.

Na sua poesia, portanto, o que ressalta é a palavra pensada, ou de como ela se articula no processo de criação poética. É uma poesia imprevisível e que força o leitor a pensar, não apenas a apreciar, se deleitar e bater palmas no fim. Como aponta Auster: "a voz está menos se expressando alto do que pensando, seguindo o processo complexo do pensamento e de tal forma que é quase imediatamente internalizada por nós". Se sua poesia parece difícil, é no sentido de que os poemas freqüentemente rompem com nossas expectativas através de paradoxos e ironias verbais: o "sentido", se existe, é algo que, paradoxalmente, está e não está no poema; é algo que não é obtido sem esforço, e que deve ser reconstruído pelo leitor no ato de ler. Só no transe da linguagem a verdade poética pode ser comunicada. Em seus poemas, o sentido e os sentidos são colocados num ringue: a luta entre silêncio e significação atinge dimensões trágicas. O risco da poesia fracassar reside em cada palavra. Ou como ela mesma escreve no início de "O Mundo e Eu": "Isto não é bem o que quero dizer, não é só,/ Nada mais do que o sol é o sol./ Mas como dizer de modo mais certo/ Se o sol brilha tudo menos perto?".

Na terminologia de um de seus desafetos, Ezra Pound, poderíamos definir sua poesia como logopéia: a dança sensual da inteligência entre as palavras. Na poesia do pensamento produzida por Riding há um esforço sobre-humano para que as palavras sejam a mais perfeita tradução dos pensamentos que originam e constituem a carne do poema. A mente enquanto pensa, portanto, se torna a força ativa do poema. O que importa, em Riding, não é só o que ela diz mas como: sua dicção (que foi imitada por vários poetas, de Auden a Ashbery), sua maneira peculiar de apresentar seus temas e problemas. A linguagem quase sempre é clara, mas repleta de "giros" verbais e sintáticos, neologismos, paradoxos, contradições e conflitos que afastam qualquer certeza de um sentido único. Seus poemas sim mereceriam a designação de "poemas-idéias", simplesmente porque eles sempre têm algo realmente interessante e inusitado para dizer.

O que mais chama a atenção nos poemas de Riding é essa consciência da arte da linguagem e seu poder de criar novas realidades. Ela definia sua poética já em seu primeiro ensaio publicado (1925). Em "Uma Profecia ou um Apelo", ela defende uma poesia menos como "insight" (introvisão) e mais como "outsight" (ou "mindsight"). O conceito de "mindsight" evoca o poder que a poesia, como forma de conhecimento visionário, tem de afetar o mundo exterior do que meramente ser afetado por ele. O poema surge, então, como um organismo ou criatura em seu pleno direito de existir. Pode-se dizer, portanto, que sua poética prega uma poesia do pensamento cujo poder maior é retirar e dar ao mundo um sentido mais humano, mais profundo. Mesmo os objetos naturais, quando aparecem em seus poemas, deixam bem claro que estão sendo mediados pela linguagem da mente que, como ela escreveu em "Por uma Tosca Rotação" "não tem como parar". (É isso que nos distingue dos outros animais: nossas mentes estão em funcionamento 24 horas por dia, sendo errônea, portanto, a idéia da mente como algo separado do corpo (14)). No entanto, ao invés de simplesmente se satisfazer em registrar as impressões deixadas pelo mundo e a realidade em nós e traduzí-la em forma de imagens e "iluminações" epifânicas, para Riding o poeta tem a obrigação de fazer o oposto: de pressionar sentido sobre a realidade até seu limite, de mostrá-la como ela é percebida pela linguagem durante o fenômeno poético. É menos a idéia do poema como um filme a que se assiste e mais a percepção do filme interior de nossas mentes em funcionamento. É menos o registro de um sonho ou delírio (como no surrealismo) e mais um super-realismo da mente ativa, em ação, produzindo linguagem e em seu estado mais alerta. Pode-se aplicar para os poemas e a linguagem de Riding o que diz Charles Bernstein em seu ensaio "Thought's Measure": nos poemas de Laura Riding há "a idéia da linguagem não como algo que acompanha mas sim que constitui o mundo.(15)"

Como dissemos, o nível de abstração na poesia de Riding-o privilégio do pensar sobre a visualização-está no oposto do modernismo de Eliot e Pound, com a rejeição imagista da retórica e da abstração. Riding carrega em seus poemas, progressivamente, uma crítica à representação, à idéia da linguagem como descrição visual, como algo transparente que nos conduz a imagens de coisas e experiências, e não a experiência em si mesma (a experiência humana por excelência, poderíamos dizer). É uma situação exposta em poemas como "Abrir de Olhos". Nos acostumamos a pensar sobre tudo, sobre tudo o que está fora, mas nossa mente é "cega-de-si": quando decide fazer sentido de si mesma, a mente enfrenta um desafio: "o debate da consciência humana consigo mesma sobre o que é possível e o que é impossível" (Riding).

Como percebeu corretamente Paul Auster,

De início é difícil apreender toda a dimensão desses poemas, entender os tipos de problemas com que estão tentando lidar. Laura Riding não nos dá quase nada para ver e essa ausência de imagens e de detalhes sensórios, de qualquer superfície real, é inicialmente desconcertante. Sentimo-nos como se nos tivessem cegado. Mas isso é intencional e desempenha um papel importante nos temas por ela desenvolvidos. Seu desejo de ver é menor do que o de apreciar a noção de visível.

Isto é plenamente atingido num dos últimos poemas escritos por Riding, o longo poema em prosa "Poeta: Palavra Mentirosa", onde o texto se apresenta, literalmente, como um muro de palavras a encarar e desafiar o leitor. O leitor é apresentado não a belas paisagens, imagens, confissões, "viagens", e sim confrontado com a própria experiência de leitura, a este "agora" da consciência. Além de ser um manifesto sobre a "impossibilidade da poesia" e de prenunciar a atitude posterior de Riding em relação à poesia, o poema articula uma crítica ao discurso poético do Romantismo, Simbolismo, e Imagismo. Em seus parágrafos, o poema destrói expectativas e questiona a natureza da representação da realidade bem como a necessidade da poesia em ser "agradável" e "palatável". O próprio texto (ou "poeta-muro") avisa ao leitor o risco que ele corre ao insistir em sua posição de consumidor passivo de imagens e de "imagens de experiências". Ou, na linha de Wittgenstein, podemos dizer que há, em seus poemas, a consciência inescapável de que os limites da linguagem se constituem nos limites deste mesmo mundo.

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Notas:

___ (1) O termo pode ser traduzido tanto como leitura "próxima", "fechada", como "densa", cerrada, centrada no texto. Trata-se de um método rigoroso de análise literária intrínseca que teve, no Brasil, praticantes como Afrânio Coutinho, Antonio Candido e mesmo jakobsonianos como Haroldo de Campos, e que se detém em todos os aspectos formais do poema. Seu auge, nos Estados Unidos, ocorreu nas décadas de 40 e 50, embora seja hoje parte indispensável da leitura de um poema.
___ (2) Em "Preface", Selected Poems in Five Sets. New York: Persea Books, p. 15. 94 pp.
___ (3) Em "What, If Not a Poem, Poems?" The Denver Quarterly, Summer 1986, v. 31, n. 1.
___ (4) O tratamento de Riding como uma espécie de nota de rodapé da poesia modernista é flagrante em livros como a Norton Anthology of Modern Poetry, onde ela aparece pela primeira vez em 1973, com 6 poemas, para simplesmente desaparecer nas edições posteriores. Riding ressurge na Norton só em 1997, e ainda assim com apenas dois poemas. David Perkins, nos dois grossos volumes que constituem seu estudo A History of Modern Poetry, dedica apenas uma página e meia para sua poesia. No Brasil, nem é preciso dizer, Riding é totalmente desconhecida, não sendo sequer citada pelos poetas concretos, por exemplo.
___ (5) Há uma biografia não-autorizada escrita por Deborah Baker, In Extremis (New York: Grove Press, 1993). Desde sua morte, em 1991, o interesse por sua obra vem crescendo a cada ano, nos Estados Unidos e na Inglaterra. A biógrafa oficial de Riding, Elizabeth Friedmann, informa que este ano a Random House publicará sua biografia autorizada, uma coletânea de seus ensaios críticos mais importantes (The Laura (Riding) Jackson Reader), bem como a importante correspondência entre Riding e Gertrude Stein. O poeta e crítico britânico Mark Jacobs também acaba de lançar um livro sobre sua poesia. No ano retrasado foi publicado uma reedição de Anarchism is not Enough, organizada pela poeta e crítica Lisa Samuels, além de seu estudo Poetic Arrest: Laura Riding, Wallace Stevens, and the Modernist Afterlife.
___ (6) Riding and Graves mantiveram uma parceria intelectual e emocional por 14 anos (alguns críticos apontam Riding como a "musa inspiradora" de Graves para seu clássico estudo sobre a Deusa Branca, The White Goddess, de 1948).
___ (7) Em "The White Goddess!", New York Review of Books, 18 de novembro de 1993, p. 12.
___ (8) Em The Art of Hunger,
___ (9) In "Itinerary," Chelsea 33. September 1974. p. 169-170
___ (10) Em "To the Reader", prefácio a Collected Poems, 1938
___ (11) Em My Emily Dickinson, Berkeley: North Atlantic Books, 1985. p. 14
___ (12) Em Radical Arifice: Writing in the Age of Media (, (Chicago: The University of Chicago Press, 1991) p. 57. Italics meus.
___ (13) The Hague: Mouton. 1974. p. 15. 123 pp. Italics meus.
___ (14) George Lakoff e Mark Johnson exploram de modo fascinante a noção de mente corporal em Philosophy in the Flesh, (New York: Basic Bosks, 1999) a descoberta de que "[a] razão humana é uma forma de razão animal, uma razão inextricavelmente ligada a nossos corpos e às peculiaridades de nossos cérebros." p. 17
___ (15) Em Content's Dream. Los Angeles: Sun & Moon Press, 1982. p. 62


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Rodrigo Garcia Lopes, poeta, jornalista e tradutor, nasceu em Londrina (PR), em 1965. É autor de Solarium (1994), visibilia (1997), Polivox: poemas 1997-2001 (2001), Poemas Selecionados (1984-2001) e Nômada (2004), entre outros títulos. É um dos editores da revista Coyote.

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Leia um poema de Laura Riding.

Leia também poemas de Rodrigo Garcia Lopes e um ensaio sobre Nômada.

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