ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

UMA CONVERSA COM CONTADOR BORGES

 


Contador Borges

 

por Priscila Merizzio

 

 

Zunái: Em que momento você assumiu dentro de si: "é, realmente sou escritor"?

 

Contador Borges: Meus pais não estavam em casa (não sei por quanto tempo ficaram fora). Pela primeira vez me vi sozinho e caminhei pelo quintal (narro este episódio na minha peça Insônia ou a sombra da lua). Lembro-me que fiquei observando na parede um registro de água e que ele devia medir o tempo, o tempo funcional da espera. Eu tinha um cinco ou seis anos de idade. Naquele curto regime de solidão, fiquei cismando sobre a vida, a eternidade e a morte. Achei que a eternidade devia ser insuportável sem alguma forma de controle, sem a imponderabilidade do fim, como uma torneira que abre e fecha, como um corpo que nasce e morre, feito de carne, sangue, ossos. A vida é um fluxo que se interrompe. É claro que estou interpretando retrospectivamente uma experiência da infância, mas convicto de que foi um acontecimento marcante na minha vida introspectiva, que é a matriz de toda escritura. Mais tarde me vejo rabiscando papéis, projetando desejos, algum esboço de escrita como uma forma de vida e uma promessa de sonho, em meio às sombras, no silêncio. Eu rabiscava ao invés de desenhar. Há gosto para tudo. Aos poucos fui percebendo que as garatujas eram tímidos sinais de vida, algo vacilante em suas pequenas formas sinuosas e negras como patas de aranha. Quando uma obra começa? Em As palavras, Sartre conta que começou a escrever ainda criança, e que por ter descoberto o mundo através da linguagem, por muito tempo tomou a linguagem pelo mundo. Não cheguei a este extremo, mas a coisa pegou em mim quando percebi que a escrita é uma forma de potência, que dá sentido e intensidade à vida. Por muito tempo fiquei sem escrever uma só linha. Comecei a estudar música, achando que seria este meu campo mais fértil de atividade. Mas no fundo sabia que um dia voltaria a escrever. É curioso como certas experiências são decisivas. Quando menos se espera (não há cálculo para isto) você se vê instalado dentro desta ficção de vida: escrever. Ficção, porque não há nenhuma diferença entre ficção e realidade, a não ser que a ficção é a realidade escolhida, a realidade contra, a realidade levada além de todo limite. Há nisso tudo um sentimento que me acompanha até hoje e que faço questão de preservar: certo gosto pela clandestinidade, pela intimidade, pela ideia de que a escrita nos coloca num universo paralelo, que é um modo de conceber o mundo às avessas. Você não está o tempo todo numa relação de prazer com o texto, você também sofre quando escreve, em meio à angústia, à insegurança, ao vazio. Mas escrever é uma das maiores atividades de potencializaçao da vida que conheço. Escrevemos para mais e não para menos.

 

 

Zunái: No seu método de trabalho, dentro do processo criativo, desde a primeira ideia, elaboração e, por fim, a lapidação e re-re-re-re-visão, qual é o momento de largar um texto literário e partir para outro? Você decide sozinho ou precisa de alguma opinião externa, ou até mesmo acontecimentos invariáveis da vida?

 

Contador Borges: Eu não decido nada. Quem decide é o texto. Não é ele que afinal me escreve? A decisão de parar de escrever é somente um ato de “suspensão”, em que você interrompe o que está fazendo. Chega uma hora em que você tem de abandonar o texto e isso pode coincidir (é bom que assim seja) com um momento no qual o texto fica de pé, fala por si mesmo, emite alguma fagulha de beleza, algum sinal de vida e adquire uma espécie de independência em relação ao autor, esta fábula. É o momento em que a obra se torna um “ser de sensações”, como diz o filósofo Deleuze. O autor é apenas uma ausência, um vazio a partir do qual alguém escreve um texto (poema, conto, romance, peça teatral, etc.). A propósito, o autor é uma invenção da modernidade. Os antigos desconheciam totalmente esta noção. Podemos afirmar que a ideia de autor nasce e morre com a modernidade. Celebremos então suas cinzas. A obra é o ouro que fulgura em meio às cinzas do autor. O texto chega para o leitor e já vai dizendo: “olá, sou um poema, coisa e tal, não tenho pai nem mãe”. Toda obra literária carrega seus mortos. Há um poema do Lezama Lima que diz muito bem isto: “Desejoso é aquele que foge de sua mãe”. A minha morreu faz tempo e estou fugindo até hoje. É bem verdade que há um momento na criação em que a mão de quem faz é mais sentida, incisiva, etc. Mas a condução do processo não pode ser calculada ou medida, controlada o tempo todo. Não compartilho a posição de João Cabral (e nem por isso deixo de admirá-lo), de que um livro deve ser totalmente planejado. Ora, o construtivismo tem também aspectos inconscientes em seu processo criativo. Quem escreve segue um plano de imanência (nos termos de Deleuze). Uma vez li uma entrevista do Haroldo de Campos em que ele dizia ser às vezes “agraciado com uma semana toda fecunda” em seu processo criativo, o que prova que mesmo ele, um construtivista, tinha plena consciência disto. Por outro lado, não acredito muito na espontaneidade, no “automatismo psíquico”, dos surrealistas. Inspirada ou não, a criação poética necessita de cultivo, de labor, de sacrifício de palavras. Porém, o acontecimento da poesia é tão singular, que, às vezes, alguns textos já saem praticamente irretocáveis. Infelizmente, isto não é frequente, ao menos no meu caso. Por fim, não acredito que um autor necessite de alguém para saber se seu livro está pronto ou não. O fim da obra em geral coincide com a sua independência em relação ao autor. Ela termina quando já não pertence mais a ele (se é que algum dia pertenceu: “não meu, não meu quando escrevo”, diz Pessoa.). Por isso é algo melancólico, lutuoso, um lançamento de livro. É quase um velório. Sei de autores que abominam essas ocasiões. Eu particularmente não tenho muito problema com isso... é muito bom ver os amigos, celebrar, etc., mesmo sentindo por dentro uma pequena morte em relação ao livro que se despede como a noiva que deixa a casa paterna: she’s leaving home. Num certo sentido, cada livro novo é uma espécie de atestado de óbito. O poeta autografa uma lápide, algo que já não mais lhe pertence. “Poeta: jardim de epitáfios”, diz Octavio Paz.

 

 

Zunái: Em se tratando de crítica até qual ponto é importante levar em conta o discurso do outro dentro do próprio processo criativo?

 

Contador Borges: Mas estamos sempre no “discurso do outro”. O eu é um outro, a linguagem é um outro. O “eu”, sujeito, é um efeito de linguagem, uma projeção, um engodo ilusório da cultura. Talvez a questão devesse ser invertida: até que ponto falamos a partir de nós mesmos? Acredito que falamos no outro a partir de um vazio, o sujeito, mas o que produzimos resulta em linhas de força que se constituem como uma singularidade. O poema é isto. O conto. O romance. O ensaio. A peça teatral. Algo que se dobra em torno de um vazio. O poema é um véu encarnado. E não há nada debaixo a não ser ele mesmo. A melhor crítica, na minha opinião, é aquela que se assume enquanto forma de escrita, de suplemento, que não pensa seu objeto, o outro texto, sem deixar de pensar a si mesma. Assim, a crítica que me fascina não é aquela que pretende explicar uma obra, e muito menos julgá-la segundo critérios estabelecidos, já que cada obra de arte inventa sua verdade e não pode ser julgada por outros discursos que têm a verdade como lei (estamos fartos destes exercícios de arrogância e prepotência). Literatura não é ciência. Ela excede a verdade da ciência, não se reduz a esquemas explicativos; daí a falência dos discursos, dos métodos que tentaram fazê-lo, como o estruturalismo, etc. A melhor crítica é aquela que deixa o texto do outro falar através de si mesma, dando-lhe eco, encontrando suas vias de expansão. A crítica deve de algum modo continuar o texto sobre o qual se debruça, não reduzi-lo a um conjunto de fórmulas: crítica à flor da pele, em conluio carnal com a obra analisada, isto é, pensada como uma forma de inteligência do corpo ou extravagância da razão, porque, se há uma verdade no mundo, ela passa pelo corpo: nihil est in intellectu quid non prius fuerit in sensu. Não há nada no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos, já diziam os materialistas do séc. XVIII. 

 

 

Zunái: Como você sabe, conheci seu trabalho primeiro em O Reino da Pele e fiquei bastante tocada. Identifiquei-me muito com a torrente verborrágica e catártica de seus textos. Já em WITTGENSTEIN me deparei com um gênero completamente diferente, outro lado do Contador Borges. Também li seu ensaio, O Fim da beleza. Admiro muito sua versatilidade. Como você consegue harmonizar dentro de você tanta pluralidade (se consegue)?

 

Contador Borges: Bem, creio que estou aberto às demandas do corpo. E o corpo tem suas próprias ideias (título de um próximo livro meu). Cada livro tem suas próprias exigências (estrutura, forma, dicção, sentido), e mobiliza intrinsecamente suas forças e movimentos. Mas poderia responder sua pergunta de outro modo: pela negação. Procuro (e gosto) de escrever em registros diferentes porque sou incapaz de ser fiel a mim mesmo. E como nunca estou satisfeito com o que escrevo, atiro em várias direções, me deixando cativar, capturar por outros gêneros e formas de dicção. João Cabral dizia que um escritor tem que buscar sua dicção definitiva e quando a encontra deve permanecer nela. Discordo de novo. Cada caso é um caso (ou casa: o poeta é a casa do ser, diz Heidegger). Não há regra geral. A criação poética dispensa fórmulas feitas, camisas-de-força. A voz de um autor (esta ficção) é uma emanação da escrita, uma produção e uma vontade de potência. E este efeito pode ser alcançado tanto na repetição quanto na diferença. Para certos autores, como eu, cada livro impõe seu método. Nesse caso, a escrita é o método, sem distinção entre começo, meio e fim. O que interessa não é partir ou chegar a algum lugar. O que interessa é a viagem. Escrevo para fugir de mim mesmo, para dar ao corpo da obra mais chance para ser aquilo que não sou.

 

 

Zunái: O que você pensa sobre esta busca alucinante de algumas pessoas por notoriedade? É algo marcante desta geração (talvez por causa das facilidades que a internet proporciona) ou, nas gerações anteriores isto existia também? Em qual ponto, abstrato ou tangível, a arte deixa de ser arte-catarse para virar intencional produto de comércio/fama?

  

Contador Borges: O desejo de notoriedade, para mim, diz respeito à crença de que pode ser mais completo e feliz o sujeito que fica em evidência. Triste equívoco, pobre carência. A libido voltada para si mesmo (o que caracteriza o narcisismo segundo a psicanálise) é apenas um modo de ser, de se relacionar com a falta e compensá-la. Propagar isto ao paroxismo é uma espécie de desespero, de paixão mitológica (ou neurótica). O problema é que a sede de Narciso parece infinita. Para piorar, há toda uma indústria do entretenimento dissimulada em nome do “contemporâneo”, que dopa o narcisista, fazendo-o crer que ele é melhor ainda do que parece. Sabemos que de tanto multiplicar sua imagem, ele perde a noção de si e se afoga em seus efeitos. Ter pena dele é fazer pouco do corpo e do desejo, como das relações humanas em geral. E fazer muito de instituições como a do mercado cultural. Dali foi um artista bastante interessante, sobretudo no começo, por sinal, autor de um método muito instigante na arte, a paranoia crítica. Depois, sabemos, houve aquela obsessão em torno da notoriedade, fazendo de sua imagem ou ícone uma espécie de culto. Mas no caso dele, depois de tudo o que produziu (gostemos ou não), qualquer exercício de autoidolatria parece menor. Picasso, por sua vez, tem aquela ótima frase que tomo, aliás, por divisa: “Não hesito em tirar dos outros aquilo que me interessa; só odeio copiar a mim mesmo”. Em suma, o que é notoriedade para um escritor? O reconhecimento de que uma obra pertence a seu tempo? A aprovação irrestrita de seus pares? A comprovação de sua relevância estética? O aval do mercado e da indústria cultural (mídia, editoras, entidades de patrocínio e de premiação, etc.: por sinal, não é interessante para estes fabricar idola, ídolos da tribo, ídolos do mercado, ideológicos e mancomunados com interesses de grupo, para retomarmos estes conceitos do filósofo Francis Bacon)? Por sinal, para que serve um prêmio literário hoje em dia, e fiquemos no Brasil. Quais são os interesses das entidades que o promovem e dos grupos diretamente ligados ao processo de escolha dos ganhadores? Não será a notoriedade antes uma construção social em favor dos poderes sobre a cultura? Se assim é, as obras agraciadas podem não representar o que há de mais relevante na literatura, mas apenas satisfazer interesses de outra ordem. Ora, do ponto de vista do criador, todo desejo de fama é irrisório, ineficaz, para não dizer prepotente, já que não podemos compreender totalmente os instrumentos de avaliação de cada época. O melhor, para um escritor, é viver no presente, produzir a sua obra. O resto, o futuro dirá; se o presente é a sintonia com a vida, o verdadeiro tempo da literatura é o devir, isto é, o movimento que vindo de toda parte (e parte alguma) se materializa em signos, abolindo toda distinção temporal: o passado renasce, o futuro retorna... transfigurados na substância do presente. A propósito, o que significa ser “contemporâneo”? Para Agamben, contemporâneo “é, justamente, aquele que sabe ver esta obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente”. Ou ainda, como diz o aforismo de René Char: “para ver soberanamente é preciso fechar os olhos”. A questão da notoriedade me levou ao tema do contemporâneo e à relação com o presente, e gostaria de retomá-la neste ponto: um escritor, assevera Cioran, deve permanecer na sombra. Portanto, se ele começa a se preocupar com a fama, deixa a obra em segundo plano, o que é fatal. E para quem escreve, o prêmio é a própria obra. O resto é sorte, confete ou artifício que nada tem a ver com literatura. Se alguém começa a fazer sucesso demais, é bom que desconfie. Por que será que livros como 5O tons de cinza fazem tanto sucesso? Vontade de saber sobre o sexo? Vontade de pertencer ao grupo dos que estão “por dentro” das novidades literárias? Desejo de viver na imaginação experiências ficcionais para desanuviar a libido retesada e esquecida nos confins do inconsciente? Porque, para usufruir da magia da arte literária, creio que não é. Que as feras do tempo tenham muito apetite e devorem depressa “notórios” e “célebres” e seus filhos degenerados, suas obras. Sobre a segunda parte da pergunta, esta visão midiática ou mercadológica da arte não me interessa, não me seduz, e me parece extremamente empobrecedora. E se você me pergunta o ponto em que isso acontece, respondo que nestes casos isto já se coloca desde início. Sendo mais preciso: se alguém escreve livros de autoajuda (aquela que “ajuda” o próprio autor, como o nome indica) é porque sabe que este público-leitor já está à espera desta forma de panaceia literária ou literal. Se alguém escreve por estar desesperado, por solidão ou por delírio em torno de si mesmo, que escreva então o desespero, a solidão e o delírio. Deste modo a própria obra se encarrega de sepultar o autor. Caso ele tenha a sorte (ou o dilema) de se tornar famoso, que tenha a fineza de dizer: “minha obra tem vida própria, ela fala por si mesma”. Ou pior ainda: se ela for cooptada servilmente para uso de algum poder, que ele tenha a coragem de renunciar a ela, como fez Pasolini com os filmes de sua Trilogia da vida. Como vê, comecei a resposta sepultando o autor e terminei ressuscitando-o. Paradoxo necessário. Por moralidade, tática de guerrilha contra as instituições do discurso, da mídia, do mercado, etc., o criador deve intervir, não como sujeito, mas como corpo. Tudo no mundo é relação de força.

 

 

Zunái: Às favas com concepções acadêmicas sobre o tema. Particularmente, quando você, diante de um texto, pensa: “ah, isto é boa literatura!”?

 

Contador Borges: A boa literatura não deixa dúvidas. Ela se afirma desde a primeira linha, pela força da escrita, pela grandeza da voz, pelo poder das imagens, pela beleza da estrutura, sempre firme, sempre vibrante. Pelo diálogo que faz internamente com a tradição, rompendo-a ou não (romper uma tradição, em literatura, é apenas se deslocar para outra volta da espiral), pela aproximação com o mundo concreto, ao mesmo tempo distanciada e crítica, mas também sublime, levando a leitura a seu ponto mais alto e intenso, sem cair nos chavões repisados. Enfim, tocando em nós o que há de mais sensível, arejando a teia para o orvalho da vida, afirmando o presente como o único tempo real, tornando toda aparência essencial, e toda ficção a forma maior da verdade. Dissolvendo as fronteiras entre forma e conteúdo, fundo e superfície. Fazendo falar o que não se diz, silenciando o ruidoso, o megalômano, o obtuso, o histriônico e a histeria de nosso tempo. Exuberando o ínfimo, acautelando o máximo, o que parece triunfar em tudo e não falhar em nada. Dando vez (e voz) à falha, fazendo do erro uma língua e da linguagem uma errância em toda parte e em nenhuma. Enlouquecendo o dicionário, exorbitando a enciclopédia (a educação em círculo). Aproximando a inteligência da paixão e a paixão da loucura, esta da lucidez (sem medo de ser lúcida: “eu sou o medo da lucidez”, diz um poema do Manoel de Barros). Enfim, a grande literatura (o adjetivo, aqui, é mais do que um diferencial, é uma profissão de fé), tem certos atributos que a faz se impor por si mesma, sem apelos nem concessões. Você começa a ler um romance como Grande sertão: veredas: “Nonada...” e já sabe que para compreendê-lo tem de aprender sua língua no tempo da leitura. Isto porque, como diz Sartre, falamos numa mesma língua, mas escrevemos numa língua estranha. A literatura nos salva quando a língua endurece, quando as linguagens se cansam, se cristalizam. Ar negro, necessário, a literatura é uma espécie de oxigênio.  Ela desobstrui as veias entupidas da civilização (entendo por civilização a cultura que prevaleceu sobre as demais, no caso a ocidental). A literatura (e particularmente a poesia) é o manancial de todas as línguas, a fonte revitalizadora do ser. “Chegamos tarde para os deuses e cedo para o ser”, diz belamente Hölderlin. Se assim é, a poesia é o nosso único Oriente (bússola e terra-dos-ninguém: desesperados, aflitos, alucinados e excluídos em geral). Se o “Ser” está distante, podemos ao menos mergulhar nos confins do Poético e temos, senão uma segunda vida, ao menos uma sobrevida, uma forma de potencializar o que somos e não somos, fazer do menos mais e do eu plural. 

 

 

Zunái: Paulo Leminski tem um pensamento bem samurai da literatura, pois dizia que quem escreve mesmo, escreve todos os dias, com disciplina, compromisso, diferente daqueles que escrevem somente em "finais de semana de férias em Caiobá". Pensando nesta relação que Leminski dá para a literatura, de seriedade e aliança, você enxerga alguma analogia entre a escrita e o casamento (erótico)?

 

Contador Borges: Para mim a escrita não tem a ver com o casamento, e sim com a solidão (descontando-se o fato de que há casamentos em que se vive uma solidão a dois). A solidão mergulha o escritor numa experiência interior. Isso não quer dizer que ele se isola do mundo exterior. Pelo contrário, imerso em sua prática ele se conecta com o lado de fora, o mundo, os outros, as coisas, já que são materiais intrínsecos da linguagem. O que importa é fazer literatura, não a partir de si mesmo, mas da ausência, da morte de si. E se é para falar em erotismo, a relação com a escrita tem mais a ver com a do sexo sem casamento, já que sob o peso desta instituição a tendência é matar o erotismo. De novo, não creio em fórmulas prontas. O que a experiência tem me ensinado é que o fundamental não é a rotina, mas uma relação de desejo que se tem com a escrita. “Sem tesão não há solução”.

 

 

Zunái: Para você, existe escritor profissional e escritor amador?

 

Contador Borges: A verdadeira relação com a escrita é questão de philia, o termo grego para amizade, que também significa intimidade, ser íntimo de seu ofício, a ponto de se sentir que ele sai do corpo como um jorro, um fluxo. Será que somos “amigos de”, ou “amamos” nosso sangue, nossa urina, nosso esperma? Creio que não. Mas podemos dizer que a escrita é uma espécie de fluxo ou sangue mental. Por vezes este “sangue” sai furiosamente, outras nem tanto. Força é questão de intensidade, forma, de qualidade. Gosto de pensar que a escrita é uma forma de inoperância soberana, uma atividade a contracorrente, isto é, que se faz contra o tempo do trabalho útil, exigência do mundo regulador do compromisso, da racionalidade. Quem escreve para se acomodar em alguma coisa não pode fazer nada realmente bom. O escritor não é um cordeiro. Não escreve abaixando a cabeça, dentro de um uniforme, respeitando horários, regulamentos, etc. Quem escreve para o mercado é um burro de carga (perdoe-me este belo e doce animal). Acha que é esperto porque pode ganhar dinheiro e fama, mas a literatura vai pro brejo (que não é o das almas de Drummond). E quem escreve para ganhar prêmios (sim, este abutre do poder existe), só afirma o que a cultura, empobrecida, sabe, cinicamente, sobre si mesma. Enfim, não é essa a prática textual que me interessa. Prefiro escrever contra. E quando escrevo a favor de algo é porque isto me permite me colocar criticamente em relação a alguma coisa. Por vezes “crítica” é a lâmina invisível da lírica, o cerol da pipa, ferindo como quem voa e acaricia. Viver da própria obra pode parecer ótimo, mas é preciso tomar cuidado. Melhor seria ganhar dinheiro independentemente dela. Será que o verdadeiro escritor é um homem sem profissão? Que ele então se segure por outros lados: literatura boa em geral só dá camisas de vento.

 

 

Zunái: Você tem vontade de roteirizar um filme? Ou vários filmes? Caso sim, como seria um filme seu?

 

Contador Borges: Não será a vida real um filme? E o que escrevemos, seu roteiro enviesado, transfigurado? Sim, desejaria roteirizar vários filmes. Às vezes tenho a impressão de que escrevo para recuperar uma sensação perdida (a bela fórmula de Proust). O filme que eu gostaria de realizar a partir de um roteiro meu é de um homem que descobre que não há nenhuma diferença entre sonhar e viver. Que um dia entende que sua razão é apenas uma arraia que desconhece o oceano. Uma arraia com sede. Por isso, deve beber longamente outras águas. Mas já que perguntou, vou deixar aqui um desejo de roteiro mal alinhavado. É algo que tiro livremente de As palavras, de Sartre:

 

Digamos que o filme venha a se chamar O escritor, a carruagem e a próstata.

 

1. Um homem caminha numa estrada vazia. Carrega na mala a memória de suas obras e o esquecimento de que são feitas. Nunca foi vítima da notoriedade, por isso caminha como uma sombra entre as sombras. 2. A certa altura ele para de caminhar, pensa nas dívidas e na próstata. 3. Dez segundos de chuva. Sete segundos de sol. Céu turvo, sangue de crepúsculo. Noite dentro da noite. Ária para não-violinos, desoboés e contrabaixos inaudíveis, mãos irmanando os fantasmas de Schubert e de Beethoven. 4. Do outro lado da estrada, surge uma carruagem (sic.). O veículo estaciona. Desce uma jovem condessa num vestido longo de festa. Sua beleza é a única forma de luz desta hora. Ela atravessa a estrada, se aproxima do velho escritor e o beija docemente. Para ela, ele simboliza a própria obra. Ela desaparece em meio às árvores trêmulas, na velocidade dos sonhos. 5. Ele sorri num misto de luto e melancolia. Descobre a identidade da jovem condessa que o reconhece nas trevas. É a morte. 

 

 

Zunái: Fale sobre Marilyn Monroe e também sobre a beleza. Fique à vontade para divagar e dizer o que quiser sobre estes dois assuntos que lancei.

 

Contador Borges: MM, para mim, encarna a beleza do tempo, a beleza do efêmero, o sentido de beleza número 2 em Baudelaire. Este sentido de beleza (o outro é o belo invariável, ideal, eterno) tem a ver com a corrupção do tempo e da morte. É a beleza do corpo dizimada pelos anjos da ruína, pois a beleza reside na coincidência entre sentido e intensidade, quando atinge seu auge e começa a desmanchar, degenerando no terrível, ou no começo do terrível na elegia de Rilke, o terrível que podemos suportar. A Marilyn de meu poema é flagrada num momento de fragilidade, logo após a uma cirurgia em que lhe retiram a vesícula biliar e o corpo, devassado, expõe algo de seu avesso. A parte interna do corpo (sangue, nervos, etc.) é associada ao horror e à morte. É com base nessa tensão que fiz A cicatriz de Marilyn Monroe. De repente, a modelo exuberante, o mito sexual, etc. deixa que o fotógrafo da Vogue capture a imagem de sua cicatriz. A cicatriz fornece um suplemento de nudez, aliás, como a tatuagem. É um signo do terrível que se apodera do corpo, que o submete a uma intervenção do exterior. É nesse sentido que o belo efêmero de Baudelaire surge, ou seja, como um elemento que excede o belo estável e ideal com a nódoa acachapante da morte, mas que não deixa de mostrar também o lado exuberante da vida. MM foi na nudez das telas de cinema a encarnação de Eros que sua época gerou para si mesma. Um brinde final à beleza de seu fantasma platinado e à força demolidora das imagens.

 

 

Zunái: A loucura é...

 

Contador Borges: Em princípio excesso de razão, assim como a poesia é excesso de linguagem, e, no extremo: não-lugar, língua girando em torno do próprio eixo, olho esquerdo fugindo do direito e vice-versa, o medo e (por vezes) a lucidez da razão, a mais-razão que só a poesia conhece, o riso da fronteira, o fosso da linguagem, o grito da margem, o breu iluminado do intelecto, a estrela exorbitada da galáxia dos movimentos uniformes, a promessa de vida no alheamento, o câncer da lucidez queimando como um sol turquesa, sol poente afundando alegremente como um barco bêbado, a lua uivando para o cão, a dor e o êxtase se admirando no espelho, o incomunicável, o inominável, o incontornável, o irremediável, o irredutível, o impossível... Quando o filósofo-poeta (ou poeta-filósofo) Nietzsche perdeu a razão e mergulhou no império da loucura, parou de escrever livros. Viveu em estado vegetativo por mais dez anos, antes de sucumbir de vez ao grau zero da existência. Ninguém sabe de sua vida interior durante esse não-tempo avesso às calendas. Ninguém sabe se continuava escrevendo mentalmente livros absolutos, indecifráveis, impossíveis. Vai ver que no fundo a razão é só um modo de encarar a loucura, como a loucura um modo de zombar da razão. Ou talvez não seja nada disso. Pode ser que razão e loucura sejam os dois lados de uma mesma moeda sem fundo. O problema é que as moedas circulam e pesam como vida e morte nas trocas simbólicas que operamos dias e noites. Hölderlin acordava a vizinhança, janela aberta, aos gritos da poesia. Os outros pensavam que era o vento da floresta que havia tomado a forma humana. Outros que era um cão de peruca uivando para a lua. Hilda Hilst tinha uma “serpente de versos em sua boca”, deus e o diabo interligados, coral falsa e verdadeira numa mesma sentença espiralada. Bataille dizia: “escrevo para não ficar louco”. Não era então loucura, o que escrevia? Bispo do Rosário, artista ou louco? Louco, dizem os psiquiatras. Artista, dizem os artistas. Uma estrutura, os antropólogos. E, finalmente, místico, dizia ele de si mesmo, que produzia para entregar o fruto a Deus, o ponto extremo, espantalho do nada, palhaço dos incrédulos, soberano dos devotos, tentação dos aflitos. Deus é o ponto de saturação, de máximo recuo ou intensidade da razão para conter as formas vivas da violência e do excesso. Onde há Deus, acredita-se, não há loucura. Pois para a loucura não há salvação. Bataille de novo: “Deus não é nada se não for a superação de Deus”. Se Deus é mais que o excesso, ele só pode ser o excesso mesmo e maior possível que nem a palavra excesso pode conter. De outro modo Deus é mínimo, ínfimo, cativo de qualquer força maior ou menor, deuzinho calado e viscoso dos bueiros, das cloacas, ponto longínquo de fuga intercalada entre dois nadas. Mas isso já não seria loucura? Ah, finalmente, a loucura. Se lhe dermos um nome, uma forma, um movimento, ela recua, nos dribla, desaparece na névoa, como um cão liberto de seu dono. O cão e sua raiva. O que é a loucura? Não sabemos. Inventemos uma língua para ela.

 

 

 

 

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