ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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 O SILÊNCIO DOS OLHOS, E MAIS DUAS PALAVRAS PARA

WIM WENDERS

 

 

Víctor da Rosa e Pedro de Souza

 

 

No início da década de oitenta, Wim Wenders viaja pela primeira vez até a cidade de Tóquio e captura imagens para construir um diário de viagem filmado, Tokyo-ga (1985). Em comentário sobre a experiência, Wenders não esconde certo saudosismo do silêncio, e das imagens simples e vazias filmadas décadas antes pelo cineasta japonês Yasujiro Ozu, contrapostos com o barulho ensurdecedor da cidade, "a inflação galopante de imagens que apareciam arbitrárias, ameaçadoras e até inumanas". A viagem do cineasta alemão termina com uma visita ao cemitério Kita Kamakura, onde encontrou a pedra tumular de Ozu e o registro de um antigo caractere chinês: MU , o vazio. De fato, naquele universo cada vez mais desesperado dos grandes centros, talvez nem fosse mais possível um movimento que ainda pudesse conduzir o olhar para imagens "ordenadas e afetuosas".

 

Passaram-se mais de vinte anos e Wenders parece interessado em refazer a pergunta, que é simples, e que também seu cinema refaz: de que maneira é possível capturar as imagens, ainda? Mais do que isso - onde capturá-las? Num mundo onde as imagens proliferam, cada vez mais, e buscam convencimento e totalidade, são quase um valor de troca, de que maneira ainda é possível criá-las com espaços abertos para o sonho, a imaginação? - e, dessa maneira, provocar outras imagens, essas ausentes e invisíveis? Em uma palavra: como não deixar as coisas morrerem? Pois formar imagens deve ser, antes de tudo, nas palavras de G. Bachelard, de-formar, esvaziá-las de seu sentido formado e definitivo, e conduzi-las a uma experiência de potência e abertura.

 

Em Estrela Solitária, tradução pouco literal de Don't Come Knocking (Alemanha/EUA, 2005), Wim Wenders retoma movimentos que nunca abandonou, e nunca repetiu: os travellings de estradas pouco habitadas, e permanentes na sua distância, as longas panorâmicas do deserto no oeste americano e fotografias em ângulos onde a ênfase é no céu muito claro e azul, de um azul agressivo mesmo, e uma poeticidade quase explícita. Tudo com poucos cortes, e tudo conduzindo o sentido do olhar para um estado de silêncio e prolongamento. Wenders retoma também proposições que persegue desde seu primeiro longa-metragem: a fuga, o deslocamento, a incomunicabilidade e a solidão. Proposições apreendidas, possivelmente, das pinturas do americano Edward Hopper, referência importante no cinema de Wenders, assim como o constante jogo de luz e sombra que atravessa todo o filme.

 

Revisitando as formas clássicas dos westerns de John Ford com pequenas pinceladas de um non-sense à maneira de certo cinema contemporâneo, Estrela Solitária conta a história de um retorno, uma fuga - a de um ator em fase de declínio que, montado em um cavalo, foge de um set de filmagens e atravessa o deserto em direção ao lar ou a si mesmo, o personagem Howard (Sam Shepard, que também assina o roteiro). Trata-se de um certo cansaço mesmo com a vida, e com a repetição e giro das coisas no mesmo lugar. Lá, na cidadezinha onde a narrativa se instaura, deve reencontrar sua mãe (Eva Marie Sant), que não via há trinta anos, Doreen (Jessica Lange), caso que lhe deu um filho esquecido e outras memórias perdidas.

 

A estrada e o céu - entre um movimento e outro

 

Em anotações sobre filme anterior, seu Asas do desejo (1987), Wenders escreve sobre o céu como possível superfície de claridade e compreensão em contraste com a escuridão e a ruína da cidade de Berlim do pós-guerra - "O céu sobre a cidade é portanto a única coisa clara / transparente e compreensível. As nuvens / passam, chove e neva e relampeja / (...) lá em cima e eclipsa, o sol brilha hoje / sobre a dupla cidade". O céu, portanto, enquanto alegoria da claridade, e vislumbre.

 

Dessa forma, o céu aparece, no retorno de Howard, como possível experiência de instantes que abrem a vida para o futuro, desejo de liberdade, mais uma vez nas palavras de Bachelard. Diz o filósofo, em O ar e os sonhos : "(...) vamos verdadeiramente compreender, invertendo metáforas, que o azul do céu é tão irreal, tão impalpável, tão carregado de sonho quanto o azul de um olhar. Acreditamos contemplar o céu azul. De súbito, é o céu azul que nos contempla". As cenas no deserto são cenas de um intervalo, uma pausa. Bonito pensar que o futuro, nesse movimento solitário de Howard, é também memória - e é também a possibilidade de dar uma segunda chance às coisas.

 

De fato, o personagem Howard encena, na trajetória de seu retorno, que se inicia sobre um cavalo e termina num vôo através de um avião, um movimento que é também uma suspensão. Para isso, Howard deve escapar de um sistema de ordem a que está submetido, o contrato com uma produtora de filmes, e buscar um deslocamento, outra direção mesmo para a vida. São simbólicas as cenas onde Howard, logo no início de seu retorno, troca algumas de suas roupas e abandona o seu cavalo com outro homem que encontra no deserto; e quando tira seu dinheiro do banco e quebra todos os cartões de crédito que levava no bolso, quando chega ao aeroporto.

 

Em Estrela Solitária solidifica-se e aperfeiçoa-se o emprego abusivo do movimento pelo movimento. A insistência no gênero road movie , tal como em Alice nas Cidades (1973) e Paris, Texas (1984), parece iluminar ainda mais o sentido da busca que não quer ser nada senão busca. Talvez se explique, dessa maneira, porque persiste em Wenders o tema da procura pelo elo perdido: a menina de Alice nas cidades, ao lado do pai substituto, procura sua avó; o menino de Paris, Texas, junto com o pai recém-descoberto, busca encontrar sua mãe. Agora, em Estrela Solitária , há um pai em busca do filho e que se depara também com uma filha que não sabia existir. Mas depois de encontrar seus filhos, o que resta a Howard senão retornar ao ponto de partida? E que outra busca pode advir do retorno? Que estrada, e céu?

 

Wim Wenders parece nos fazer ver que em seu cinema não se trata de fazer reviver um passado como referencial de identidade, avatar recorrente nas narrativas em que a procura da origem é condição para a descoberta de si. Daí as sucessivas tentativas mal sucedidas de restabelecimento do contato. Daí, também, as longas estradas, superfícies que aparecem como labirintos de um caminho que não tem sim. De fato, aqui, não existe retomada possível de diálogo, ou encontro. E, no momento clímax , aquele do final feliz, em que a comunicabilidade se avizinha, o pai recua retornando ao seu presente sem passado. A filha e o filho contentam-se em saber o que estão deixando de ser quando descobrem o pai, e assim permanece. A aparente inércia e monotonia da paisagem nas cenas finais e a bela cena onde a câmera gira em torno de Howard, que permanece estático, sentado no sofá, podem, nesse sentido, indicar o interesse pelo movimento girando em torno de si. A esperança consiste, sobretudo, em nunca deixar de se mover.

 

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Pedro de Souza é professor de Lingüística da UFSC.

 

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Victor da Rosa, bacharelando em Letras pela UFSC, é autor de Piano e flauta - fragmentos de um romance (editora Lumme, em processo de edição). Alguns dos textos do autor podem ser lidos em

http://www.literaturamenor.blogger.com.br.

 

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Leia também um ensaio de Victor da Rosa sobre Baudrillard.

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