ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

UMA CONVERSA COM CLAUDIO WILLER

 


Claudio Willer

 

 

Chiu Yi Chih

 

Zunái: É um imenso prazer conversar com você, Willer. Podemos começar falando um pouco sobre seu livro recentemente publicado Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna (Ed. Civilização Brasileira, 2010). Comentando sobre o papiro encontrado na biblioteca Nag Hammadi, texto da Antiguidade tardia, “O trovão – Intelecto perfeito”, o livro revela de modo extraordinário que a linguagem das antinomias e dos paradoxos era utilizada nos textos gnósticos (“Pois eu sou a primeira: e a última / Sou eu a venerada: e a desprezada. Sou eu a meretriz: e a santa...) e transparece em doutrinas orientais como religião védica, budismo e taoísmo. De certo modo, essa linguagem regida pelo princípio da analogia ataca os princípios lógicos da identidade e não-contradição presentes na nossa visão de mundo ocidental. É impressionante como tal princípio de associação dos contrários reaparece nos místicos (São João da Cruz) e na cosmovisão de poetas da modernidade (Baudelaire, Stefan George). Essa descoberta é interessantíssima. Gostaria que você comentasse sobre esse confronto, sobre essas duas visões de mundo.

 

 

Willer: Comentar? Mas isso daria outro livro... Aliás, tenho um ensaio, semipronto, sobre essas antinomias e a conexão misticismo-poesia. Vai dar livro. É o capítulo 4 de Um obscuro encanto detalhado, desenvolvido. Vou desde textos arcaicos, inclusive “O trovão – Intelecto perfeito”, que analiso em maior detalhe, passando por místicos, Rumi, São João da Cruz e outros, até poetas modernos e atuais; até Roberto Piva e Herberto Helder. O que é expressão de místicos vai reaparecer, mais tarde, como expressão de uma rebelião romântica. Acho interessantes as observações de Octavio Paz, sobre a idéia de identidade dos contrários, em vez de oposição, ser dominante no Oriente e marginal no Ocidente. Será? Não terá ele generalizado? Oriente é plural. De qualquer modo, essa episteme (sim, Foucault de As palavras e as coisas) se faz presente, no ocidente em uma espécie de conexão ou circuito da magia, misticismo e poesia. É o “contradiscurso” de que fala Foucault.

 

 

 

Zunái: Um obscuro encanto complementa algumas ideias já presentes no seu livro Volta (Ed. Iluminuras, 1996), como por exemplo, aquela visão heterodoxa, xamânica, visionária e não-cerebral da poesia? Nesse aspecto, há continuidades, novas descobertas (teóricas e práticas), indagações, revelações?

 

 

Willer: Muito bem observado. Relendo Volta, reparei no seguinte: os dois capítulos finais, relatos de um episódio que realmente aconteceu, uma palestra que dei em um encontro de ocultistas na Câmara Municipal de São Paulo em 1987, já são uma sinopse da minha tese, daquilo que 20 anos mais tarde eu apresentaria como tese de doutorado...! Sou circular, vou retomando temas – Hilda Hilst, por exemplo, já havia observado gnosticismo na obra dela em uma resenha que publiquei em 1987 – mas de modo progressivo, aprofundando (ou complicando) a cada etapa. Escrever ensaio e narrativa em prosa é, para mim, não um modo de afirmar, mas de perguntar – vou expondo, apresentando no texto aquilo que desejo saber, esperando que a escrita me traga respostas, e isso me torna uma espécie de precursor de mim mesmo. Foi o que aconteceu na relação entre Volta e minha tese – e também desse livro, com minha insistência no acaso objetivo, e terem-me convidado a escrever sobre acaso objetivo em 2004, no ensaio que saiu pela Perspectiva, em O surrealismo. Agora, tenho pronto um ensaio extenso, 170 pgs, Geração beat e místicas da transgressão, em que faço paralelos entre os beats e rebeliões religiosas medievais. É uma continuação ou ampliação, ao mesmo tempo, de Geração Beat, de 2009, e Um obscuro encanto, de 2010. Esse ensaio aguarda materialização de editor – logo ocorrerá, creio.

 

 

 

Zunái: No capítulo do livro que introduz essa perspectiva gnóstica na leitura dos escritores, William Blake pode ser considerado como poeta gnóstico por excelência e deveria ser lido à luz das observações de André Breton publicadas em “Le méssage automatique” em que se diz que “a percepção e a representação – que para o adulto ordinário parecem opor-se de maneira tão radical”- não devem ser tidas senão como produtos de uma dissociação de uma faculdade única, original, da qual a imagem eidética dá conta e da qual se reencontram traços entre os primitivos e as crianças” (p.222).  Segundo sua leitura,  há vários “Blakes” (apocalíptico, panteísta, místico, Blake cultuado pelos beats) e é por isso que sua análise escapa de certos reducionismos literários. Qual é a ideia fundamental que se encontra por detrás dessa leitura não-cartesiana e que atravessa todo o percurso do livro?

 

 

Willer: Chiu, você está fazendo questão de publicar a mais aprofundada das entrevistas que já fizeram comigo.... Idéia? Mais que idéia, expressão – a manifestação do meu espanto por constatar como Blake é enorme, que imenso profeta ele foi, como já está tudo lá, na obra dele. Ginsberg já havia tido essa percepção. Provavelmente, antes dele, W. B. Yeats – lembrando que Yeats foi um dos responsáveis pela descoberta e valorização tardia de Blake; foi o primeiro a publicar, em 1893, uma boa edição reunindo sua obra. Tive ocasião de ler um livro, Yeats’s Golden Dawn de George Mills Harper, com os registros da sua participação em polêmicas na ordem esotérica da qual fazia parte, a Golden Dawn. Observei que Yeats tomava Blake como paradigma de sua cosmovisão, situando-o acima de suas fontes especificamente ocultistas, em seus textos sobre esoterismo, como “Is the Order of R.R. & A.C. to remain a Magical Order?” A poesia como um conhecimento superior.

 

 

 

Zunái:  Sob esse prisma, você diz que, em Blake, a visão dos profetas e do irmão falecido, entre outras coisas, tanto quanto a sua obra poética se referem à mesma faculdade de percepção que supera a “dicotomia entre o mundo subjetivo e objetivo, comum aos médiuns e os poetas e aos místicos.” E, no seu livro Geração Beat (Ed.LP&M, 2009), você relata que Allen Ginsberg teve a “iluminação auditiva da voz de William Blake simultaneamente com a visão da eternidade. Foi em 1948, ele ouviu uma voz, que seria a do próprio Blake, dizendo o poema que lia, ‘Ah! Girassol de Canções da Experiência’. Nesse caso, a percepção visionária e obra poética se convergem na criação de uma obra?    

 

 

Willer: São os momentos de superação da contradição entre sujeito e objeto, ou entre subjetividade e objetividade. Confirmações do que Breton havia dito: “Tudo indica a existência de um certo ponto do espírito, onde vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessem de ser percebidos como contraditórios.” E, antes de Breton, Baudelaire: “O que é a arte pura segundo a concepção moderna? É criar a magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista.” O mesmo que Rimbaud entendia por vidência. E que também está em Novalis, em Schelling, em Hegel, essa idéia da superação da contradição de sujeito e objeto – você, que estudou filosofia, sabe disso. Nas ocorrências do acaso objetivo – tratado adiante nesta entrevista – essa superação se realiza.

 

 

 

Zunái:  Lautréamont e Antonin Artaud, segundo o seu livro, são autores que manifestam características esotéricas e gnósticas na literatura. Eles mobilizavam certas forças da realidade à semelhança de magos e videntes. No seu outro livro Volta, você diz que ambos - o poeta e o mago – operam com a magia propiciatória no sentido de serem capazes de profetizar o futuro e atuarem na realidade simbólica, mas enquanto o segundo procura dominar o cosmos, o primeiro se entrega às forças da linguagem poética. Em que medida se dá essa semelhança entre o poeta e o mago?

 

 

Willer: Justamente nessa medida. Lembro as observações de Octavio Paz em O arco e a lira:

 

A operação poética não é diferente do conjuro, do feitiço e de outros processos de magia. A atitude do poeta tem muita semelhança com a do mago. Ambos usam o princípio da analogia; ambos agem com fins utilitários e imediatos; não se perguntam o que é o idioma ou a natureza, mas servem-se deles para seus próprios fins. Não é difícil acrescentar outra característica: magos e poetas, diferentemente de filósofos, técnicos e sábios, extraem seus poderes de si mesmos. 

 

E mais:

 

Toda operação mágica requer uma força interior, conseguida através de um penoso esforço de purificação. As fontes do poder mágico são duplas: as fórmulas e demais métodos de encantamento, e a força psíquica do encantador, a afinação espiritual que lhe permite fazer concordar seu ritmo com o do cosmos. O mesmo se verifica com o poeta. A linguagem do poema está nele e só nele se revela. A revelação poética pressupõe uma busca interior. Busca que em nada se assemelha à análise ou à introspecção; mais que busca, atividade psíquica capaz de provocar a passagem propícia ao surgimento de imagens.

 

 

Segundo Octavio Paz, o mago é solitário, o poeta comunica-se. Nem tanto, penso – magos precisam da egrégora, de uma comunidade.

 

 

 

Zunái: Essa visão “mágica” da linguagem na literatura e nas artes em geral é revolucionária se pensarmos que ela traz consigo uma postura libertária, crítica e existencial diante do mundo. Nesse sentido, a atitude da rebeldia dos jovens nos anos 60 e 70 (incluindo a de seu círculo de amigos como Piva, Bicelli, etc.) foi profundamente decisiva para as transformações culturais que viriam depois. Pensando nesse nosso mundo complexo de hibridizações, agenciamentos múltiplos e desterritorializações contínuas, o que significa ser “rebelde” hoje e quais seriam suas implicações estéticas e políticas para o mundo contemporâneo?

 

 

Willer: Fomos decisivos para as transformações que viriam depois? Quais transformações? É claro que muita coisa mudou para melhor, vivemos em uma sociedade mais aberta, caretice nos anos de 1950 a 60 era insuportável. Mas, por enquanto, somos lidos – de um tempo para cá, há mais leitores. E interlocutores, autores novos que dialogam com o que escrevemos. Você é um excelente exemplo, há outros. Evidentemente, isso atesta renovação da poesia brasileira, mostra que algo se move, que alguma coisa de bom está acontecendo. Daí a falar em transformações do mundo ainda vai, infelizmente, uma boa distância. Espero que minhas profecias de uma rebelião de poetas transformando o mundo (falo mais disso na resposta à última das suas perguntas) se realize.

 

 

 

Zunái:  Pensando nisso, Willer, em relação ao seu primeiro livro Anotações para um Apocalipse, como foi concebido, escrito e organizado? Qual foi impacto dele na época em que surgiu, levando em conta o ambiente cultural-político do país, já que o livro foi publicado em 1964? O que significou particularmente para você?

 

 

Willer: Já usei a expressão “periferia rebelde”, referindo-me ao nosso grupo de amigos, no contexto da geração “Novíssimos” de 1960. Virou título de uma dissertação, pioneira, sobre Piva (Roberto Piva e a periferia rebelde, de Thiago de Almeida Noya). Pois bem: por um bom tempo – algumas décadas, diria – algo como Anotações para um Apocalipse circulou especificamente no âmbito da periferia rebelde. Teve leitores – pessoas que de algum modo se identificavam àquela periferia. Mas dá para contar nos dedos (estranho: o que houve com aquela tiragem, acredito que 1.500 exemplares?). Passei a ser mais lido na década de 1980. Piva sempre teve leitores, mas uma recepção compatível com sua importância é algo que ocorreu a partir de 2000 (“O século 21 me dará razão”, ele escreveu na década de 1980).

 

Como foi concebido? Não foi propriamente “concebido” – Massao Ohno, como já relatei em outras ocasiões, pronunciou aquele fulminante “Willer, quero te publicar!” – juntei alguns poemas em prosa, os que me pareceram melhores no que vinha escrevendo, e isso logo depois daquela fase de engavetar poemas definitivamente, por serem incipientes, e ainda escrevi e acrescentei um manifesto, uma proclamação de rebelião muito inspirada em leituras simultâneas de Breton e Ginsberg.

 

 

 

Zunái: Esse livro foi prefaciado pelo poeta e grande xamã da nossa cultura subversiva, Roberto Piva, interlocutor fundamental para sua trajetória. Considerando essa troca de leituras, vivências e referências poéticas, o que os ligava de maneira mais intensa nessa aproximação intelectual?

 

 

Willer: Tinha que ter perguntado isso ao Piva... Ele me escolheu como amigo e interlocutor. Que fonte, não só de informação, mas de excelentes indicações de leituras. Era certeiro. E isso, até o fim. Por volta de 2000: “Willer, na Livraria Cultura tem a História da filosofia oculta, de Alexandrian! Tem que ler!”. Dois ou três anos depois, “Willer, tem um livro ótimo, A literatura e os deuses, de Roberto Calasso! (já comentei que o Piva falado tem que ser grafado com um ponto de exclamação após cada frase, era incisivo) E lia-me ao telefone, encantado, trechos do capítulo de Calasso sobre Lautréamont, intitulado “Reflexões de um serial killer”. Os dois estão em Um obscuro encanto – Calasso, no capítulo sobre Mallarmé, e Alexandrian, inspirando-me o projeto todo da tese, a idéia do gnosticismo como ponto de partida do ocultismo ocidental.

 

Ainda relataria muitos episódios assim, entre 1960 e 2009. “Willer, na livraria Lorca tem a edição portuguesa de O amor louco de Breton!” Meio século de diálogo. Ele mencionou nossas conversas no posfácio de seu Piazzas e no prefácio do meu Anotações para um Apocalipse. Tem aquele poema lindo dedicado a mim, “Equinóxio do oitavo andar carbonizado”, em Abra os olhos e diga Ah!, ressoando ou antecipando o tipo de cultura de resistência em que nos envolvíamos em meados da década de 1970. E aquela imagem linda em Quizumba, “Claudio Willer olhando a Lua através do córtex de sua amante”.

 

 

 

Zunái: Você escreveu alguns poemas do seu livro Dias Circulares com Piva. Você podia contar para nós alguma experiência decisiva daquele período, tendo em vista o cenário cultural e seus respectivos movimentos poéticos e artísticos?

 

É um poema em Dias Circulares, que escrevemos juntos – mais tarde, Sergio Cohn o publicaria em Azougue, na seleção de poemas que acompanhou uma entrevista comigo. Uma tarde, Piva passou em casa, havia uma lauda na máquina de escrever e pusemo-nos a datilografar aleatoriamente – semelhante a escritas automáticas mas usando a máquina de escrever. Outro, durante um fim de semana no Guarujá em 1977, recentemente coloquei on line e sairá em A verdadeira história do século 20. Outro ainda, com Juan Hernandez, o vigoroso poema da espécie humana, “As palavras da tribo”, que publiquei em Jardins da Provocação – já relatei em outras ocasiões as circunstâncias da escrita daquele poema. Há mais, alguma coisa, tenho guardado.

 

Piva era descuidado, displicente com seus originais – perdeu muita coisa. E houve poemas publicados de modo avulso, mas que ele não se interessou em fazer sair em livros. Uns textos excelentes – algo disso reapareceu, por exemplo o ousado poema sobre Paulinho Paiakan, voltou à tona em Os dentes da memória. Outro, um vigoroso poema contra tortura de presos políticos que publiquei no Versus em 1978, esse eu tenho e vou fazer reaparecer. Eu deveria ter guardado mais de seus originais, ter atuado como aqueles antigos cronistas da Renascença que iam recolhendo tudo de seu biografado, do personagem que era tema da crônica. Por volta de 1980, ele escreveu uma prosa poética incrível, a história do cu do garoto com um lustre enfiado no cu – obviamente, piscava e piscava – peguei o poema emprestado, li em uma sessão de poesia em um bar em Pinheiros, pessoas se contorciam de riso enquanto eu lia, adoraram, em seguida devolvi, nunca mais vi, sumiu. Na mesma época, tivemos uma festa alucinada na casa de campo de um amigo nosso, Irco, na Represa Billings, juntamos uma multidão, teve de tudo, típica festa beat; Piva, bem chapado, saiu da casa, viu um cão e ao mesmo tempo teve uma visão ou alucinação de que era um centurião romano, escreveu algumas linhas – “Nenhum cão claro”, assim começa – um texto forte, simples, sintético – nunca mais vi. Quem sabe, acha-se algo no que está no acervo dele no Instituto Moreira Salles. Repare que no documentário Antes que eu me esqueça, de Jairo Ferreira, de 1977, divulguei-o em meu blog em http://claudiowiller.wordpress.com/2011/09/27/%E2%80%9Cantes-que-eu-me-esqueca%E2%80%9D-no-youtube/, Piva lê três poemas: um deles, esse que mencionei contra torturas, os outros dois, ótimos, sumiram, nunca foram publicados. Serão encontrados? Espero que sim.

 

 

 

Zunái: Autores fundamentais como Antonin Artaud, Lautréamont e Allen Ginsberg nem sempre foram reconhecidos pela crítica literária de caráter formalista. No entanto, a sua atividade de tradução extremamente valiosa e seus ensaios críticos permitiram ao público brasileiro um conhecimento adequado sobre a obra deles. No Brasil, muitos jovens (inclusive eu) descobriram novas possibilidades poéticas com a leitura de Lautréamont e Allen Ginsberg. Por que acontece frequentemente esse menosprezo da crítica? Isso já está mudando de alguns anos para cá?

 

 

Willer: Minhas traduções foram bem recebidas, e por críticos de várias tendências. A dificuldade era com meus poemas e manifestos – mas sempre fui respeitado como tradutor e ensaísta. As três, de Artaud, Lautréamont e Ginsberg – na verdade, não só traduções, mas organização de edições, com prefácios, notas e seleção de textos em Artaud e Ginsberg. Todos com reedições, dezenas de milhares de leitores. Trouxeram-me leitores, gente que viu o que fiz e quis saber mais a meu respeito, ler mais textos meus.  Se algo mudou, foi para pior – há mais leitores, é claro, circulação desses livros, que sempre foi grande, ampliou-se, mas as páginas em grandes jornais, o que davam então, entre 1980 e final dos anos de 1990, não sei se dariam o mesmo destaque hoje. Que pena, o editor não conseguir renovação do Artaud – como acertei a mão, aquela seleção e apresentações estão valendo até hoje.

 

 

 

Zunái: De que maneira essa poética da “rebelião romântica” (lembrando Os Filhos do Barro de Octavio Paz) provocada por eles e outros poetas mudaram a sua percepção, a sua poesia, a sua crítica literária, e nesse caso, o seu modo de ver o mundo?

 

 

Willer: Ou foi o contrário? Sempre, acho, fui um romântico rebelde. Questão de temperamento. Por exemplo, ao ler O arco e a lira de Octavio Paz por volta de 1965: a satisfação por ele dizer, e dizer tão bem, aquilo que eu pensava. Leitura de poetas, desde Rimbaud e Lautréamont até Herberto Helder: constatação de estar lendo textos que eu gostaria de ter escrito.

 

 

 

Zunái:  Você diz no seu livro Escritos de Antonin Artaud (Ed. LP&M), que Artaud não nos deixou um “conjunto de ensinamentos ou de normas estéticas, mas sim uma atitude, uma postura de rebelião radical, de inconformismo e de recusa a compactuar com a nossa civilização” (pág.16). Se analisarmos a sua vida e obra, ambas estavam intimamente associadas. Sua escritura era extraordinária, anti-convencional, blasfematória, “nômade”, transgressiva e vanguardista. Influenciou criadores na área do teatro, da dança e da performance. Encontramos essa escritura “nômade” também em Rimbaud, Lautréamont, Witold Grombrowicz, Campos de Carvalho, Roberto Piva, Cláudio Willer, Hilda Hilst, sendo que cada autor é uma singularidade inigualável?

 

 

Willer: Sim, mas destacando a pluralidade, as enormes diferenças (se não fossem tão diferentes, não tinha graça, não interessava tanto, é evidente). Artaud me parece o menos “literário” deles todos – linguagem direta, expressão de idéias, sempre de modo passional, pura explosão. O menos estético, digamos assim, o menos lírico, e o mais incandescente. Alguma coisa dele – as Cartas de Rodez, por exemplo – traduzi sentindo como poesia em prosa, acompanhando o ritmo. O restante, procura de precisão na transmissão das idéias, da argumentação.

 

 

 

Zunái:  Conheci você em 1996 ao mesmo tempo em que conheci o Piva. Naquela época, eu estava com quatorze anos e fazia a oficina do Piva: Poesia e Xamanismo na Funarte. Lembro dos jovens que estavam fazendo a oficina (Gustavo Benini, Sendi, Nilson, Irael e outros) e assisti suas leituras de Ginsberg. Experiências viscerais. Vi também a entrevista que você deu para o Piva nos Encontros Órficos onde foram entrevistados Zé Celso e Antônio Bivar. Impregnado pela energia das leituras que já fazia (Baudelaire, Rimbaud e outros), num dia passei na Livraria Cultura e fui logo surpreendido na prateleira pelo seu Lautréamont: Obra Completa (Ed.Iluminuras, 1997). Comprei-o e devorei as páginas imediatamente. Lautréamont foi um marco para mim e tão fundamental que comecei a transcrever trechos no meu caderno e colava-os na parede. Fiquei “possuído” por algum espírito alucinado (rsss). Entrei em crise. É dessa época o poema Menino Orfeu. Este poema e outros mais recentes dediquei ao Piva no meu livro Naufrágios que inclusive teve seu prefácio. Alías, nesse mesmo livro dediquei a você uma série de poemas como Estudo do Mar Hexaedro, Poliedro e Prometeu. A poesia nasce de uma crise, de um encontro com o maravilhoso, de uma espécie de transe e imersão no inconsciente?

 

 

Willer: Os poetas inteligentes acham que não... Acham que tem que “trabalhar” o poema, que poesia é resultado da reflexão e não da emoção. Reflexão e emoção são categorias psicológicas, portanto limitadas. Vêm da psicologia positivista. Psicanálise nos leva a desconfiar que há mais, muito mais, subjazendo não só á criação poética, mas a toda expressão simbólica. Quantos relatos já temos – que os poetas inteligentes desconsideram – de criações em estados visionários, de transe ou próximos ao transe. Nunca cheguei a colar na parede, mas basicamente minha criação é assim, pelo entusiasmo, suscitado por uma leitura, por algo que acontece ou por ambos; por experiências do maravilhoso. Já que falamos do Piva: era espontâneo, sua escrita era direta, de inspiração – tive acesso a seus manuscritos, o que ele rasurou é o que depois descartou.

 

 

 

Zunái: Você conta experiências de “acaso objetivo” reportando-se às suas vivências e leituras no seu maravilhoso livro Volta, e de fato aconteceu comigo quando estava fazendo sua oficina em 2008. Você nos indicava várias leituras, dentre as quais, Nadja de André Breton, e logo depois eu vi três vezes esse nome Nadja em intervalos muito próximos: o primeiro num pára-brisa de caminhão quando estava numa estrada indo da minha casa para o centro de Embu das Artes, o segundo numa placa de sinalização na periferia do Embu e o terceiro numa loja de roupa aqui em São Paulo. São esses acontecimentos de sincronicidade onde as fronteiras do sonho e da realidade se comunicam que despertavam a imaginação dos poetas surrealistas como André Breton. Quando estamos em processo de criação, é como se abrisse uma brecha na realidade. Gostaria que falasse sobre essa ruptura dos limites no seu processo de escrita.

 

 

Willer: Magnífico! Só faltou uma coisa: você fotografar cada uma dessas Nadjas, dessas aparições de Nadja. Que beleza – esse seu relato, transformei-o em publicação em meu blog, convidando outros a participar – está em http://claudiowiller.wordpress.com/2012/05/25/acaso-objetivo/ Enquete no melhor estilo surrealista. Já tem 20 relatos, e ainda quero ampliar, você pode trazer outros testemunhos de casos assim.

 

 

 

Zunái: No início do século XX, quando o surrealismo apareceu no horizonte das artes, alguns artistas do movimento modernista já o vinham assimilando como Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. Contudo, mesmo entre os modernistas, havia uma certa desconfiança em relação ao surrealismo, já que as obras surrealistas pareciam produtos de uma mera arbitrariedade, ora surgidos da inspiração ora nascidos de um irracionalismo total. No entanto, os artistas plásticos como Flávio de Carvalho e Maria Martins abriram nossos olhos no sentido de uma percepção mais radical e ampliada. E, na literatura, Murilo Mendes e Jorge de Lima reinventaram o surrealismo que já estava presente no nosso imaginário barroco. Os poetas beats também fizeram suas releituras. Como Claudio Willer reinventa o mundo e dialoga com essa tradição poética do surrealismo (incluindo a literatura beat)?

 

 

 

Willer: Caretice no âmbito do modernismo brasileiro – e não só pela rejeição do surrealismo. Muitos católicos, mais a influência positivista – e um nacionalismo algo estreito, do qual o surrealismo era excluído por ser visto como coisa de fora, estrangeira – fizeram isso com simbolismo também, como se não estivessem bebendo o tempo todo de fontes européias. Flávio de Carvalho e Maria Martins demoraram para ser reconhecidos, e digo mais, percepção de sua contribuição é algo em processo, em andamento. Surrealismo em Piva, já escrevi ensaio a respeito – logo sai publicado – e é só o começo, tenho mais a dizer. Piva, por ser poeta-leitor, é um permanente convite ao comparatismo literário. Quanto a mim, a relação da minha poesia com surrealismo, acho que isso, mostrar a particularidade dessa relação, é tarefa da crítica. Diga você, faça mais leituras willerianas.

 

 

 

Zunái: Willer, estamos chegando ao fim da entrevista. Em janeiro de 2012, você publicou seu ensaio Poesia brasileira: boa safra de 2010-2011 na REVISTA E SESC-SP, onde você comenta sobre poetas que não foram percebidos pela crítica, porque “nossos críticos continuam preferindo os poetas inteligentes: aqueles racionais, precisos, rarefeitos e bem comportados. E continuam a lamentar a ausência de novos poetas, sem atentar para o que se passa ao seu redor”. Há poetas excelentes como Afonso Henriques Neto, Celso de Alencar, Chiu Yi Chih, Augusto de Guimarães Cavalcanti, José Geraldo Neres, Edson Bueno Camargo, Érica Zingano, Renata Huber, Roberta Ferraz, Elizabeth Lorenzotti, Davi Araújo, Josoaldo Lima Rego, Andityas Soares de Moura, Abílio Terra, Claufe Rodrigues sobre os quais você comentou nesse ensaio e há outros ainda dos quais poderia falar. Como você enxerga essa nova geração de escritores e poetas nessa pluralidade de tendências e manifestações?

 

 

Willer: Como você disse, há outros ainda. Peguei o publicado em um biênio, e mesmo assim deixei bons poetas fora. Tenho mania de profetizar o advento de novos poetas, tomando isso como acontecimento revolucionário. Veja o que escrevi no final do manifesto de 1976, que saiu em Dias circulares: “Depois da geração de 22, salvo poucas exceções, tivemos apenas alguns chatos, neoparnasianos, concretistas e preciosidades que tais. Evidentemente, a coexistência do vazio poético e da pobreza e rigidez no pensamento político não são casuais. Há, efetivamente, uma considerável lacuna entre a produção de 22 e a imediatamente após, e o momento em que Roberto Piva começou a praticar estripulias e malabarismos com a nossa linguagem, por volta de 1962. Esse vazio, esta lacuna, autorizam a saudar o atual surto de produtividade poética como verdadeira manifestação revolucionária, capaz de influir na ordem das coisas, a linguagem reconquistada e reinstaurando-se com toda a sua força, sintoma e propiciação de algo novo, terrível e grandioso, cantares prenunciando o Apocalipse e a Libertação.”

Será que desta vez, finalmente, irei emplacar essa profecia?

 

 

 

*

 

Claudio Willer é poeta, ensaísta e tradutor. Seus vínculos são com a criação literária mais rebelde e transgressiva, como aquela representada pelo surrealismo e geração beat. Acaba de lançar Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia, ensaio (Civilização Brasileira, 2010); também publicou Geração Beat (L&PM Pocket, coleção Encyclopaedia, 2009); Estranhas Experiências, poesia (Lamparina, 2004); Volta, narrativa (terceira edição em 2004); Lautréamont - Os Cantos de Maldoror, Poesias e Cartas (Iluminuras, nova edição em 2008) e Uivo e outros poemas de Allen Ginsberg (L&PM Pocket, nova edição em 2010). Teve publicados, também, Poemas para leer en voz alta (Andrómeda, Costa Rica, 2007) e ensaios na coletânea Surrealismo (Perspectiva, 2008). É autor de outros livros de poesia – Anotações para um Apocalipse, Dias Circulares e Jardins da Provocação – e da coletânea Escritos de Antonin Artaud, esgotados. Poemas publicados em antologias e periódicos literários, no Brasil e em vários outros países. Presidiu por vários mandatos a UBE, União Brasileira de Escritores. Trabalhou em administração cultural, inclusive como Coordenador da Formação Cultural na Secretaria Municipal de Cultura (1993-2001) Doutor em Letras na USP com Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna (2008), faz pós-doutorado na USP sobre Religiões Estranhas, Hermetismo e Poesia. Coordena oficinas literárias; ministra cursos e palestras sobre poesia e criação literária. Prepara um livro sobre surrealismo e uma coletânea de ensaios sobre misticismo e poesia: http://claudiowiller.wordpress.com/

 

 

Leia também poemas de Claudio Willer.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2012 ]