ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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POESIA RECENTE: UNS E OUTROS

 

por Vera Lins

 

Livros de poesia têm sido publicados aos montes nos últimos anos. Em um  ano, de fins de 2002 a fins de 2003, entre os vários que me chegaram aos olhos e às mãos, escolhi alguns, poderia ter escolhido ainda outros, que me aguçaram a leitura. Mais do que  ler afinidades e diferenças entre eles, pretendi encontrar a singularidade de cada um. Desde o início, ao primeiro contato, saltam aos olhos um certo minimalismo de um lado  e uma corrente pop, por outro, que se distanciam totalmente, às vezes,  e, outras vezes, se encontram,  mas todos digladiando com a linguagem marcada pelo clichê, a língua morta, coagulada,  e a representação habitual, conhecida.

Tarso de Melo, Julio Castañon Guimarães, Sebastião Uchôa Leite e Armando Freitas Filho,  são três gerações  de poetas. Os dois últimos têm quarenta anos de poesia, Júlio, vários livros, reunidos em Matéria e Paisagem e Tarso de Melo, talvez desconhecido aqui, vive em São Paulo, é o mais jovem, Carbono é seu segundo livro. Júlio e Sebastião são também críticos de literatura e Tarso é editor da revista Cacto. Mas são quatro dicções bem diferentes, singulares.

1- O mundo nos mínimos traços de Tarso de Melo

Um poema a Drummond, que, aliás, aparece em todos eles com exceção de Sebastião, revela seu minimalismo: a memória e a presença são traços minimos, vislumbres:

                                               CDA: Presença...
                                               ...de relógio
                                               insinuada entre
                                               roupas íntimas

Seus poemas  retiram da paisagem urbana traços para a composição de um outro mundo, do desejo, de acordo com a epígrafe de Gombrich sobre Magritte que abre o livro e fala de "criar uma nova realidade como fazemos nos sonhos". Magritte e Matisse são as duas referências pictóricas que talvez indiquem seus procedimentos. O erotismo delicado, os espaços em branco de Matisse e as imagens a trabalhar com a outra lógica de Magritte ,que atualiza o impossível ("Carbono"):

                                               tentando o impossível (num
                                               quadro de Magritte) o pintor -
                                               palheta em punho - mulher fora
                                               da tela - atmosfera em que solta
                                               a tinta - perfaz um braço no espaço

Alguma coisa do impossível é atualizável, mesmo na paisagem desértica e violenta da cidade ("Deserto 21"):        

                                               : talvez bala, talvez atrope-
                                               lamento - jornais sobre o sangue
                                               e o céu do sábado
                                               à tarde
                                               imperfeito adere ao asfalto

Nestes poemas os sinais de pontuação recobram o que Adorno apontou num artigo sobre eles, uma função musical como os sinais da pauta, se independentizam da sintaxe comum regrada e reestruturam o que se diz, modulando-o diferente, de uma forma talvez atonal.. Diz Adorno: "Pois se a música está obrigada a manter nos signos de pontuação a linguagem, é muito possível que a linguagem está obedecendo à sua semelhança com a música quando desconfia dos signos de pontuação." Aqui, os  dois pontos que, segundo Karl Krauss, abrem a boca  e ai do escritor que não saiba saciá-la, aparecem no início do verso, inesperados e transgressores.

Suas paisagens perseguem o que não se diz, desconfiando também do que diz : algo difere e a verdade  foge. A inquietude que se lê aqui lembra a inquietude que Cabral compara ao peixe em poema sobre Elizabeth Bishop quando diz: Não se sabe é a sábia receita/  que faz sua palavra essencial/conservar aceso num livro/o aço do peixe inaugural.

Mas aqui é presente também a herança de um outro modernismo, menos construtivo, embora Mário Faustino seja citado, também Vinicius, Bandeira,  e Drummond , Rilke, o são.  Há uma tradição moderna reelaborada. Carbono  se refere também ao gás carbônico, mas diferente de um Gullar que em Na vertigem do dia nos anos 70, entrava em combustão junto com os motores:" meu coração queima gasolina (da comum) /como qualquer outro motor urbano", aqui, no poema "Carbono", gasolina  asfixia, o que nega e critica , avesso a qualquer euforia, progresso e modernização.

                                               um dia igual aos outros
                                               olhos vermelhos, boca
                                               seca, respiração frustrada
                                               : vivo (treze de junho de
                                               dois mil e um) asfixias,
                                               monóxidos, dióxidos -
                                               sua asma agora é minha

 

2- Práticas de extravio: voz e horizontes

 

Em Práticas de extravio[1], de Júlio Castañon Guimarães, busca-se uma outra voz, talvez anti-voz, no sentido da contra-palavra de Paul Celan, pelo enfrentamento da linguagem que, no entanto não é um embate frontal e ruidoso, mas um persistir perto do silêncio, reunindo traços quase imateriais:

                                               Com apenas um resto de sol
                                               sobre os telhados da alma
                                               pode ocorrer que ainda se organize
                                               em torno do que se inquieta
                                              
um espaço de silêncio

Otávio Paz [2] fala da poesia como uma outra voz, uma transgressão que brota de uma diferença original; antídoto da técnica e do mercado,  nasce da imaginação e percebe o outro lado da realidade - uma "teimosa heterodoxia". Tenta-se aqui articular uma voz com lineamentos esparsos, restos, sons, memórias de afetos e coisas

                                               que do ar uma voz
                                               se acresce e assim desenha linhas
                                               não apenas no espaço da imaginação
                                               mas -desde a alta intensidade
                                               até o limite da desistência -

Tenta-se ainda, pelo negativo, compor uma paisagem. Procura-se, no que é da parte dos lapsos, essa contra-voz, outra voz, perto do silêncio, mas que delineia uma paisagem, em que a linha do horizonte se estende como a linha da escrita.  O livro, de uma certa forma, continua o outro,  Matéria e paisagem [3]. Continua-se o que se diz num poema como "Horizonte", em que sobra um quase nada e é a partir desse quase nada que vai se trabalhar: "este crespo cansaço e talvez/ a música de sua  imaginação".

Aqui se trata de dar forma ao infigurável, buscando um sentido que é obscuro ao poeta ele mesmo. Nas referências ao horizonte é apresentada a questão da visibilidade, por um poeta ligado à pintura e à música. Quer se ver o ainda não visto e o invisível se apresenta como uma certa ausência. Se o horizonte para Collot[4] é o abismo - o que atrai no horizonte não é o que ele dá a vista, mas a abertura do espaço à perda de vista, uma perdição de si, extravio, que possibilita uma apresentação do invisível. O amor e a poesia têm a mesma ambição: fazer ceder os limites do mundo e das palavras, abrir horizontes. A linha do horizonte se delineia como fronteira a um outro mundo, destinado a permanecer desconhecido. Nessa poesia, como em certa música ou em certa pintura, abrem-se horizontes irredutíveis à representação. A experiência poética se torna saída de si, reencontro da mais última alteridade.

A imaginação é um modo de pensamento, o próprio da poesia: o poema se faz de traços, restos e se lança ao silêncio, buscando na sombra de uma razão instrumental uma outra voz, a própria da poesia, voz recalcada na civilização industrial. Trata-se de apresentar o que está no avesso da representação habitual, o que é ainda desconhecido e talvez assim permaneça, pensável, mas não conhecível.

Em "Linha" e "Ardis do horizonte", o horizonte é tema, a linha do horizonte se confunde com a linha da escrita, ambas são o mesmo ritmo, impulso, desconhecido que vem à tona como desconhecido para compor uma paisagem com resíduos, resquícios. O horizonte é essa dimensão invisível do visível,  que podemos chamar de inconsciente. O poema "Ás voltas" inicia o livro e anuncia  de que movimento aqui se trata: uma operação de perscrutar essas regiões sombrias ou desérticas,  e deixar vir à tona uma outra cena, que só se deixa ver em esboços, traços, restos, numa fala que se recusa, presente ao avesso, melodia da melancolia e da memória:

                                               com toda a aspereza
                                               de uma operação
                                               às voltas com o que
                                               sequer aventa o corpo

Em "Desvio" é do silêncio que se tiram restos de sons, uma tentativa de fazer falar um outro tempo. Em "Friagem" a invisibilidade toma forma entre memória e invenção São movimentos de alma incorporados ("as almas com seus corpos"): o poeta escreve com o corpo, mas escreve "mínimos sismos" e não movimentos  amplos, vistosos ou mecânicos. Isso se mostra um método de extrair ou arquitetar uma paisagem do horizonte, que lembra o poema "Paisagem como se faz" de Drummond.  Essa intertextualidade  aparece recortada no outro livro, mas aqui é como se o movimento de Drummond fosse radicalizado. Drummond abstraía da paisagem mineira o que chamava de "fibrilhas do real" para compor a  paisagem da sua imaginação. Júlio depura mais ainda. Em "Tríptico" de Matéria e paisagem já se armava a paisagem como "composição de distâncias/ acidentes e amplitude/sem subtração de aventuras/ e ausências."  Esse método se traduz  numa prática do olhar, exercitado nas fotos de que falam os poemas "Largo da Quinta" e "Ponte americana", em que na visibilidade se mostra o invisível, memória, "uma aragem" :

                                               mas uma aragem que emane
                                               quem sabe do registro desta cena
                                               ou mesmo de uma memória
                                               que se desejasse mais remota
                                               uma aragem em seu percurso
                                               das folhas que um dia
                                               até a flor da pele.

Aqui, nestes versos de Práticas de extravio,  o pensamento discute o espaço,  apontando a possibilidade de articulação de uma outra paisagem e uma outra voz, o que apenas se faz com dificuldade, nos extremos, vencendo uma resistência. Mas produz-se a possibilidade de emergência de uma alteridade, uma outra coisa, uma outra história,  com imaginação e método.

3 - Negação e respiração em Sebastião Uchoa Leite

A regra secreta de Sebastião Uchoa Leite difere do livro anterior. Em A espreita, a negatividade  com que o poeta se situava no mundo e na poesia, construía um poema áspero, dissonante, atonal se pensarmos em música  Como em  O que se nega

                                               Contra a parede
                                               Diz NÃO
                                               Recusa
                                               O não-ver
                                               Ou uma espécie
                                               De ser-aí
                                               Casco
                                               Espinhoso
                                               Contra tudo
                                               Que não a parede
                                               Reclusa

Entre puzzles que armava para o leitor com citações enigmáticas , notícia s de jornal traziam vestígios de um mundo violento que ele recebia devolvendo-lhe golpes violentos com método, 

                                               Quem vive fere
                                               pensando sopra
                                               o vírus do vazio
                                               eu mordo
                                               logo posso.

No livro se radicaliza uma poesia crítica do mundo e do próprio lirismo. Uma contra-poesia no sentido que Bollack diz de Celan.[5] O método era através de uma ironia radical "procurar a poesia contra seu desgaste, contra sua ilusão". Mas com ele  já convivia um outro que se mostrava no poema Andar como puro sopro :

                                               Arde o coração em dobro
                                               Quando ando
                                               A incendiar-se nas artérias
                                               O coração-matéria
                                               Ouço irradiar
                                               Pulsares e quasares
                                               No relógio de pulso
                                               Transposto
                                               Sou todo sopro

Neste livro se elabora um anti-método, que é o do embaralhamento

                                               Pouco a pouco
                                               Embaralho tudo e nada
                                               Sou meu próprio espantalho
                                               Fujo de mim mesmo
                                               Finjo-me

Se no outro erigia enigmas, em A regra secreta ele com liberdade se ficionaliza em labirinto lembrando, mais que um Pessoa, um Mário de Sá Carneiro  de " não sou eu nem o outro":

                                               Perdido em meu próprio
                                               Labirinto
                                               Sou o que sou
                                               Ou minto? Será isso
                                               Uma regra secreta?

Jean Paulhan, em Clefs pour la poésie, fala da procura de uma lei da qual o mistério faça parte. O livro, A regra secreta, inclui uma forma de crítica que une comentário e tradução, o "Quase nada de Jorge Guillén", permitindo-se fingir ou ser um outro, diferente, um tanto metafísico, que fala de leveza e ar:

                                               Ar: nada, quase nada,
                                               Ou com ser muito secreto.
                                               Ou sem matéria talvez,                                              
                                               Nada, quase nada: céu

E ainda como nas memórias de sensações, uma prosa poética cerrada, densa como sensações fora do estojo, em que as referência a outros são múltiplas, atualizando a "mélange adultère de tout" de Corbière que ele traduz (mistura adúltera de tudo)e que parece dar a pista de decifração dessa prosa poética. Múltiplos outros como Novalis, Corbière, Dostoievski são citados copiosamente numa linguagem que aboliu a pontuação a não ser o ponto que é escrito e não grafado como sinal, que fala da vertigem e a apresenta na linguagem vertiginosa do poema com as palavras recortadas ou na prosa poética. Não há música aqui, mas um turbilhão de palavras:

A vertigem a primeira coisa de que se lembra não ficava de pé no chão e tinha que cair no sofá que era uma espécie de segunda vida nele ponto também se lembrava de que passara noites sem dormir e as sensações eram de tensão de coisas que viriam depois encontros implacáveis ou de vazio diante de revelações....

 

3 - Palavra, pensamento e imagem em Armando Freitas Filho

 

Junto com a obra reunida, Máquina de escrever, o poeta lança um novo livro Numeral/Nominal, que se divide em dois e parece indicar dois percursos um pouco diferentes. A relação com as artes visuais, que já o tornou companheiro em livros do pintor Rubem Gerchman e da gravadora Anna Letycia é uma constante na sua obra, que se vê aqui especialmente em Nominal. Mas, por isso mesmo,  o primeiro, Numeral, em que não há referências explícitas às artes plásticas, me lembrou as telas de um pintor polonês, Roman Opalka (1931-1965), que  se vêem em todos os museus de arte contemporânea europeus. São uma série de quadros em que o artista numera em cinza ao infinito, numa reflexão sobre o tempo e a morte. Opalka diz que, para apreender o tempo, deve-se tomar a morte como real dimensão da vida. "A existência do ser não é plenitude, mas um estado onde falta qualquer coisa: o ser é definido pela morte que lhe falta".

Em Numeral, os poemas são numerados e datados e o poeta em entrevista afirma que não acabam no número 31, "continuarão nos outros livros que me for dado fazer até eu não poder numerar mais". Neles a linguagem se defronta com a morte numa impossibilidade que a ancora cada vez mais num corpo que grita e olha. Escrever e pensar é estar em perigo, atos extremos.  Agamben, em Le langage et la mort,[6] mostra a relação do pensamento com a angústia, a forma "stare in pensiero" significa estar em suspenso. Esse jogo da palavra pensar com sofrimento e dificuldade está nos versos de Armando do poema que abre o novo livro: "penso: dependurado - curativo". A tradução livre de angst para "dor de gancho" fala disso. Aqui, em Numeral, o pensamento caminha com coração e suor e se anota no corpo ou em qualquer pedaço de papel. Mas caminha em marcha-ré, ao contrário, ao revés. É um pensamento que  se une ao grito, buscando algo atrás dele, um imaginário radical, magma de onde tudo provém:

                                               Pulso monossilábico embora
                                               Ao fundo por trás do pensamento
                                               - cantante -  o mar aberto, imerso em mim.

Procura-se escrever desse lugar onde pensamento e corpo se encontram, mas antes do já feito, no lugar da respiração. A idéia de infinito dá o alcance desse pensamento que se volta para a natureza, um texto a ser lido : "No meio , porém, o mar não pára/ tendo como pé direito, o céu". Busca-se uma escrita cósmica, "roçar o rosto dos astros", mirando as constelações de Mallarmé.

Essa marcha ao revés, lembra o caminho de Wallace Stevens com o verso "a palmeira no final da mente" no poema "Meramente ser"[7]. E o que Merleau-Ponty[8] identifica ao pensamento do pintor. Aqui, no livro de Armando Freitas Filho, o corpo é todo linguagem. Escreve-se como o pintor, que, para Merleau-Ponty pinta com o corpo, que é um trançado de visão e movimento. A origem de qualquer saber está no encontro do corpo com o mundo. O pintor pensa com o corpo, há um pensamento da visão, uma ruminação do mundo sem outra técnica do que a criada pelos seus olhos e sua mão. Ao contrário do que afirmam o  pensamento cartesiano e a ciência moderna,  qualidade, luz, cor, profundidade estão ali perante nós, só lá estão porque despertam um eco no nosso corpo, porque ele as acolhe.

Esse corpo, do poeta,  acolhe uma natureza que é mar, montanha luz e horizonte, no sentido de abertura ao infinito, mas também  um céu cruel "sob o cerco de céu e cruel" que lembra o "céu sem hinos" de Wallace Stevens ("O homem do violão azul") ou o céu pesado como tampa de um dos poemas "Spleen" de Baudelaire.

Na segunda parte, Nominal, esse corpo se move pelo mundo que para Merleau-Ponty é feito do mesmo estofo do corpo. O pintor é trespassado pelo universo e sua interrogação é a daquele que não sabe a uma visão que sabe tudo, que nós não fazemos, que se faz em nós, lembrando o que diz Rimbaud na "Carta do Vidente": "algo se pensa em mim". 

Este pensar com o corpo  reúne o sensível e o intelectual. Lembra o que os românticos alemães chamavam de intuição intelectual. Para eles o que se denomina criação poética se dá pela imaginação produtora numa instância pré-conceitual ou pré-objetiva com as idéias estéticas, que não se deixam apreender em conceitos, mas reúnem poesia e pensamento. O conceito de intuição intelectual  reconcilia o sensível e o intelectual pela imaginação.  Novalis  diz num fragmento: 'Na intuição intelectual está a chave da vida'[9]. Uma reconciliação que aparece no verso de Pessoa, "o que em mim sente está pensando", que reúne a intuição e a consciência dela. Essa tentativa de se captar em ação aparece aqui em vários poemas. Como nesse último, em terceira pessoa, o número trinta e um:

                                               Escrevia a um palmo de si
                                               Às vezes nem isso. Às vezes
                                               por dentro, sem se separar
                                               da sua sombra, sequer do suor
                                               do corpo. Mesmo estando na máquina

Em Nominal, o mundo que atravessa o poeta é o da busca pelo computador, pelo programa da internet, em que os objetos de Duchamp se encontram com os da  loja de utilidades.  Escrever se torna ler, juntando citações de Mallarmé, Torquato Neto,  e inúmeros outros, com os acontecimentos recentes - a queda das torres, o futebol, o centenário de Drummond e  Marilyn Monroe.  O poeta se torna pop como Andy Warhol.  Mas a escrita, o tempo e o corpo continuam entrelaçados .

O que tem de sofrimento, dificuldade e obstáculo no pensamento  e na linguagem  traz enigmas, construídos pela sintaxe, as aliterações e a polissemia de suas palavras, longe do verso claro ("da linha feliz ou de lágrimas"). Para Agamben, a experiência poética e a experiência filosófica repousam sobre uma experiência negativa comum do deslugar da linguagem, indizìvel e inapreensível. A palavra é não dita no que se diz, um fundamento informulável  é dado na poesia no elemento métrico-musical, lugar de uma memória e uma repetição.  A tentativa aqui é de chegar a esse lugar informulável que passa pelo corpo de quem escreve e pelo corpo da escrita. Busca-se algo que existe, mas se recusa à significação. Pode-se lembrar mais um fragmento de Novalis: "Muitas coisas são delicadas demais para serem pensadas, várias ainda para serem pronunciadas"[10]. Como é dito no poema número 18, de Numeral:

                                               Impensado, porém presente
                                               sem o peso da palavra , da imagem.
                                               Emissão apenas de pulsos mudos
                                               puxando até secar, fixando aí toda
                                               a impressão primal da presença
                                               pouco antes da cor do corpo, do alfabeto

Por isso o pensamento como pendere, estar em suspenso, tormento,  e  a escrita como  produção artesanal, em que espírito, olho e mão  se conectam, no esforço do corpo, com suor e raiva

                                               poema

 

5 - Explosões: do conhecido ao desconhecido

 

Num momento em que assistimos a uma redução do alcance do pensável, pela reiteração midiática do conhecido, reproduzido em novas embalagens que disfarçam a mesma mercadoria, aqui,  com estes poetas, tenta-se alargar o pensamento, que se faz contra o hábito, numa auto-exploração e exploração da linguagem que explode seus limites. Nisso seus poemas tensionam com a música, atonal, dodecafônica, e o silêncio, a imagem pictórica e o vazio, esgrimindo inúmeras citações, todos transitam do conhecido  ao desconhecido.

Como no poema de Tarso de Melo, " Fora d'água":

                                               normal ser outra
                                               a esfinge; também que
                                               o desenho  perca
                                               aquilo que quer figurar;
                                               igual ao acaso que nasça,
                                               não importa
                                               (se há Minas
                                               e pedras sobre ela)
                                               entre a verdade que foge
                                               e os que ficam 
                                               algo difere sem
                                               que se saiba, um pouco
                                               e já
                                               quase insuportável

A situação histórica marca a poesia dos quatro - uma situação de conflito em que a linguagem vira palco de uma luta - a asfixia, o esforço corporal são seus sinais. Os poemas se tornam experiências verbais radicais.

*

Vera Lins, ensaísta, professora de Literatura Comparada da Faculdade de Letras da UFRJ, pesquisadora pelo CNPq junto à Casa de Rui Barbosa, publicou Gonzaga Duque: A estratégia do franco-atirador (1991) e Novos pierrôs, velhos saltimbancos (1998).

*

Leia outro ensaio de Vera Lins, sobre Duda Machado.



[1] Castañon Guimarães, J. Práticas de extravio.  Rio de Janeiro: Sette Letras, 2003.

[2] Paz, Otavio. A outra voz. Tradução Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1993.

[3] Castañon Guimarães, J. Matéria e paisagem e poemas anteriores.Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.

[4] Collot, Michel .La poésie moderne et la structure d'horizon. Paris: PUF, 1989.

[5] Bollack, Jean. Poésie contre poésie, Celan et la littératur. Paris: PUF, 2001.

[6] Agamben, Giorgio. Le langage et la mort Paris: Christian Bourgois Editeur, 1991.

2 Wallace Stevens. Poemas. Trad. Paulo Henriques Brito. Sâo Paulo: Companhia das Letras, 1987

[8] Merelau-Ponty . O olho e o espírito. Lisboa: Passagens, 2002

[9] Novalis. Pólen. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:Iluminuras, 1988.p. 157.

[10] Id.Ibid. p. 51.

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