OS POETAS PAULISTAS
o poema, só quando for impossível traduzir um estado interior de outro modo
só para dizer algo inexprimível, como o cheiro de café expresso que tomava conta da Praça Roosevelt a provocar um retorno a invernos de outras cidades
e para transmitir como foi aquela encenação da Teogonia, do poema sobre os mitos arcaicos, a vida e a morte, o fim e o recomeço como etapas do mesmo ciclo luminoso
pois a Terra, aquela noite, era um bólido que atravessava acelerado o universo e uma torrente de chuva
as gotas da noite na partitura dos minutos estampada no para brisas
uma tempestade nos encerra no centro do planeta que tem a forma de uma garagem subterrânea
e os poemas são escritos assim, de madrugada
para dizer que nossos dentes são sensuais,
nossas mãos são tão leves
nossos corpos se tocam
o vazio é perfeito
e o mar está em nós
– agora devo habituar-me a inesperadas proporções e novas simetrias de estarmos juntos,
pois somos a extensão de um texto de frases entrecortadas
sobre o alvor fugidio, esse clarão que nos separa do amanhecer de um dia seguinte
quando o cheiro de outro corpo, o seu, me acompanhar e vier acrescentar-se à minha biografia
(De A verdadeira história do século 20 – poemas recentes, inéditos em livro)
A VERDADEIRA ESCRITA AUTOMÁTICA
quem vê a queimadura
do ouro
inteiro?
Herberto Helder
é tão difícil empreender essa viagem pela escuridão e suas luzes para trazer esses fragmentos de volta: os trechos de um poema criado durante um sonho
– o caderno ia se transformando enquanto eu escrevia, suas páginas repletas de ilustrações, umas aquarelas e desenhos meio infantis que mudavam a cada vez que os via
e também mudavam a cor das letras do texto que escrevia, a tinta, a caneta – como se fosse um camaleão? – do azul ao verde, vermelho, lilás, amarelo, laranja, todo o espectro, até acabar, até sua carga extinguir-se de vez
e não já não havia mais escrita, não existia mais caderno, nada a não ser um vozerio de festa na rua, saindo de uma inexistente casa em frente,
chegavam amigos, dois rapazes vindos da festa (também não existem, nunca os vi), eles me levariam à cidade para procurar uma nova caneta da mesma escrita multicor e um novo caderno móvel,
mas o que escrevi, o poema de uma frase, sempre uma só frase sibilina, multiplicada na horizontal, na vertical, em diagonal, no rodapé da página,
de todos os modos e em todas as suas cores para repetir:
vocês nunca mais saberão a previsão do tempo – e restava um eco escrito: vocês nunca mais saberão ... – nunca mais ... e ainda havia uns versos ao redor em português arcaico
e assim soa a voz da sombra e um mês devora o outro como bólidos estrambóticos
– depois desse mergulho para rememorar o futuro e antever o passado, retorno com uma decisão visionária de escrever sobre a poesia moderna e o sagrado
e também quero dizer algo sobre ilhas, uns Açores e Baleares e ainda haverá mais poemas
e isso será refinado, joeirado, sublimado
e tudo estará bem
e tudo será belo
como umas roupas em um varal ao sol do meio-dia
balançando docemente ao vento
enquanto vamos nos acercando ao ouro do tempo
De Estranhas Experiências (2004)
ESCRITOS ONTEM
1
a blasfêmia da vez:
por muitos anos
amei uma planta aquática
enleava-me em seus fios de lodo e seda
gozava
durou pouco
palavras existem
para brincar com elas
2
daí que
as coisas virão
outras
através da escrita automática
docemente transtornadas
na lucidez do sono, trafego sempre
os gomos do Sol e a mente ao relento
3
o Sol será nosso pois o merecemos
o centro do universo fica aqui
resistimos
pelo sagrado direito ao sonho
e todos os seus mundos
resistimos
operações mágicas continuarão lícitas
neste dia de sombras vivas que se confundem com a alma
todos os seus desejos se realizarão
o que você pedir lhe será dado
profecias se cumprirão
outros poemas
4
e se todos os enigmas fossem assim: iguais a flores amarelas sobre prado azul
dispostas ao vento
o acaso do amanhecer
cidades que flutuam na névoa
sublimes
sussurram segredos
a chave de ouro
este meio tão fácil tão difícil
de escrever o que não havíamos sentido
antes
voz de sempre
voz do sangue
5
a realidade é uma geometria de corpos
o presente
uma evocação do que somos
tudo é tão simples
basta o adolescente em nós
tomar conta da cena
perversão total
como qualquer outra coisa
sempre estivemos
nus
sempre fomos
límpidos, eternos
a cada reencontro
e você foi feita para estar comigo
para sermos
todos os lugares
Aleph
cabala invocatória, arte, etc
grande como a esfera
luminosa
dois deuses uma corrente contínua
mergulhamos no segredo
hemisfério
sem limite
esfera fulva
plátanos ao sol, ao vento, ao calor
em pleno inverno, a cidade renasce
(cada coisa)
6
somos simples como uma série de assassinatos
a inocência
queríamos que fosse assim mesmo
o eco do trovão
audição
- mas já não sabíamos disso?
7
a vida é grande
do tamanho de uma nave espacial
à qual enviamos mensagens
em código
pouco importa o que conversamos
- quantas foram as vezes em que você morreu?
tantas histórias, quando muito sussurradas
a cidade e a tempestade
A PALAVRA
vocês não entenderam nada, vocês não sabem nada
poesia não é querer escrever bem
poesia é o que eu ainda irei relatar em prosa
poesia é o que ainda pretendo escrever
para depois reler e dar risadas, imaginando o espanto de quem vier a ler o que escrevi
poesia é velocidade
do disparo de revólver verdadeiro, da janela, no automóvel que ia passando por aquele alvo escolhido ao acaso,
poesia é som,
o áspero ruído do gume de diamante sendo testado por dois especialistas em arrombamento na vitrina daquela loja de armas a 80 m. de distância de uma delegacia (eu esperava no carro) (se houvesse cedido, levávamos tudo)
poesia é luz
daquelas janelas abrindo-se todas ao mesmo tempo, todo mundo acordando para ver que espécie de confusão era essa, o que aquele bando de malucos fazia na rua àquela hora
poesia é noite
a outra noite, aquela (no HC, minha pressão caiu, e depois ainda tive que dar a notícia aos amigos)
poesia é dizer
é ela dizer: “como você me revoluciona por dentro”
poesia é escrever
com um cuidado enorme, pesando cada palavra, para não me declarar réu confesso
poesia é névoa
de fumaça enchendo o quarto, todo mundo a dar risadas sem conseguir parar
poesia é porrada
algo bem melhor do que briga de scholars, aqueles da outra universidade contra esses desta,
poesia grossa (cacete rombudo, que tal esta imagem?)
poesia é isso, é isto, também é aquilo, é agora
poesia é o que sempre soubemos
o conhecimento animal
um núcleo raivoso anterior à Queda
- Gnose
estou falando de filosofia, de essência,
uma exploração do desconhecido pelo corpo, através do corpo,
o Marquês de Sade nem precisava daquele teatro todo
o que sei é onde penetrei,
- o telefonema que me traz lembranças de trinta anos atrás, de ontem, de agora, seu som a vibrar neste ar parado de noite antes de mais uma tempestade -
nada me interromperá
sempre usei uma linguagem direta,
Prometeu, Fausto
não quero falar, quero ser dito
sejamos densamente humanos
como a chuva
no ar saturado de excesso
parto ao encontro do núcleo selvagem de qualquer coisa
diamante ou lágrima perdida no fundo do bosque
ex-deusa
assim me despeço
mas eu a reencontrarei
lunar
resta saber o sonho, parábola da vida
De Jardins da provocação (1981)
FAZ TEMPO QUE EU QUERIA DIZER ISTO
ainda não conseguiram destruir o mar
não foram capazes de estrangulá-lo com fios elétricos e rodovias
nem de o retalhar com cercas
ou de lotear as manchas do seu dorso
o mar ainda existe
presente na consciência dos amantes
nas madrugadas de suor cúmplice estampado nos lençóis
para podermos ver o mar
para penetrar aos poucos nestes refúgios mornos
cavernas do primitivo sonho
útero de filamentos luminosos
é preciso nos desnudarmos totalmente
e sabermos nos reconhecer
pelo toque da pele
como algo que termina e recomeça
dois poemas entrelaçados
mordendo-se como a serpente mítica
o mar e suas gavetas de cristal
seus andaimes de prata
sua borbulhante conspiração de gelatinas
sua sofreguidão de novelas agitadas
seus túneis de trilhos descendentes
sua nudez flamejante
seu tempo de redes desfazendo-se na areia
seus barcos mergulhados na definitiva espera
seus poços artesianos de sal
seu recheio de quadros abstratos
sua cornucópia dos desejos obscuros
seus punhais envoltos em sargaços
suas torres de castelos de beleza pura
suas largas avenidas batidas pelo vento
seu arco-íris dançando o balé do amanhecer
suas mãos de dedos transparentes a perder de vista
guardião dos nomes dos suicidas
que vagam pelas ruas de cidades submersas
labirinto de lembranças
labirinto de luzes e sombras vivas
ondas fazendo valer seu interminável instante de rugidos
entrechocando-se com o furor dos metais nas batalhas de Paolo Ucello
selva de ruídos selva de ausências
e a hora da praia
pura realidade de silhuetas
lábio de vagina úmida dos continentes
dorso de gato angorá roçando a terra firme
clamor de corais
ecoando por campos submarinos
afugentando as águas-vivas
que chegam à praia como bandeiras de nações febris
(nesta rua asfaltada e cheia de gente de uma cidade de prédios inúteis que contemplam o mar certos da sua fatal corrosão
encontro um velho e inesperado amigo, ele carrega consigo sua roupagem hindu de seda negra e um estranho olhar fixo de visionário estampado no rosto pálido
recuamos para um lugar tranqüilo, sentamos para conversar entre palmeiras e uma brisa fresca
falamos das pessoas e das aventuras dos anos 60 e 70, tudo o que aconteceu, esses frágeis cenários agora vistos a partir desta perspectiva favorável de uma mesa de bar, eterna como todas as mesas de bar, neste mesmo lugar onde já escrevi outros poemas
próximos demais da areia para que não sejamos rigorosamente verdadeiros
nomeamos os personagens: um que foi morar em Punta del Este para fazer não se sabe o quê, outro que viajou para a França e ficou muito rico, aquele que mora em um barco e contempla o vazio todas as manhãs, alguém que dardeja traços alucinados sobre o papel, os que escrevem coisas absurdas com a firme convicção dos testamenteiros
e há também os que se mataram, os que foram mortos, que se afugentaram de si mesmos e ingressaram na definitiva condição de fantasmas, os navegantes para todo o sempre
o amigo se despede e parte, mergulha para dentro do calor de fim de tarde de um verão precoce, atravessa a barreira de uma cerca viva de folhagens, dissolve-se dentro da névoa que sempre se forma nestes dias
arrasta consigo este feixe de biografias entrelaçadas
e a questão parada no ar do que fazer com tudo isso
levanto-me e vou até a mureta que separa o jardim, agora deserto, da praia
chego mais perto
o entardecer começa a despejar seu instante de alucinação carmesim)
CHEGO MAIS PERTO
atravesso um filtro de maresias
recolho das ondas a simetria deste poema
nuvens dilaceram-se em um derradeiro combate de cores
enquanto o mar
(um rio mais indomável)
respira pesadamente
passando à minha frente
com a lentidão solene das procissões de barqueiros religiosos
estendendo seu cobertor de noites
abafando as fogueiras do fundo
acesas nas clareiras onde afogados tentam aquecer as mãos
a presença humana é murmúrio e solidão
restam apenas estes dois navios cargueiros
sombras recortadas contra o longe
dois barcos – dois pontos
vozes solitárias insignificantes e nulas
mergulhando no vazio cinzento
e este veleiro
mancha agitada sobre um mapa de negações
deslizando rápido para dentro da sua hora noturna
o humano recua de vez
agora tudo é distância e vazio
dissolvem-se as palavras e a paisagem
resta apenas o outro
tudo o que não somos
tudo o que nos é estranho
como um texto
oco da memória viva
malha obscura de encontros amorosos
o negativo deste nosso mundo de coordenadas terrestres
com seu surdo murmúrio de infinitas fontes
De Dias circulares (1976)
O SERPENTÁRIO E SUAS RAMIFICAÇÕES
A cidade e seu esqueleto múltiplo e inevitável, seus animais incendiados e turbilhões de fomes sem fim. Dentro dela, o grande estômago absorvendo todas as contemplações. Vitrais pulverizados envolvem os grandes prédios, a magia coloca-se ao alcance de todos sob forma de um corrimão que aponta para a morte da Perspectiva. Foram setenta vidas, talvez mais, contidas no espaço de alguns dias, límpidos, convergentes, inevitáveis, sulcados pela proximidade dos ciclones, vivência do grande seio plástico que abriga os desejos da alma, das cordas tensas do violino; setenta vidas e depois disso a sobrevivência. Todavia o esqueleto mais desidratado do que antes, a cavidade dos olhos, o crânio abandonado na mata sem metamorfoses. É preciso atapetar os corredores com lâminas a cada nova aproximação do ser amado, construir trilhas de sangue definitivo, única homenagem possível, antena, precipitação, anátema, presença, rastro fixo. A cidade, suas várias camadas e esqueletos, sua pulsação assustadora; sobre ela, a chuva de horóscopos que se precipitam a cada novo encontro. Torna-se necessário escolher as palavras encantatórias, abrindo novos espaços de magia (penetração, vértebra, sucção?). Tudo, porém, não passa de mais uma incorporação. Reconstruo-me, prossigo no roteiro dos sabath. Busco as clareiras deixadas pelo cerimonial. Máscaras de alabastro com línguas de gelo precipitam-se ainda no quarto a partir de determinados pontos, lentas e solenes como se estivessem infladas de hidrogênio.
AS RODAS MECÂNICAS E COM VONTADE PRÓPRIA
QUE SURGEM APÓS O SUCUBATO
E agora, como sempre, Hermengardo, o nascer do sol, Fúlvia, a luminosidade, seus estiletes, os panos alaranjados estendidos sobre os alambiques, cada vez mais longe, a distância é uma pedra azulada que define tudo, o afastamento uma sucessão de pirâmides brotando raízes, o caminho um nó no cérebro, a velocidade o rastro do grito que atravessa as farpas, a satisfação vista como possibilidade de espirar profundamente, de novo, um pouco de pó com significado de esperas, Hermengardo, Fúlvia, o colecionador de anéis e dentaduras fosforescentes sob a tempestade, a sorvedora de corações de periquitos imperfeitos porém brilhantes, a predileção pelas escarpas e vertentes, a luz conivente, lembrada, penetrante, dos estados visionários quando saímos do eclipse para saber que o sonho só pode ter um formato tubular. A proximidade sentida como sendo toda uma época, seu cortejo de personagens familiares redescobertos: paisagem a partir da víscera, desdobrando o olho e despejando guarda-sóis feéricos contra a opacidade do mundo.
de Anotações para um apocalipse (1964)
ANOTAÇÕES PARA UM APOCALIPSE
Os profetas Isaías e Ezequiel jantavam comigo, e eu lhes perguntei como haviam ousado assegurar com tanta certeza que Deus lhes havia falado: e se não tinham pensado na possibilidade de serem mal compreendidos e causa de arbitrariedades. Isaías respondeu-me: “Não vi Deus algum, tampouco o escutei, em uma percepção orgânica finita; mas os meus sentidos descobriam o Infinito em tudo, e como naquele tempo eu estivesse certo, e ainda o estou, de que a voz da indignação legítima é a voz de Deus, não me preocupei com as conseqüências, mas escrevi”.
1
A Fera voltará com seu rosto de tranças de prata, nua sobre o mundo. A Fera voltará, metálica na convulsão das tempestades, musgosa como a noite dos vasos sanguíneos, fria como o pânico das areias menstruadas e a cegueira fixa contra um relógio antigo. Um sonho assírio, eis nossa dimensão. Um crânio amargo, velejando com a inconstância do sarcasmo em meio a emboscadas de insetos, um crânio azul e sulcado, à janela nos momentos de espera, um crânio negro e fixo, separado das mãos que o amparam por tubos e esmagando os brônquios da memória – assim se solidificarão as vertigens jogadas sobre a lama divina. O incesto é uma tempestade de luas gelatinosas e a mais bela aspiração dos membros dissociados. Em cada órbita uma avalanche de sinos férteis e de arcanjos terrificados pela sombra. O incesto é o sonho de uma matriz convulsiva e o mais profundo anseio das cigarras. Vaginas de cimento armado e urnas sangrentas, impassíveis contra um céu de veludo, guardiãs de oceanos impossíveis. Milhões de lâminas servem de ponte para os desejos obscuros – a mais afilada trará a nossa Verdade.
2
As margens do caminho desfaziam-se em filigranas semelhantes a certas glândulas de mamíferos inferiores, ou aos caules de vegetais cujas raízes se sustentam nas formações cristalinas dos pântanos da Rússia Central. Um calor envolvente desprendia-se do asfalto, de mistura ao odor de maçãs conservadas durante setenta anos em potes de barro, em um clima desértico, ou de fungos que se alimentam do cloro desprendido pelo impacto das hélices sobre as folhas de plátano. O pedregulho, entreabrindo-se, exibia outro subsolo: anátemas ainda não proferidos, nadadeiras de tubarões empalhados, um espelho côncavo, e variedades de tubos cristalinos. Conservada em sal, a alma gelatinosa das mansões belle époque desfazia-se lentamente em colares de pérola negra. Folhas em forma de brasão cobriam as várias tentativas submersas, indicando o roteiro para um ossuário improvável ou para castelos de feixes de dinamite erigidos ao amanhecer.
O VÉRTICE DO PÂNTANO
J’ai tant revê de toi
que tu perds ta realité
Robert Desnos
1
O pântano é um espelho despedaçado – nele flutuam imagens conduzindo ao além-mar das derrotas, dos dias de angústia mais negra. Eu me perderei pelos labirintos e pelas mansardas, em busca de uma lembrança cercada por antenas trêmulas e lampiões chineses. Abrem-se as corolas para mais um abraço mortal do destino, e a cidade estremece e recua diante da proximidade do Apocalipse, enquanto percorro as ruas de muralhas desabadas e canteiros desertos, as mansões que aprisionam tempestades de gaviões negros. A cidade e seus serpentários, sua coloração de sacrifício, suas vertigens, seus braços que não alcançam mais o próximo instante. Os telhados me sufocam e dão a certeza de que há gestos que são uma antecipação da morte e olhares que encerram abismos.
2
O rio e seus afluentes de tóxicos, seus igarapés de cocaína, sua tumultuosa visão de serpentes. Marte comanda a morte, caminhando sobre seus carrilhões surdos. Eu sempre me senti atraído pelo Oriente, todavia, e um magnetismo surdo dava a direção dos meus passos desprotegidos para a Vida e comandados pela Vertigem. Assim foi que se dissociaram as partes do meu corpo: as vísceras emaranhadas na copa de um coqueiro, as mãos despenhadas em crateras, os pés calcados em um formigueiro em planície árida, a cabeça congelada e fixa em uma encosta, os olhos vidrados para sempre fitando o poente, os genitais perdidos na correnteza de algum rio que nunca chegará ao oceano, os pulmões arrastados por falcões insensíveis, os demais membros perdidos em tetos de edifícios ou então fincados em troncos milenares.
3
A palavra Amor desaba pelas paredes do quarto, com um turbilhão de outras palavras: cratera, aventura e fonte, navio, acaso e fuga, serpente, hora e salamandra, astro, circuncisão e potência, batismo de chamas, lâmpada submersa e gavião metálico, sombra calcinada, ossos enferrujados e areias movediças, tocaia de insetos ardentes, febre de sensações líquidas e marfim cravado de flechas, espirais de concreto colorido, locomotivas embriagadas ao poente e associações de leopardos tristes, cânticos soprados pela estepe, cortinas rasgadas dançando ao meio-dia, mantos hipnotizados, obscuridade povoada de plantas aquáticas, ilha habitada por morcegos, floresta de arbustos congelados, tempestade de pombas atravessadas por agulhas, antemanhãs, libélulas… A conspiração dos silêncios entrecortados de soluços toma conta da madrugada e congela o pensamento ao redor de uma só imagem: sombra navegada pelo incesto, campo do meu desejo galopante. O peso da invocação é tamanho que meus vasos sanguíneos ficam irremediavelmente emaranhados. O cérebro, cortado em duas metades, fixa o olhar para além dos contornos. A invocação é tamanha que paredes se dobram e novos ferimentos surgem sobre os corpos. A sombra é mais real que os passos, todo rastro é uma sedução definitiva, há imagens que são convites ao delírio e outras que nos arrastam sobre mortalhas, salões abandonados e despenhadeiros de lâminas.
4
Todo rio é um convite ao sobressalto, à morte através de chamas e venenos terríveis. Todo rio é um convite ao amor entre raízes milenares e campos roxos sulcados por veios de cristal. Pianos antigos, estações ferroviárias, um telégrafo enferrujado: fragmentos que gotejam sobre o meu corpo parcialmente destruído pela madrugada, o coração lancetado por um lírio ardente, galgado por mãos sensíveis segurando punhais, e engastado em um paredão infinito, entre pupilas veladas, algemas de marfim, e estandartes gravados a fogo. Isso, durante anos, que se dissolviam carregados pela tempestade. Não temíamos, porém, a escuridão, nem os perigos da febre e do mármore, e as conspirações de silêncios lacrados. Fomos só nós dois, unidos como um véu flutuante, à espera de maiores presságios. Só nós dois, os corpos inertes e solenes, no meio dos espelhos mansos e das crateras que não perdoam. Assim lançamos nosso desafio, apenas os dois, e a conivência dos sabres e das medusas. |