UM JOGO DE ESPELHOS PARA TRANSFIGURAR A REALIDADE:
CONVERSAS COM ARMANDO ROA VIAL
por
Claudio Daniel
Zunái
- Como
aconteceu o seu primeiro contato com a poesia? O que o motivou
a escrever poemas, e quais autores marcaram a sua formação
literária?
Armando
Roa Vial - Minha primeira aproximação com a poesia aconteceu
aos dezesseis anos, com a leitura de John Keats e Rainer Maria
Rilke. O encontro com eles foi totalmente casual: nessa época,
eu me interessava muito mais pela narrativa.
Porém, a partir de Keats e Rilke, eu me
transformei num leitor voraz
de poesia, aproveitando a magnífica biblioteca de meu
pai. A quantidade de leituras nesse tempo foi enorme e variada:
ingleses, alemães, italianos, franceses, espanhóis e, também,
chilenos. Creio, no entanto, que de todos os autores lidos
nesse tempo houve dois decisivos para a minha formação poética:
Ezra Pound e T. S. Eliot.
Para mim, leitura e escritura são indissociáveis: minha
escritura, desde sempre, tem sido uma extensão de minhas leituras.
E se leio e escrevo é, simplesmente, pelo assombro que sempre
senti frente à linguagem por sua capacidade de configurar
e transfigurar a realidade, seja articulando-a ou desarticulando-a.
Zunái
- O
Chile viveu uma difícil passagem do regime autoritário para
a democracia. Quais os reflexos dessa transição na vida literária
de teu país, e em tua obra, em especial?
ARV
- A ditadura militar aniquilou não apenas a vida intelectual
do Chile anterior a 1973, mas também firmou as bases ideológicas
do modelo neoliberal que vigora até os nossos dias e cujas
premissas são o pragmatismo, o culto ao instrumental e ao
descartável, a avidez por dinheiro e poder. O pensamento criador,
a sensibilidade artística ou a fineza de espírito não têm
lugar nesse sistema. Por isso o Chile, apesar de seus êxitos
econômicos, é um país cada vez mais analfabeto e empobrecido.
Creio que toda a poesia chilena - e aqui também me incluo
- das últimas três décadas, direta ou indiretamente, tem se
colocado numa posição crítica em relação ao sistema, seja
pela via da ironia, do humor ou do desespero.
Zunái
-
Como era o ambiente intelectual chileno na época
em que você publicou seu livro de estréia, Carta
a la juventude, em 1993?
Como a obra foi recebida pela crítica?
ARV
- O ambiente literário nessa época estava dominado pelo
culto ao que se chamou La Nueva Narrativa, uma literatura
comercial manejada por consórcios editoriais transnacionais.
A poesia, pouco a pouco, começava a rearmar-se depois dos
anos de ditadura,
com a volta de escritores do exílio e o ressurgimento de algumas
vozes silenciadas, particularmente Lihn e Teillier. Cartas
a la Juventude era uma antologia de cartas dirigidas a
jovens de diferentes épocas por grandes figuras do pensamento
e da arte: ali estavam Rilke, Kropotkin, Abelardo, Santo Agostinho,
Van Gogh, entre muitos outros. Sua recepção, para minha surpresa,
foi positiva.
Zunái
-
Em Zarabanda de la
Muerte Oscura, você
reúne poemas que compõem um mosaico sobre o tema da Dama da
Foice com citações em latim, referências do imaginário medieval
e da música erudita, entre outros elementos. Comente o processo
de criação desse livro. Você planeja o tema e os recursos
estilísticos antes de escrever, ou o livro surge como resultado
do trabalho poético?
ARV
- Como eu já te dizia, minha escritura tem sido sempre
a bitácula
de minhas leituras. Contrariamente à "angústia da influência"
postulada por Bloom, eu creio em uma literatura dialógica,
feita de ecos, alusões, citações. Minha Zarabanda é um enorme mosaico cifrado de citações que alegorizam
a morte do autor e a impessoalidade da poesia. A morte,
aliás, numa época de maquiagens como a nossa, é disfarçada
ou ocultada. Trabalhei na Zarabanda
embutindo as partituras de um quarteto de George Crumb aos
textos. Foi um trabalho muito árduo já que tentei transladar
as estruturas harmônicas e os timbres da música de Crumb à
linguagem poética. Foi muito útil para mim, também, a experiência
de trabalho, como advogado, em medicina legal e criminalística,
quando tive um contato diário com os aspectos mais sombrios
e ocultos da morte: a decomposição do corpo, a fragilidade
de nossa anatomia, a instabilidade fronteiriça do ser humano
entre a vida e a morte.
Zunái
- Em Estancias
en homenaje a Gregorio Samsa, o personagem criado por
Kafka aparece como uma "amarga metáfora de si mesmo", e também
dos sentimentos de asco, medo, perplexidade, próprios de uma
época confusa e conflituosa como esta em que vivemos. Não
por acaso, você incluiu na coletânea um díptico em que Samsa
dialoga com o pintor inglês Francis Bacon. Em sua opinião,
qual é o sentido de escrever poesia numa época regida pelo
terror e pela banalidade?
ARV
- Kafka e Bacon são para mim símbolos da suspeita e do
mal-estar, da consciência de crise e da angústia frente ao
conformismo enganoso e a complacência da sociedade contemporânea.
Ali onde se estende um véu ou se disfarça, Kafka e Bacon desnudam,
desmascaram. Quando se maquia a realidade apresentando-a como
uma superfície limpa e pura em nome de um bem-estar e uma
felicidade falaz, puramente anestesiante, Bacon, Kafka
e tantos outros nos falam a partir do dilaceramento,
da erosão, que é muito mais humana e humanizante. E digo isto
porque o homem, no meu entender, por definição, é um ser precário,
não firmado
na natureza, com sua existência abrindo-se como uma enorme
interrogação.
Zunái
-
Em Hotel
Celine, você organiza os poemas como se fossem
os quartos de um hotel, distribuídos numa seqüência numérica
caótica e habitados por personagens históricos e fictícios
de diferentes épocas e países como Thoreau, Ricardo Reis,
Ivan Karamozov e Gregório Samsa. Essa é uma alegoria de tua
própria escritura, que busca a mescla deliberada de diferentes
elementos culturais?
ARV
- Sim, assim é.
Já te dizia que minha literatura é dialógica, como
um jogo de espelhos onde se refletem tantos companheiros de
viagem, meus mestres e maiores, da literatura ou fora dela,
já que sou também um apaixonado por filosofia, música, historia
das religiões e da ciência. Hotel
Celine é um local onde hospedo muitos de meus heróis.
Zunái
- Los hipocondríacos no se mueren de miedo é um livro singular em tua obra, pela ênfase
dada ao humor (cada poema é apresentado como um medicamento,
inclusive com posologia, para os mais diversos casos de diagnóstico).
Esse cruzamento entre sátira, ironia e o tema da Medicina
recordam um pouco as quadras do poeta português Manuel Maria
Barbosa du Bocage. Comente um pouco este livro.
ARV
- Esse livro surge como uma homenagem, com senso de humor,
ao hipocondríaco que muitos levamos dentro de nós.
Em um mundo feito para os sadios, pensei que era bom
erguer a voz pelos doentes, neste caso, pelos doentes imaginários.
Na hipocondria, como em poucos quadros clínicos, se vê a dependência
do físico com o psíquico. Sempre me chamou a atenção que uma
desordem da fantasia possa provocar um desordem no organismo.
Ou seja, o imaginário que transforma o real.
A estrutura do livro segue a dos vademécum
médicos: com fármacos e doses específicas.
Zunái
-
Você é um estudioso de literaturas anglo-saxônicas,
tendo traduzido dois poemas
clássicos da Idade Média, o Seafarer
e o Beowulf
além da antologia Lecturas anglosajonas. Como surgiu o seu interesse
por essa literatura? O que ela tem a dizer para a nossa época?
ARV
- Meu interesse pelo mundo anglo-saxão eu devo a Borges,
a quem visitei, junto com minha família, quando eu tinha dezesseis
anos. Foi um encontro memorável. Ele nos recitou o Pai
Nosso em anglo-saxão e, desde então, fiquei apaixonado
por essa língua que produziu uma admirável literatura. Em
termos concretos diria que a poesia anglo-saxã possui uma
enorme riqueza rítmica, por um manejo extraordinário dos acentos,
as variações e as aliterações; é, além disso, uma poesia sentenciosa,
reflexiva, de grande fundo existencial, que emprega uma linguagem
sóbria, precisa, sem ornamentos desnecessários, com estruturas
narrativas e monológicas que tiveram muita influência na poesia
inglesa e norte-americana contemporâneas.
Zunái
-
Como é o cenário da crítica literária chilena hoje, na universidade
e na imprensa? Há críticos que acompanham o trabalho dos autores
mais novos?
ARV
- Eu te diria que hoje no Chile, por ausência de suficientes
espaços ou instâncias de difusão da literatura - jornais e
revistas -, a crítica é praticamente inexistente. Nas universidades
se desenvolvem alguns projetos interessantes, mas seu alcance
é ainda muito limitado.
Zunái
-
Qual é a sua opinião sobre a poesia chilena atual? Quais
autores se destacam?
ARV
- A poesia chilena tem várias vertentes que se inserem
numa tradição muito rica e desconhecida fora de nossas fronteiras.
A poesia atual se faz eco dessas vertentes: poesia lírica,
antipoesia, poesia experimental, poesia lárica
(NT: poesia intimista da paisagem natural) e urbana, poesia
metafísica. As fontes contemporâneas mais importantes provêm
de Gonzalo Millán, Enrique Lihn, Jorge Teillier, Eduardo Anguita
ou Juan Luis Martínez, para citar
apenas alguns dos autores posteriores a Neruda, Huidobro,
Mistral e Parra. Do grupo de autores com menos de 50 anos
me interessam, entre outros, Diego Maquieira, Tomás Harris,
Elvira Hernández, Francisco Véjar, Jaime Huenún e Marcelo
Pellegrini.
Zunái
-
No Brasil, autores como Gabriela Mistral, Nicanor Parra e
Pablo Neruda são bem conhecidos; já outros, como Vicente Huidobro,
Gonzalo Rojas e Raul Zurita circulam de maneira quase clandestina
(apenas o primeiro foi traduzido aqui, pelo poeta Antonio
Risério). Como é a recepção da poesia brasileira contemporânea
no Chile? Não está na hora de um diálogo mais intenso entre
os poetas brasileiros e chilenos?
ARV
- A poesia brasileira é em geral, para nós, um território
a descobrir. Sua recepção histórica, com pouquíssimas exceções,
tem sido muito deficiente. Autores como Armando Freitas Filho,
os irmãos Campos, Ferreira Gullar ou Leminski, por exemplo,
são desconhecidos para a maioria dos poetas e escritores chilenos.
Por essa razão é essencial criar pontes que permitam integrar
mais os nossos países, mostrando além disso o notável trabalho
de poetas brasileiros contemporâneos.
*
Armando
Roa Vial,
poeta chileno, nasceu em 1966. Publicou, entre outros títulos,
Zarabanda de la Muerte Oscura (2000), Estancias
en homenaje a Gregorio Samsa
(2001), Hotel Celine
(2003) e Los hipocondríacos no se mueren de miedo
(2005). Traduziu os poemas medievais anglo-saxônicos O
Navegante e Beowulf, e organizou a antologia Lecturas
anglosajonas.
Recebeu o Premio Nacional de la Critica (2000), o Premio
Altazor (2001) e o Premio Pablo Neruda (2002).
*
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