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TELEGRAMA NA ÁGUA: ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A POESIA
DE FREDERICO BARBOSA



Fabiano Calixto



O pernambucano Frederico Barbosa é um dos poetas mais instigantes no panorama de poesia brasileira dos últimos muitos anos. Tem cinco livros publicados - Rarefato (Iluminuras, 1990), Nada feito nada (Perspectiva, 1993), Contracorrente (Iluminuras, 2000), Louco no oco sem beiras - Anatomia da depressão (Ateliê Editorial, 2001), Cantar de amor entre os escombros (Landy, 2002) - e um ainda inédito: Brasibraseiro, escrito em 2001, em parceria com o poeta e antropólogo baiano Antonio Risério. Em cada um de seus livros pode-se notar a permanente preocupação com a busca por uma novidade, não a novidade absoluta (aquela que, pregam a norte e sul, não existe) e sim uma novidade, esta mais complexa, em sua própria trajetória, isto é, sua poesia não estanca, em momento nenhum, e explora, muitas vezes drasticamente, muitas possibilidades dentro desse campo do, como diria Augusto de Campos, pós-tudo, dentro dessa realidade do pós-fazer. Cada um de seus livros é uma revelação, um apocalipse lingüístico gerado pelo fogo próprio da procura, pela escrita à Cabral da faca só lâmina. Não nos impressiona perceber a imensa diferença de feitura e de alvos, sem perder, entretanto, a dicção própria, entre, por exemplo, Rarefato e Contracorrente, ou Nada feito nada e Louco no oco sem beiras. Não, porquanto que, de certo modo, compreende-se essas mudanças de rumos dentro da unidade que o poeta quis para sua obra, e este fato, creio, enriquecedor, é um dos destaques de sua poesia. Há sempre a surpresa em cada trabalho e, entendo, a surpresa é sempre bem-vinda, ao contrário de outra sensação que alguns livros nos causam: o tédio. O tédio faz-se presente quando o resultado da "nova" fatura é, em verdade, um apanhado de restos que, outrora, não serviram e que, no momento de um passo à frente, enchem as folhas do "novo" objeto, ou seja, os "novos" poemas continuam dentro de mesmíssimas formulações, de idênticas soluções etc., neste caso o "novo" é velho. Dessa falta de criatividade Frederico Barbosa não sofre.

Todas as estradas criativas, cuja paisagem é a melhor literatura - veja-se, para ilustrar, os poemas "Certa biblioteca pessoal 1978" e "Certa biblioteca pessoal 1991", ambos publicados em Nada feito nada, que citam as leituras do poeta: a prosa de Edgard Allan Poe, Lewis Carrol, Franz Kafka, James Joyce, Samuel Beckett; a poesia de T.S. Eliot, Ezra Pound, e.e. cummings, Sousândrade, João Cabral de Melo Neto, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Paulo Leminski etc. etc. etc. -, foram cruzadas pela mente inventiva de Frederico Barbosa. E dessa experiência ele funda sua poesia, que vem de uma aguda leitura de clássicos e não de uma desleixada apreciação de lombadas. Essa é a grande diferença, o poeta culto que lança mão de artifícios vários na procura do artefato que não se reduza a fôrmas e tenha aquilo que tanto preza: a reinvenção constante da linguagem artística.

Seu primeiro livro, Rarefato, publicado há mais de uma década, e com poemas que datam de muito antes (alguns dos anos 70), demonstram a calma que teve (o autor) em relação à publicação - atitude madura de quem primeiro escreve poemas e depois os veste em livro, ao inverso do que muito se constata em nossa cena: muitos poetas publicando livros antes de escrever poemas.

Penso em Rarefato como seu mais bem elaborado poemário. Um trabalho experimental e inteligente e, acima de qualquer coisa, morada de uma coleção de belos poemas.

Nenhuma é a primeira palavra do conjunto e poema é a derradeira. A primeira é a razão da segunda: a recusa em favor do poema. O sentido de negação, de rejeição - palavras caras aos artistas que se prezam -, imprime-se aqui (e, no geral, em toda a obra em questão) como fator crucial (fato raro/ raro e fato: ecos do título). O autor recusa, sim, o falsete, a falácia, a musiqueta frouxa que certa poesia engravatada, bufona e midiática pratica.

Em um dos momentos altos, "Ao leitor - aquele de Baudelaire", lê-se: "seus olhos buscando/ brincando no meu poema// nu/ poema// meu dia buscando/ (no ar)/ sua leitura minha/ do seu meu poema// meus olhos buscando/ nos seus// um outro poema", aqui o poeta quer "antes de tudo a música. preza/ portanto, o ímpar, só cabe usar/ o que é mais vago e solúvel no ar,/ sem nada em si que pousa ou que pesa. " (tradução: Augusto de Campos), id est, em sua partitura, não mais que as notas e pausas necessárias. A construção permite a teia em que o substantivo poema e os pronomes possessivos se aproximem de um jogo lírico, trilha em que o verbo brincar ajuda a traçar, e o que se tem é uma busca incansável (ressalte-se o uso do verbo buscar em três momentos diferentes) do poema, a investigação laboratorial do fazedor.

Entre a experimentação e o lirismo, a experiência do sujeito e a conjugação do coletivo, entre a cruz da invenção e a luz da tradição, Frederico Barbosa dá início ao diálogo com seu tempo e, principalmente, com seu leitor, promovendo aquilo que Ezra Pound tanto prezava: conversation between intelligent men.

Em Nada feito nada, há uma forte acentuação de certos procedimentos da poesia concreta, sem cair, em momento algum, no epigonismo ou mesmo na rua sem saída das soluções estéticas - note-se, exempli gratia, a presença de dois acrósticos e um soneto, formas, digamos, mais tradicionais e, para alguns, quadradas e antiquadas (bem, do acróstico pode-se até concordar, mas como dizer que são antiquados os geniais sonetos do paulista Glauco Mattoso?). Leitor consciente que é, repita-se, o poeta projeta, nesta nova seleta, o que deslocou do mundo dos livros - o mundo dos vivos, o mundo do pensamento crítico e do prazer transcendental - para seu trabalho poético. E o resultado não poderia ser melhor, Nada feito nada é um grande livro por pensar a literatura através de suas contradições e ousar, no sentido amplo do verbo, colocar na mesma poça a água límpida da grande literatura, a água turva, porém necessária, do coloquial, da vida e as pérolas, ali geradas, da linguagem.

Após uma primeira leitura no todo da coletânea, uma peça marca, logo, pela riqueza de acabamento: "Sem nem". Trata-se de um poema longo, que ocupa e oferece título a uma seção inteira, impresso em colunas-estrofe à extremidade das páginas verde-água e totalizando dez estrofes. Cada estrofe é composta por vinte e um versos e o ritmo e o corte é ditado pelo espaço, quer dizer, cada célula tem lugar para dez letras, após o preenchimento desse espaço, outro verso é cultivado. "sem crer e/ m nada sem/ a mais vag/ a esperanç/ a de mudar/ algo assim/ parado sem/ forças par/ a levantar/ um grito o/ u mesmo fa/ lar com ca/ lma a resp/ eito de sa/ ídas possí/ veis nessa/ coisa seca/ sempre cri/ se eternam/ ente esper/ ando o fim", está é a stanza inicial deste contundente poema onde a leitura quebrada provoca inúmeros ecos e nos faz ir lentamente, como reflexo da angústia depositada nos versos, amarguradamente. Assim o trabalho caminha até sua conclusão desanimadora: ".../ nada nem n/ o silêncio/ do nada ne/ m sem nada/ nem sem se/ m nem nada". É um poema fixo, tem sua métrica, não silábica, é certo, mas uma medida pensada por Frederico Barbosa para este artefato, uma contagem espacial das unidades vocabulares que lhe destina um ritmo muito próprio, ímpar mesmo. É um poema forte em sua catástrofe mundana, humana. É um dos grandes poemas da contemporaneidade e captura jogando seu incêndio, dobre de angústia e precisão, sobre o rescaldo dos sentidos.

Em meio à alta voltagem construtiva da composição citada anteriormente, pode-se, ainda, ver como o coloquial, a linhagem mais, digamos, oswaldiana, funciona margeando outras fecundas praias da criação e enriquece o conjunto, como é o caso do poema "No restaurante": "Sério, sério mesmo/ seria um asteróide/ chocar-se contra a terra,/ espatifando-nos em mil pedaços."// Disse, entre uma garfada e outra.// Como nos comics,/ ou no restaurante,/ a vida é vaga/ e o real/ só se constrói a tijoladas. "

Nada feito nada é um livro chave na obra do autor, propõe um aumento de tensão em relação ao anterior e, ao mesmo tempo, inclui outras portas e outras chaves, imprimindo seus elegramas na água, refinando cada gesto palavra cor ou sentimento.

Passam-se sete anos até a publicação de Contracorrente, um divisor de águas na poesia deste recifense radicado em São Paulo. Por que um divisor de águas? Explico: porque nesta nova safra de poemas, a marca que se imprime é da brutalidade-coloquial, é da linguagem que anda pela rua, na escola, no ônibus, pela fábrica, pela cidade, da linguagem que, a qualquer momento, pode sofrer um enfarto ou ser assaltada, sem, entretanto, deixar de lado o que ergue uma obra de arte: a beleza - mesmo que seja pelo avesso. Os aspectos da vida devorados e devolvidos à realidade, agora, porém, transfigurados em poesia, como observa o mestre Antonio Candido no texto de quarta capa, " (...) os estados da sensibilidade e da inteligência são submetidos a uma espécie de endurecimento, que lhes dá, por um lado, certo toque de áspero inconformismo; por outro, os tira do estado potencial de confidência para torná-los objetos poéticos, que valem por si, tornando-os bens de todos. "

A crises, da linguagem e do sujeito, reaparecem agora acentuadas por uma tríade estrutural: pelo título, pelo violento aspecto gráfico (letras em caixa alta e em negrito com uma grande faixa negra entre as folhas que compõem o volume) e pelos poemas. Se, por um lado, existe a seção chamada "Encontros diversos" onde a expressão lírica vem à tona com bastante força e beleza, existe, também, as partes "Trocados da sorte" e "Por recusa" onde a brutalidade em relação à cafajestagem ética, na primeira, e à linguagem da poesia, na outra, contrastam com a leveza da seção citada anteriormente. Assim, este Contracorrente faz-se: por conflitos, rasuras e, novamente, por recusa.

O colapso do sujeito perante sua realidade culminaria em seu livro de 2001: Louco no oco sem beiras - Anatomia da depressão. Um longo poema que retrata toda a angústia do eu nestes tempos lamuriosos, onde o amor, os gestos, o caráter, tudo, enfim, como a poesia, lembrando Carlos Drummond de Andrade, resultaram inúteis. Neste imenso e nojento circo da sociedade, o poeta dita: "os sustos/ dos pequenos surtos o// soco na parede o/ chute na porta o/ punho na mesa o// ódio do sólido o/ suor da pancada o/ peso da barra o// que é pior/ a vergonha o/ espetáculo o/ louco show do horror" - note-se o deslocamento do artigo definido o nos versos (maquinaria que perpassa outras partes o poema) deturpando levemente o sentido, como se o indivíduo, em sua ira, sua melancolia, pretendesse algo além da palavra decifrável e exata, algo como um grito incompreensível, uma frase aos avessos, uma porrada.

Cantar de amor entre os escombros, trabalho de 2002, é uma coletânea de poemas de amor que está recheada com composições publicadas em seus três primeiros livros e mais algumas peças inéditas. Estas últimas são as séries "Formas de sentir" e "Nós/ Paisagem" e quatro poemas de uma obra em andamento intitulada Grito solar - Anatomia do desejo, que formam, junto às outras poesias, um belo livro dedicado ao maior e mais gasto dos sentimentos humanos, o amor.

O poema "Ao gosto", de "Formas de sentir", é uma amostra da sofisticação imagética do poeta (sofisticação esta que, como nos melhores poemas dos melhores poetas, passa pelo filtro do simples sem ser, entretanto, simplista): "dizem:/ todo sabor/ é ilusão// mas a língua/ (na língua)/ desemboca oásis// devota-se/ ao gosto:/ devorar miragens". O que ali é lirismo puro, em "Nós/ Paisagem" é lirismo contagiado pelo experimentalismo radical, como no fragmento 5: "movem-se as formas folhas do corpo no espaço/ comovo-me imóvel sobre os lençóis/ sob sua boca generosa/ (poesia e prosa)// festafarta de corcalor cheiaclara de curvardor/ beijocheirocheiocorpointeiroamor".

Não é somente, portanto, uma antologia de poemas de amor, mas uma outra visão do autor sobre algumas de suas composições líricas que, dentro desta nova disposição, desencadeiam sensações diferentes ao leitor de sua obra. Além disso, o poema-de-amor aqui não é o melado imaturo e pobre - tão conhecido item nas prateleiras das perfumarias que são chamadas por equívoco de livrarias -, o poema-de-amor, como está nessa obra, é, acima de tudo, um poema e, assim sendo, uma declaração de amor à arte poética.


Brasibraseiro, em parceria com Antonio Risério, é uma grande peça onde as partes funcionam como um conjunto de mínimos e notáveis livros que não poderiam deixar de existir da maneira que ora se apresenta, tal a simetria entre eles. Temas e alvos são divididos em alguns casos e, em outros, são espécies de trabalhos solo.

Nesse duo, há muitos momentos de altíssimo nível, como nos poemas "Koiutaya-2" ("Errar por terras desconhecidas/ é coisa quase certa, meu amor.// Mas o que me floresce e incita/ são matizes, aromas e timbres/ de países desconhecíveis.// E é por isso que viajo até doer/ quando você me exila em você.") e "2" de "Para o mar" ("Não direi areia,/ nem arrecifes.// Mas céu de sereias,/ celeiro de circes.// Nada de maré,/ búzio nenhum.// Mas meias de vodum,/ numa vulva azul. "), ambos de Risério, ou como o esplêndido ready-made de Frederico Barbosa chamado "Aboliram o acaso?", da seção de mesmo nome, onde recortes de textos de Bakhtin sobre a cultura popular na Idade Média e no Renascimento e notícias de jornal sobre o carnaval brasileiro de 2001 vão transfigurando-se em cada um dos seis lados de um dado, promovendo algumas possibilidades do acaso, resultando em mais um poema incendiário. Outro ready-made de extrema beleza é de Risério em "Um lance de búzios", feito de recortes de notícias em pasquins subversivos da Revolução dos Alfaiates, em 1798 na Bahia. Outras peças, como os orikis da seção "Edum ará: Pedras de raio" ou a revisitação a Manuel Bandeira em "Vocação do Recife" por Frederico Barbosa, mostram a qualidade desse Brasibraseiro.

Estes são os trabalhos do autor até aqui, e todos eles mostram alguns característicos que faltam à grande maioria dos poetas de sua geração: a criatividade e a ousadia. Vale a pena lembrar de um poema de Augusto de Campos que poderia traduzir o que significa o trabalho deste pernambucano: "nãomev/ endonã/ oseven/ danãos/ evende". Em suas veredas sem volta pela magia consciente das palavras, Frederico Barbosa quer a poesia para a poesia, um canto raro, uma peleja no intelecto, e nunca para outros fins, como, aliás, querem, fazendo intrigas em brigas megalômanas por um insosso lugar ao sol fútil dos holofotes, os escrevinhadores comedores de carniça que rabiscam seus bocejos em livrecos de quinta categoria. Sem preço, nem etiqueta, dizendo não, sendo não, a poesia de Frederico Barbosa é-se.

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