ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

AS DUAS FACES DO BRANCO

 

 

Victor da Rosa

 

 

1,

 

Há uma fotografia de Joan Brossa, sentado provavelmente em sua biblioteca – talvez a mais conhecida de suas fotografias, ou a mais marcante, onde o artista aparece no meio de uma desordem de livros, papéis e páginas – que pode servir como primeiro acesso ou contato com a sua obra. Nela, um sentido de excesso logo golpeia os olhos: um punctum. Depois, este excesso não dispensa, mas se equilibra – não sem paradoxo – com certa ordem, alguma precisão no arranjo do caos. E todas aquelas páginas, enfim, se exibindo, exibindo sua materialidade e ao mesmo tempo escondendo o que nelas seria o mais essencial: a própria escrita. Para quem vê, não há leitura possível. Imagino, portanto, enquanto uma ficção desta imagem – que na obra de Brossa há um peso do branco.

 

Sobre as fotografias de Brossa – há outra em que, atrás de uma luz escura, o poeta equilibra uma cartola sobre a testa, fazendo alusão a aspectos definitivos de sua obra: a magia e mesmo o equilíbrio – vale ainda dizer que podem ser lidas quase como atos poéticos ou mesmo pequenas performances, principalmente se lembrarmos que Brossa não fazia qualquer esforço para separar obra e vida. Não se tratam de fotografias comuns, certamente. De início, percebe-se sempre certo interesse de elaboração, seja através da configuração de um cenário, do enquadramento ou da luz. Estas imagens, ainda, geralmente fazem eco de questões levantadas por aquilo que é considerada a grande obra do artista. E é justamente através deste que considero o aspecto mais contingente da vida/obra de Brossa, porém não menos potente – a fotografia desnecessária e dispersa: o rascunho, o resto – que procuro iniciar esta leitura. Em Brossa, talvez o contingente seja o melhor modo de haver peso.

 

* * *

 

O fotográfico, aliás, pode servir como metáfora para leitura do procedimento poético de Joan Brossa, embora a produção do artista nunca tenha passado pela fotografia, essencialmente. N’ A câmara clara, conhecido ensaio de Roland Barthes, a definição do fotográfico se encontra precisamente com a idéia de contingência – evento. Escreve Barthes: “O que a fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente. Nela, o acontecimento jamais sobrepassa para outra coisa: ela reduz sempre o corpus de que tenho necessidade ao corpo que vejo; ela é o Particular absoluto, a Contingência soberana, fosca e um tanto boba, o Tal (tal foto, e não a Foto), em suma a Tique, a Ocasião, o Encontro (...)”. [i] O gesto fotográfico, então – pode-se dizer – na medida em que procura tocar infinitamente o intocável, em dívida com o Real, também está sempre tendo que assumir e suportar uma falta. O segundo instante perde o primeiro, passa – o efêmero é maior.

 

 

2,

 

Acredito que a imagem do contingente abra vários caminhos de leitura por dentro da obra de Joan Brossa. Por um lado, tanto nos poemas quanto nos objetos, em um recorte deles, parece haver um desejo de apreensão do instante e do eventual – “Passa um pássaro e o poema acaba”. [ii] Por outro, acumulando os sentidos da mesma palavra, também uma construção da incerteza. A poética de Brossa, então, aparece em estado de falta, segredo. A relação é de esvaziamento com as coisas do mundo, não de acúmulo. Há um desejo constante de apagar qualquer representação para movimentar a escrita de outro modo possível. Assim, é como se todo o peso da linguagem se equilibrasse sobre o fio fino do evento. Oscila – instável – equilibra. De tudo que está em volta, pouco permanece no poema – algo sempre se perde. Há mágica nisso.

 

Neste sentido, é interessante perceber em vários textos as marcações de tempo recorrentes no presente – “Este verso é o presente”, escreve Brossa no poema “O tempo”. [iii] No poema “Um homem espirra”, por exemplo, os seis verbos dos seis versos aparecem desta maneira: “Um homem espirra. / Passa um carro. / Um vendedor baixa a porta metálica. / Passa uma moça com um garrafão cheio d’água. / Eu vou dormir. / Isso é tudo.” [iv] Não se trata então da memória reconciliando o passado através de uma narrativa que dá sentido aos acontecimentos, tampouco de uma representação estável das coisas, mas de um olhar que vê e perde – e somente isso – no instante em que tudo acontece. A enunciação do sujeito que olha aparece junto daquilo mesmo que é dito. Não há tempo para pensar sobre as coisas. Os olhos estão por um fio. Tudo se movimenta. E nada monumental acontece.

 

Daí pode-se pensar também no cinema enquanto metáfora – a referência ao cinema é constante em Brossa (sabe-se, aliás, que era um freqüentador diário das Filmotecas de Barcelona) – já que cada corte no verso dá movimentação e ritmo cinematográficos. Neste poema, é o próprio movimento da rua, a velocidade, que parece ser apreendido pela construção direta da sintaxe e enfatizado, ainda, pelos pontos em cada fim de verso. A crítica Victoria Combalia – também curadora de uma significativa exposição de Brossa, em Madri, no ano de 1991 – em seu texto Interpretando hoy, a Joan Brossa, publicado na revista espanhola Lápis, fala justamente de “encuadramientos del entorno” quando discute a descontinuidade na poesia de Brossa em relação ao imaginário surrealista que determinou sua poética até a década de cinqüenta. Escreve Combalia: “Brossa había operado um gran cambio: atrás quedaba la mecánica influencia surrealista y lo que ahora proponía eran ‘tranches de vies’, transcripciones de hechos o de frases oídas, es decir, encuadramientos del entorno”. [v]

 

 

3, Brossa – Miró – Cabral.

 

É a mesma Victoria Combalia quem diz da amizade e dos diálogos artísticos entre Brossa e o também catalão Joan Miró – e afirma: “Brossa vió em Miró la gran poesia que puede derivarse de los materiales humildes e cotidianos (...)”. [vi] Miró, de fato, é um dos primeiros pintores do século XX a se interessar pelo resto. Os materiais clássicos da pintura não são desprezados, no entanto Miró amplia o olhar para outras possibilidades formais a partir da superfície dos papéis. Na verdade, o artista se abre para qualquer coisa. Ao ser perguntado sobre “cartones (papelão) irregulares e desgarrados” que se encontravam sobre sua mesa, na longa entrevista que concede a Georges Raillard, Miró responde: “No, no hay diferencia, todo es igual. Aprovecho todo lo que encuentro. Si me envían uma paquete, guardo el papel de embalaje; otras veces me envían desde el Japón algún papel precioso, y tambiém lo utilizo. (...) Mire aquél: era um cartón viejo que estaba por ahí... um material magnífico que he utilizado”. [vii]

 

O diálogo entre Joan Brossa e o poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto – que morou na Catalunha durante alguns anos da década de quarenta, a serviço do Consulado (daí seus poemas sobre a paisagem de Sevilha, Castela e, inclusive, um longo ensaio sobre Miró) – este diálogo também passa por estas questões. Além da discussão de linguagem, ou entrelaçada a ela, também a discussão política era recorrente entre Brossa e Cabral. Tornar a arte paradoxal – política, mas não partidária – era talvez o grande tema de debate entre os poetas. A política deixa de ser representação, portanto, para ser gesto de linguagem. A rua passa a ser uma paisagem recorrente na poesia de Brossa. A fala de personagens em primeira pessoa, sempre em catalão – e vale lembrar que no regime de Franco, na Espanha, o catalão era língua proibida – invade e desvia a adequação do poema. Não por acaso, em seu poema “Fábula de Joan Brossa”, Cabral escreve: “Joan Brossa, poeta frugal, / que só come tomate e pão, / que sobre papel de estiva / compõe versos a carvão, / (...) buscava encontrar nas feiras / sua poética sem-razão. / (...)”. [viii] Mais uma vez, as coisas que sustentam – “Move este poema um / arame oculto em seus / versos” [ix] – ficam por um fio.

 

 

4,

 

Ao referenciar muitas vezes o próprio poema, a materialidade mesmo da escrita e da página, Brossa parece nos dizer do aspecto falso de toda representação. Sua escrita se move por dentro de seus próprios mecanismos. O poema se referindo ao próprio poema – distante de construir uma realidade fora de si – acaba abrindo um abismo na escrita. Cito, por exemplo, os versos de “Ponte”: “Este é o caminho / que serve para passar / do poema anterior ao seguinte”. [x] Ou então este poema sem título, de verso único: “Escute este silêncio.” [xi] Nestes dois poemas, o pronome “este” não aponta para lugar algum e permanece solto no vazio. O caráter de intervalo do poema “Ponte”, por sua vez, dá a movimentação de uma incessante travessia. A palavra “silêncio” abre ainda mais este abismo branco. É como se, depois da leitura, nos restasse somente um vento. É como se a página continuasse vazia.

 

Desta maneira, também os poemas-objeto “Contos” (1986) e “Lápis” (1982) [xii] – o primeiro: uma máquina de escrever que, no lugar da página, produz finas fitas coloridas; o segundo: um lápis que derrama tinta de sua ponta – fazem pensar em uma dimensão perdida da escrita. Em “Contos”, o título promete e prevê justamente aquilo que no objeto fracassa: uma narrativa, um conto, palavras. A imagem do erro também é constitutiva de “Lápis”. Em ambos, o lugar privilegiado das palavras se dobra para a imagem. A escrita – assim como seus objetos simbólicos – perde sua função para ser somente despesa. O crítico e poeta espanhol Andrés Sánchez Robayana, em seu ensaio intitulado Joan Brossa ou a visualidade paradoxal – publicado em um número da revista Cult dedicado à obra de Brossa, em 1998 – fala da lógica de despesa enquanto algo que vai de encontro a uma moral burguesa funcionalista: “Na tradição surrealista do objeto, este era dotado de um sentido, por assim dizer, moral (...): uma revolta contra a ordem burguesa através de uma crítica radical da função do objeto na sociedade da convenção e da poupança. A imaginação surrealista é uma despesa de sentido frente a economia burguesa”. [xiii]

 

Neste sentido, pode-se dizer também de uma lógica do brinquedo – estes objetos que, segundo Agamben, estão destinados a uma singularidade que foge a qualquer regra de uso – e mesmo do segredo através da magia. O procedimento de Brossa consiste, portanto – com equilíbrio, quase como uma naturalidade distraída – em esconder o essencial dos nossos olhos. É possível reconhecer um uso, a função do objeto, enfim, seu funcionamento dentro da ordem cultural das coisas, já que o artista trabalha com muitas apropriações, com a memória mesmo dos objetos, mas há algo nesta memória que erra. Na forma de um paradoxo, no mesmo gesto, Brossa constrói sentido e o desfaz. Haverá imaginação ou delírio nos objetos – e também uma recusa, até um luto, talvez. Das coisas, resta todo o peso. Da escrita, o branco.

 

 

NOTAS

 

[i] BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 13.

[ii] BROSSA, Joan. Poesia vista. Trad. Vanderley Mendonça. São Paulo: Amauta Editorial, 2005, p. 53.
[iii] BROSSA, Joan. Poesia vista, p. 45.
[iv] BROSSA, Joan. Poesia vista, p. 71.
[v] COMBALIA, Victoria. “Interpretando hoy a Joan Brossa” en Lápiz, nº 173, Madrid, mayo de 2001, p. 40.
[vi] COMBALIA, Victoria. Interpretando hoy a Joan Brossa, p. 40.
[vii] RAILLARD, G. Conversaciones com Miró. Barcelona: Gedisa, 1998, p. 41-42.
[viii] MELO NETO, João Cabral de. “Fábula a Joan Brossa”, In: Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 151-152.
[ix] BROSSA, Joan. Poemas civis. Trad. Ronald Polito e Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, p. 49.
[x] BROSSA, Joan. Poesia vista, 103.
[xi] BROSSA, Joan. Poesia vista, 104.
[xii] BROSSA, Joan. Joan Brossa: desde Barcelona ao Novo Mundo. (Catálogo) Rio de Janeiro: Institut Ramon Lull; Fundació Joan Brossa, 2006.
[xiii] ROBAYANA, Andrés Sánchez. Joan Brossa ou a visualidade paradoxal, in: Revista Cult, nº 19, São Paulo, fevereiro de 1999, p. 44.

 

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Victor da Rosa é ensaísta, mestrando em Literatura pela UFSC e autor das narrativas de Piano e flauta – fragmentos de um romance (Lumme Editor, 2007). Outros de seus textos podem ser lidos em www.literaturamenor.blogger.com.br.

Leia também os ensaios do autor sobre Roland Barthes, León Ferrari, Claudio Trindade e Baudrillard.

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